Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Dalí, modo de usar

Salvador Dalí morreu há 25 anos e ocupou todas as capas dos jornais espanhóis como planejou a vida inteira ao cultivar obsessivamente a própria imagem e cativar a imprensa. Os jornais tentavam em vão explicar esse gênio e louco, anjo e demônio, surrealista e mítico, exibicionista e marqueteiro, excêntrico e fabulador. Grande artista? Vigarista. “Morre o gênio que criou Salvador Dalí”, foi a manchete do La Vanguardia (24/1/1989) para o artista catalão de 84 anos que vai ficar 300 anos embalsamado como apareceu no velório em Figueres, enquanto 15 mil visitantes faziam circuito contínuo em torno do corpo. Proibido parar, proibidas as flores. Um assistente virava para cima alisava os bigodes de mosqueteiro, como exigiu o morto.

Morto? Fotos profissionais de todos os ângulos. “Retiramos modelos de suas mãos e rosto para reproduções, Dalí não pode morrer”, explicava a esta repórter à beira do corpo um dos embalsamadores, Juan Pratt.

Até hoje, 110 anos depois do seu nascimento, não se chegou a uma conclusão sobre de quem era esse homem embalado pelos ventos da província de Ampurdan (ou Empurdá) que seria responsável pela loucura de seus habitantes. A imprensa hora endeusa, hora demoniza e assim Dalí não sai da mídia. Em Ampurdan fica a residência no castelo Pubol, dos séculos 14 e 15, onde está enterrada Gala, musa e mulher da vida inteira, 11 anos mais velha do que ele e morta em 1982. Os dois nunca se encontravam nesta casa, só Gala vivia ali e, diz a imprensa marrom, seus amantes. Também está localizado o atelier de Dalí num lugarejo marítimo de Portlligat, um cenário próprio para revistas, cheio de pássaros empalhados e escadas e saletas que formam um labirinto próprio para os jogos ilusórios de Dalí, além de fotos de Dalí com Picasso, com o general Francisco Franco e com Harpo Marx, e fotos de bigodes de todos os estilos – rei Felipe IV, kaiser Frederico Guilherme, Stalin. Para fechar o triângulo, o seu museu em Figueres.

Direitos controlados

A não ser que se queira ver a tumba projetada na medida para ficar acima do banheiro feminino, ou a imagem de Gala de costas que, vista com olhos semicerrados, se transforma no presidente americano Abraham Lincoln, para conhecer a obra de Dalí não é preciso viajar a Figueres – que fica a 15 quilômetros da fronteira francesa e a duas horas de trem de Barcelona. Basta enfrentar uma hora e meia de fila no Instituto Tomie Othake, em São Paulo, até domingo (11/1), último dia para destrinchar o que for possível sobre a multiplicidade Dalíniana.

Ali estão seus primeiros trabalhos de infância e juventude, incluindo a obra Desnudo (1924) em homenagem ao colega da Escuela de Bellas Artes de San Fernando de Madrid, Federico Garcia Lorca, e os filmes que fez junto com outro colega da mesma Escola em 1929 e 1930, Luis Buñuel, Um Cão Andaluz e A Idade de Ouro. O primeiro projetado como se fosse um pesadelo, o segundo, anticlerical, antiburguês, cheio de imagens cruas como o olho fatiado da mulher, plenos de simbolismo com o próprio cinema e o olhar, lançados na França. Ambos provocaram reações fortes e polêmicas cobertas amplamente pela imprensa. Aos 25 anos, Dalí estava nas páginas.

Exposta no Tomie Othake, grande parte de sua obra surrealista. O que não está exposta é a desavença que teve com os surrealistas, incluindo o espanhol Picasso, a quem Dalí escreveu um turbilhão de cartas sem resposta (Dalí Lettres à Picasso, 1927-1970,216 páginas), que um dia se recusou a falar com ele. Também com o criador do movimento André Breton, que não só virou as costas para Dalí como fez o conterrâneo, mas criou um anagrama para Salvador Dalí: “Ávida Dollars”. Pelo seu reacionarismo, repulsa ao comunismo e apoio ao ditador espanhol Francisco Franco – segundo os desafetos, Dalí não teria se espantado com a morte de Lorca por fascistas espanhóis – acabou rechaçado pelo movimento Surrealismo, embora esta seja a marca de sua obra para o grande público. Um prato cheio para atrair jornalistas para histórias suculentas e espinhosas.

Enigmática e sedutora, Gala, a musa, ex-mulher do poeta Paul Éluard, retratada em diversas obras da mostra, era odiada por Buñuel, a quem o cineasta atribuía todas as distorções de caráter e a avidez por dinheiro impregnada em Dalí. A influência sobre o marido vem desde o começo. Dalí tinha dúvidas sobre seu homossexualismo, vergonha do tamanho do seu pênis, receio de não conseguir penetrar uma mulher. Ele se autodenominava “o grande masturbador”, como chamou uma de suas obras famosas, e era virgem até Gala decidir abandonar marido e filha para viver com ele. Há depoimentos de que os três praticavam ménage à trois, Gala, Éluard e Dalí, no começo da paixão, e Gala teria se decidido pelo artista.

Buñuel tinha tanta vontade de “ver a ponta de sua língua aparecendo entre os dentes” que chegou a tentar estrangular Gala uma vez durante um piquenique – e isso também está fora das informações da exposição, mas não dos recortes de jornais da época.

Não é para menos. A curadora Montse Aguer, que trouxe a exposição ao Brasil, é diretora da Fundació Gala-Salvador Dalí em Figueres, proprietária dos direitos das obras do artista, que controla tudo o que leva sua assinatura pelo mundo. E como há falsificações… Inclusive porque, no final da vida, Dalí, já sofrendo de Parkinson e aterosclerose, assinava folhas em branco e as vendia e até hoje há dúvida sobre a autenticidade de algumas obras.

Período frutífero

A Fundação de Figueres recusa quase todos os roteiros de filmes submetidos. E ganha todos os processos se o diretor insiste em exibir a película, apesar do veto. “Todos querem ser Dalí”, dizem, e não estão equivocados: a lista inclui Antonio Banderas, Al Pacino, John Deep, Peter O’Toole. Vingou há três anos o filme Sin Límites (“Little Ashes”, na versão inglesa), com o ex-vampiro da saga Crepúsculo, Robert Pattinson, no papel de Dalí, e, nesse caso, a Fundação engoliu a suposta relação amorosa de Dalí com seu colega García Lorca (interpretado por Javier Beltrán), “desde que se mantenha a ambiguidade”.

Não dava para negar. A homossexualidade de Dalí ficou explícita na biografia monumental de 957 páginas do irlandês Ian Gibson, A Vida Desaforada de Salvador Dalí(1998, Anagrama), que não deixa dúvida sobre a vida sexual do pintor comparada com outra biografia do mesmo Gibson, Vida, Paixão e Morte de García Lorca. A diferença é a reverência que Gibson presta a Lorca e o desprezo por Dalí. “Admirar Dalí como homem é muito difícil. Ele não tem valores éticos”, afirmou o autor, ao concluir a pesquisa. Dalí fez da sua vida uma ficção, cheia de pistas falsas, delírios de grandeza, obsessão por dinheiro e a corrupção artística iniciada ao pisar nos Estados Unidos depois da expulsão do movimento surrealista. Ganhava muito dinheiro fazendo retratos de milionários, como observa Gibson, em parte para satisfazer Gala e a coleção de amantes da mulher. Estava ele próprio milionário.

A Fundação tem razão quando diz que sua intenção não é censurar. Para que inventar quando a vida de Dalí já é suficientemente controversa?

O próprio Gibson dá o mote para a importância de se conhecer a obra de Dalí: a lição que Dalí deu ao mundo, de que temos de viver a vida com criatividade, exteriorizando nossas obsessões. “De alguma forma todos somos mais livres por causa dele.”

A mostra do Instituto Tomie Othake inclui o que Gibson considera o período mais importante, os primeiros 30 anos de vida de Dalí. “Depois disso ele só fez se repetir, tanto em suas obras quanto em suas performances.”

Artista múltiplo

Entre 1926 e 1938, as imagens delirantes expostas na Tomie Othake valem a hora e meia de espera na fila. Repletas de insinuações sexuais, só faltou o relógio mole que seria uma alusão à impotência sexual (Persistência da Memória, 1931). Mas há um autorretrato cubista (1923), o Monumento à Mulher Menina(1929), o Espectro do Sex-Appeal (1934).

Dalí é um excelente desenhista. Muito além do Surrealismo estão as ilustrações para Os Cantos de Maldoror, do conde de Lautréamont (pseudônimo de Isidore Ducasse), Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carol, O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, Fausto, de Goethe, as litografias e xilogravuras de flores, frutas revelando seu interesse por botânica com releituras de desenhos do século 17, a tauromaquia já retratada por Picasso, a persistência em focalizar religião e ciência, principalmente a bomba atômica, a sempre convivência com a psicanálise de Sigmund Freud que fascinou os surrealistas. Seus títulos são tão interessantes e intrigantes quanto a própria obra.

Ilusões de ótica são seu forte, nesta mostra, por exemplo, Estudo para 50 Quadros Abstratosvistoa três metros revela três chineses e a seis metros, um enorme tigre.

A fase americana está exposta com duas paredes repletas de capas de revistas estampadas com Dalí provando que o artista era um craque do marketing pessoal, sabia atrair a imprensa em todos os continentes e idiomas. Expostos todos os filmes com Buñuel, outro dirigido por Alfred Hitchcock em 1945, Quando Fala o Coração (Spellbound, com Ingrid Bergman e Gregory Peck), e um raríssimo desenho animado de 70 anos atrás que ficou esquecido nos estúdios Disney até o ano 2000, Destino.

São 200 obras provando a justificativa de Gibson para escrever a biografia de quase mil páginas: era um gênio em criatividade, e nem falamos na fila interna do Instituto Tomie Othake para a instalação com a cara de Mae West, onde o público adora se fotografar e assim fazer parte da obra deste louco catalão.

É claro que vale a pena, também pelas homenagens a Magritte, Homem com a Cabeça Cheia de Nuvens, de 1936, e a Miró, a quem dedica o único quadro abstrato da exposição, Quatro Mulheres de Pescadores de Cadaquês, Sol, de 1928. Miró vai ser a próxima exposição no Tomie Othake, e será substituído por Frida Kahlo.

Dalí era múltiplo, quase um quebra-cabeça que você pode montar do jeito que desejar. Cada um com seu modo de usar. Vale a pena até encarar outra hora e meia para completar o módulo que faltou. Dalí ia adorar e achar que foi uma temporada curta para tanta exposição. Só até domingo (11/1).

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Norma Couri é jornalista