Tuesday, 10 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

Discursos políticos, metáforas biológicas

Nos últimos meses, palavras como ‘crise’, ‘regulação’, ‘sistema’ e ‘desenvolvimento’ foram usadas com freqüência digna de nota para explicar os mais diversos acontecimentos da economia global. Fato comum também aos jornais brasileiros já há algum tempo, me parece, porém, que desde o Seminário Internacional sobre Desenvolvimento, realizado no início do mês como parte da 29ª reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), o uso daquelas palavras começou a ser feito de maneira mais enfática, porém ainda não adequadamente refletida.

Em toda a parte foi possível ler e ouvir que o seminário discutiria ‘os desafios do Estado diante da crise econômica’ e ‘a regulação do sistema financeiro’, que seu objetivo era ‘preparar o Brasil para o novo padrão de desenvolvimento mundial’. Creio que a essa altura a metáfora biológica já deve ter ficado evidente para todos, trazendo à superfície o tema nada recente da relação entre a vida orgânica e a vida social.

Registre-se que isso não é invenção da imprensa. As informações que os jornais passaram ao público sobre o seminário tinham como base a programação oficial do evento, divulgada no site da presidência da República, que anunciava conferências e mesas de diálogo com títulos como ‘Novo padrão de desenvolvimento: crescimento, estabilidade e inclusão social’, ‘O papel do Estado no mundo pós-crise’ e, o meu favorito, ‘Globalização financeira e perspectivas de novo sistema de financiamento e regulação do sistema financeiro internacional’.

A integridade inicial e perfeita

‘Mas e daí? São apenas metáforas!’, alguém poderia objetar impacientemente. Bom, contra isso poderíamos repetir com Neil Postman que ‘uma metáfora não é um ornamento. É um órgão de percepção. Por meio de metáforas vemos o mundo como uma coisa ou outra’. Mas essa questão também foi pensada por Georges Canguilhem, médico e filósofo francês cujo nome é associado a algumas das idéias mais inovadoras na historiografia sobre as ciências da vida, com destaque para a lição sobre a não-inocência dos conceitos.

No breve texto ‘O problema da regulação no organismo e na sociedade’, de 1955, Canguilhem pergunta: ‘A assimilação usual, ora científica, ora vulgar, da sociedade a um organismo é mais do que uma metáfora? Será que essa assimilação recobre algum parentesco substancial?’ Questões que Canguilhem fez não porque o tema o preocupava particularmente, mas porque o considerava ‘fundamentalmente preocupante’, posto que a subordinação do social ao biológico serve de argumento à prática política, especialmente nos períodos de crise. E ‘crise’, nos diz Canguilhem, é um termo de origem médica para designar as mudanças que ocorrem ao longo de uma doença e cujos sintomas determinam a terapêutica adequada para cada caso. Dessa forma, a assimilação da sociedade a um organismo vivo gira em torno da idéia de medicação social, a idéia de remédios para os males sociais.

O tema da medicação social, por sua vez, faz entrar em jogo um elemento oriundo da medicina hipocrática: a regulação. É ele que primeiro problematiza e expõe a dificuldade de assimilação entre organismo e sociedade. Foi Claude Bernard, no século 19, que retomou e trouxe para mais perto de nosso pensamento a tese acerca da capacidade que o organismo tem para compensar, de forma natural, os distúrbios a que é submetido. Tal idéia, por sua vez, é baseada no fato de que o organismo existe como finalidade para-si, a ponto de adquirir certa independência em relação ao ‘meio’ – não obstante a importância desse conceito para as ciências biológicas –, a exemplo da manutenção da temperatura do corpo em relação à temperatura exterior.

Ora, isso significa que, ao menor sinal de doença, não há discordância sobre o que se espera: que o organismo apenas se restabeleça em sua integridade inicial e perfeita. Em outras palavras, o ideal de um organismo é um organismo sadio da mesma espécie.

Ordem da sociedade é a crise

O mesmo princípio não pode ser aplicado às sociedades. Enquanto no organismo é fácil identificar o resultado esperado, embora se discorde sobre a melhor forma de tratamento, nas sociedades em geral sequer há consenso sobre o que esperar ou o que procurar estabelecer. Comunismo e nacional-socialismo, por exemplo, são apenas algumas das idéias possíveis para a saúde social que já apareceram ao longo de nossa história. E, nas sociedades atuais, o que uns fazem tendo em vista a regulação do sistema pode ser compreendido como profundamente nocivo por outros, já que o resultado obtido pode agravar a ‘doença’ – cuja percepção, nesse caso, antecede à da ‘saúde’.

Ora, isso acontece porque a sociedade não possui um fim em si: ela serve para alguma coisa, de forma que, para Canguilhem, ela é mais uma máquina ou ferramenta para a obtenção, através de instituições explicadas apenas historicamente, de seja lá quais forem os valores estabelecidos como ideais. Canguilhem está se impondo contra a teoria formalizada na França do século 19 por uma corrente da sociologia chamada organicista, que defendia os princípios de unidade da ciência e continuidade da natureza. Um paradigma importante na sua época, posto que atendeu aos pedidos da sociologia por dignidade filosófica e científica – a ‘sociedade’ surge como objeto natural e, portanto, científico, segundo os padrões da época – e alimentou suas pretensões à ‘superciência’, já que seu objeto era o mais complexo entre todos.

Um sinal claro do embate que Canguilhem estava travando contra os ecos da sociologia organicista é a semelhança entre os seus argumentos e os de Gabriel Tarde, grande nome da sociologia pré-Durkheimiana felizmente salvo do esquecimento nos últimos anos (inclusive no Brasil, graças aos trabalhos de autores como Eduardo Viana Vargas).

‘De bom grado’, Canguilhem explica que ‘a organização, no nível da sociedade, é mais da ordem do agenciamento do que da ordem da organização orgânica, pois o que faz o organismo é precisamente o fato de que sua finalidade, sob forma de totalidade, esteja presente e esteja presente em todas as partes.’ E arremata, fulminante: ‘Por conseguinte, não sendo um organismo, a sociedade supõe e mesmo apela para as regulações. Não há sociedade sem regra, mas não há na sociedade auto-regulação. Nela, a regulação é sempre acrescentada, se assim posso dizer, e sempre precária.’ A ordem da sociedade é a crise.

A relação do homem com o meio

Assim, a regulação é um esforço de equilíbrio da organização social. No entanto, enquanto a meta de um organismo é o próprio organismo, as sociedades, pela falta de consenso quanto a um modelo ideal, só podem atingir esse equilíbrio a partir da intervenção sobre os elementos considerados de risco para o conjunto da população: epidemias, mortalidade infantil, analfabetismo, DSTs, desnutrição, violência etc. No cenário atual, quando a crise em pauta é fundamentalmente de ordem econômica, a ação do governo Lula se pauta na recusa da auto-regulação do mercado e prevê, com a manutenção desse paradigma, um resultado desastroso como conseqüência de uma má compreensão da dinâmica social.

O que pretendo dizer com isso, de forma talvez muito simplória e injusta com a argumentação exposta, é que, em nosso caso específico de análise do discurso político repetido à exaustão nos jornais, a passagem da auto-regulação orgânica ao agenciamento da organização social é análoga à passagem do neoliberalismo à social-democracia. ‘Estou convencido’, como diversos jornais citaram o presidente, ‘de que a saída para esta crise que estamos vivendo acontecerá se os governantes do mundo assumirem seu papel de governantes (…). A decisão que temos que tomar daqui para frente é saber se o Estado voltará a gerenciar a economia, mas com boas políticas que devem ser colocadas em prática no mundo inteiro.’ Assim, retomamos um debate cuja fluidez do objeto permitiu sua manutenção no discurso político, liberado, claro, dos equívocos de sua própria época e certamente afastado de sua origem intelectual e afetiva, mas cuja força reside essencialmente no poder da linguagem e no contexto que ela encerra.

Última nota sobre a dificuldade de se escapar a essa lógica do imaginário biológico da política: mesmo os opositores declarados da política econômica mundial com espaço em jornais de ideologia bem definida se valem de metáforas orgânicas, como morte ou falência do sistema. E, como também explicou Canguilhem, ‘ideologia’ era um tipo equivocado de filosofia fisiológica das idéias que estava em curso na França do século 18 e pretendia explicar a relação do homem, enquanto organismo vivo e sensível, com o meio em que vive. Isso até sua vulgarização conceitual por Marx, quando passou a significar, de forma geral, ‘todo sistema de idéias produzido como efeito de uma situação inicialmente condenada a desconhecer sua relação real com o real’.

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Historiador, aluno do programa de Pós-Graduação em História Social da USP, São Paulo, SP