Sunday, 13 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Che, segundo o semanário

A abordagem da revista Veja sobre o mito e o homem Ernesto ‘Che’ Guevara, avaliada no decorrer dos anos, consiste numa ótima oportunidade de observação dos movimentos da mídia. Sugiro aqui uma visita comparada a duas reportagens da publicação sobre o assunto.

Uma foi matéria de capa há duas edições, intitulada ‘Che: há quarenta anos morria o homem e nascia a farsa’, assinada pelos jornalistas Diogo Schelp e Duda Teixeira. A outra foi publicada há dez anos, sob o título: ‘O triunfo final de Che’.É assinada pela então repórter da casa Dorrit Harazim. O texto está disponível atualmente no site da editora Abril na internet, neste endereço.

Há congruências entre as duas reportagens. Ambas registram aniversários redondos da morte do guerrilheiro. Buscam causas para a projeção mitológica do ‘Che’. E fazem referência a algumas mesmas passagens do líder.

Terreno mais vasto, no entanto, é o das incongruências, diferenças de tratamento e visões antagônicas – a respeito do personagem central – que as duas matérias explicitam.

A atual possui caráter predominantemente dissertativo. Não identifica de onde os autores apuraram as informações, o que leva a crer que a matéria foi feita da redação. Parte de tese própria segundo a qual o mito de ‘Che’ é uma farsa produzida pela ‘máquina de propaganda marxista’, diz o texto. E se destina a comprová-la.

A de 1997 foi apurada na Bolívia e se ocupa, majoritariamente, de ouvir declarações e descrever fatos que testemunha. Parte do acompanhamento da buscas dos ossos enterrados de ‘Che’ para também refletir sobre a força do maior mito latino-americano.

A Veja de 2007 entrevista seis fontes para a matéria. Todos são cubanos da Flórida, inclusive dois historiadores – um do Instituto da Memória Histórica Cubana de Miami e o outro da Universidade de Miami.

A reportagem justifica a concentração de fontes: ‘O regime policialesco de Fidel Castro não permite que aqueles que conviveram com ‘Che’ e permaneceram em Cuba possam ir além da cinzenta ladainha oficial.’ Não explica, porém, porque não foram ouvidos observadores internacionais neutros, ou companheiros de ‘Che’ em campanhas fora da ilha.

Já Dorrit Harazim concentra-se nas fontes que encontra pelo caminho, nas cidades bolivianas onde ‘Che’ é um ser místico, literalmente adorado como santo.

Diego Schelp e Duda Teixeira expõem diagnósticos certeiros sobre Guevara, na maioria das vezes desacompanhados da análise de qualquer fonte. Eles reduzem as origens da mitificação do argentino a três fatores ligados a alguma espécie de ‘sorte histórica’.

São eles: a morte prematura; a ajuda involuntária de seus algozes, que conferiram ao rosto do ‘Che’ defunto espantosa semelhança com as pinturas barrocas do Cristo morto; e ao contexto favorável, às vésperas dos protestos da geração de 1968.

Já a matéria anterior tem espaço para o contraditório e questões complexas, inalcançáveis por respostas simples. Ouve diversos bolivianos admiradores de ‘Che’, povo que, segundo o texto atual, ‘tinha raiva dele’.

Um destes admiradores, ao encontrar um cubano integrante da guerrilha que então vivia na Espanha, pergunta: ‘‘Por que vocês começaram a guerrilha antes de conhecerem o terreno e estarem preparados? Mas por que, depois de tudo isso, você não vive em Cuba?’ O ex-guerrilheiro ficou quieto’, diz o trecho de dez anos atrás.

Disparidade ainda mais gritante entre as duas matérias da mesma revista se encontra na adjetivação usada para qualificar Guevara e suas ações. ‘Che tem seu lugar assegurado na mesma lata de lixo onde a história arremessou há tempos outros teóricos do comunismo’; (…) ‘sua maníaca necessidade de matar pessoas’.

Em 1997, Veja publicava: ‘Che empolga por ter sido um rebelde com causa, aventureiro e vagabundo, de ar atormentado e ardor revolucionário, mas sobretudo um rebelde capaz de abrir mão de tudo, especialmente do poder.’

E mais: ‘O mito de Guevara (…) ampara-se na simplicidade, (…) e na entrega de sua vida à defesa da solidariedade e justiça social.’

‘Che’ morreu há 40 anos. Nos últimos dez, nada de relevância decisiva sobre sua história foi revelado. Enquanto seu mito não pára de crescer.

No entanto, como podemos observar, a visão e os procedimentos jornalísticos que a maior e mais influente revista brasileira tem e propaga diante dos fatos mudou radicalmente no período. Sem maiores explicações ou avisos aos seus leitores.

Questão tão complexa ou simples como a da força do mito de ‘Che’ é: Por que?

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Jornalista e roteirista