Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Cobertura com quantidade e sem qualidade

A cobertura do projeto de lei de criação do Conselho Federal de Jornalismo(CFJ), em 2004, configurou-se como raro momento em que a imprensa falou de si mesma, e por um período bastante longo se considerados os critérios midiáticos: cerca de quatro meses.

Ao lado do debate sobre a Agência Nacional do Cinema e Audiovisual (Ancinav) e do episódio da expulsão do jornalista Larry Rohter, a discussão em torno da criação de um Conselho profissional para os jornalistas foi considerada como ponto de destaque no tratamento da imprensa sobre suas questões, segundo a pesquisa Mídia e Políticas Públicas de Comunicação (PPC), publicada em março último pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI) e Fundação Ford.

Os resultados mostram que estes episódios foram mencionados em 44% de um total de 1.184 textos publicados de 2003 a 2005, em 53 jornais de todos os estados, além das 4 revistas nacionais. Foram eles, inclusive, que alteraram o maçante e escasso percentual detectado na pesquisa, de apenas uma notícia tratando de PPC a cada cinco dias.

No caso específico do Conselho Federal de Jornalismo, a quantidade de tempo e de número de matérias infelizmente não conquistou correspondência em qualidade. Na cobertura sobre uma proposta efetiva de fiscalização e regulação de sua profissão, os jornalistas parecem ter negligenciado a validade dos critérios de noticiabilidade que eles próprios exaltam como ‘prova’ de isenção e moeda de credibilidade.

Muito diferente disso, verificou-se num estudo sobre a cobertura do CFJ pela imprensa que ela, sim, tomou partido, fez pressão, omitiu fatos essenciais ao entendimento da questão, priorizou fontes favoráveis à tese desenhada, rotulou, e, principalmente, apresentou o noticiário como se fosse o resultado de um trabalho criterioso, embasado e isento.

Senso comum

Vejamos. O trabalho da ANDI constatou que 64% dos textos sobre o Conselho trouxeram exclusivamente posicionamentos contrários ao projeto, enquanto que apenas 7,5% dos textos pesquisados dedicaram-se a debater o CFJ. O desequilíbrio na seleção das fontes também foi evidente: as empresas de comunicação e suas associações foram ouvidas em 15% das matérias; aos sindicatos e federações de jornalistas coube 2,2% de espaço.

Os dados casam com outra pesquisa, realizada pela Revista Imprensa/SBPM/Maxpress em 2004, no início da polêmica na mídia. Entrevistando 304 jornalistas de todo o país a Revista constatou que 56% deles eram contrários à proposta do CFJ, com um detalhe importante associado: dos que se disseram contrários, apenas 17% afirmaram ter lido o anteprojeto na íntegra, evidenciando a falta de informação dos profissionais sobre o conteúdo da proposta.

Mais números. De 37 textos publicados em quatro dos principais jornais do país – O Globo, Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e Correio Braziliense – durante a primeira semana da polêmica, de 6 a 12 de agosto, apenas quatro colocaram verdadeiramente a discussão ao público.

A semana de estréia do assunto nos jornais é bastante significativa na análise da cobertura total, uma vez que deu o tom das publicações até o desaparecimento do tema, em dezembro de 2004, quando a proposta foi derrubada no Congresso por acordo de lideranças.

Durante esses meses, e especialmente na semana inicial, prevaleceu o discurso-escudo de que o CFJ feria de morte a liberdade de expressão e representaria o retorno da censura. O vínculo entre as idéias também foi confirmado na pesquisa da ANDI: em 13,6% das publicações sobre o CFJ a censura foi associada ao assunto e a liberdade de expressão em 28,3%.

A história brasileira fez do trauma da ditadura quase parte da anatomia da população. O resultado é que qualquer proposta de regulamentação limita-se ao argumento da restrição ilegítima de liberdades. E nesse caso a imprensa fez uso do senso comum para livrar-se do debate. Os espanhóis Ortega e Humanes (2000, p. 45) observam que toda a crítica feita ao jornalismo é necessariamente apresentada pelos profissionais como atentado à liberdade de expressão. Assim, carente de regras equivalentes às de outros campos de produção cultural, vigora o lema ‘tudo vale’.

Um pouco de histórico

A criação do Conselho Federal e Conselhos Regionais de Jornalismo foi proposta pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e encaminhada ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo. Como autarquia de direito público e formato federativo, o Conselho teria autonomia administrativa e atribuições de orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de jornalista e da atividade do jornalismo.

Além do controle da concessão dos registros da profissão – que passariam a ser indispensáveis à atuação profissional, e do poder de definir as condições de cancelamento e suspensão da inscrição dos jornalistas, o ponto mais polêmico do projeto era a autonomia para aplicação de penas de advertência, multa, censura, suspensão e cassação do registro, quando comprovadas infrações disciplinares.

O noticiário focou esse artigo e dele extraiu as críticas de risco à democracia e cerceamento à liberdade de expressão, sempre com associação direta ao Governo, por ter acolhido e encaminhado a proposta ao parlamento. Ficou de fora a informação de que o artigo 61 da Constituição delega ao Executivo a iniciativa exclusiva de criação de autarquias, ministérios e demais órgãos da administração pública.

A mesma tramitação via Governo Federal foi executada na criação de todos os conselhos profissionais historicamente existentes no País, incluindo os mais conhecidos: Conselhos de Medicina, Engenharia e Arquitetura, Biologia, Ordem dos Advogados, entre outros. A ausência desse importante esclarecimento empobreceu o debate e reforçou o argumento do CFJ como manobra do PT para vigiar a mídia.

Enfim, a cobertura do CFJ foi enviesada, interessada, e infringiu regras capitais do jornalismo (pluralidade de visões, objetividade no relato, equilíbrio na apresentação dos fatos, etc), além do dano maior: a recusa ao debate sobre o CFJ, ou qualquer outro instrumento fiscalizador da atuação profissional. Qual o melhor modelo de instrumento de regulação profissional? Pergunta similar nem surgiu.

Os jornalistas não estão acima do bem e do mal e devem sim obedecer a mecanismos de regulação e fiscalização técnica e ética para a proteção da sociedade, desenvolvimento da profissão, e, sobretudo, fortalecimento da democracia participativa. A cobertura do CFJ é prova viva disso.

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Jornalista, especialista em gestão de assessoria de comunicação pelo IESB e mestranda em Comunicação pela UnB