Friday, 03 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Dor e delícia na sociedade do espetáculo

Domingo, 16 de setembro, Dona Canô chamou a Bahia para comemorar seu centenário em Santo Amaro da Purificação. Por tabela, eu fui; afinal, um chamado de Dona Canô não se pode negar.

Entrando na malcuidada Santo Amaro, que me lembrou Camocim sem mar, fiquei pensando como é que daquele confim saíram Caetano e Bethânia para o mundo. Lembrei que Dona Canô teve uma educação exímia: aprendeu inglês, francês, tocou piano e cantou muita música popular para seus meninos, introduzindo-os na arte para sempre. Foi a primeira dor funda do dia: lembrei que hoje quase não existe mais isso. Os pais enfiam seus filhos em colégios, pagam tufos de dinheiros, lavam as mãos e sequer ouvem Leãozinho junto a suas crianças.

Na sacristia, ao esperar o início da missa em ação de graças a Dona Canô, fiquei observando o vaivém das gentes todas que chegavam para o aniversário. A imagem de Nossa Senhora Aparecida também veio de Aparecida (SP) para os cem anos. Devotos, com celulares ou máquinas digitais em punho, faziam questão de fotografar a imagem. Adoração à imagem número um, dor funda número dois: mais importante do que rezar era fotografar a santa.

Padres ‘participantes’

A adoração à imagem de Nossa Senhora apenas se juntou à adoração às imagens de Caetano, Bethânia, Regina Casé, Elisa Lucinda, Jacques Wagner ou de qualquer outra pessoa não anônima que se encontrasse lá – e eram muitas, por sinal.

O que era para ser uma missa em ação de graças, um encontro da família, tornou-se um espetáculo, que seria visto mais tarde em todos os jornais. Eu, que fiquei nos bastidores, quase não vi o branco dos cabelos da Dona Canô. Ela estava a 20 metros de mim, mas eu não conseguia ver a miudeza da criatura. Cinegrafistas, fotógrafos, jornalistas e caras-de-pau abarrotavam os acessos, a vista, o vento, maltratavam Dona Canô com a luz das câmeras. Adoração à imagem número dois, dor funda sem-número: mais importante do que a celebração dos cem anos era mostrar tudo mais tarde pela televisão.

Como testemunha ocular do meu tempo, coisa que aprendi com meu pai, queria ver Dona Canô, queria ver uma pessoa de cem anos, queria ver a missa, mas o jeito era seguir o foco das câmaras. Em um dos momentos, percebi todos os flashes voltados para um certo canto, pensei que fosse Dona Canô, mas não: eram Bethânia e Caetano. Dona Canô estava do outro lado, esquecida, esticando o pescoço, tentando ver, entre os câmeras e fotógrafos, os filhos cantando na missa de seu centenário.

Eu quis sentir pena dos padres, que foram obrigados a dividir o altar com os cinegrafistas e caras-de-pau, mas os padres também faziam parte do fuzuê do espetáculo: queriam loucamente ser fotografados e fotografar as celebridades.

Regina, a sensação

Antes da missa começar, um dos padres (a missa foi celebrada pelo cardeal-arcebispo de Salvador com o auxílio de 14 padres) me pediu para que, se eu pudesse, ficasse com a máquina digital dele e, quando tivesse uma oportunidade, o fotografasse perto de Bethânia e Caetano; só desses dois, ele frisou, o resto não. Eu neguei, pedi desculpas com cara de desprezo por um padre que esconde uma máquina debaixo da batina enquanto faz olhar de compaixão diante da imagem de Nossa Senhora Aparecida. Mas enquanto eu fazia a minha cara de desprezo, o governador da Bahia, Jacques Wagner, entrou no recinto. O padre pidão quase quis que eu o fotografasse com o governador, fiz um olhar matador e ele desistiu. Saiu saltitando, foi pedir para uma outra pessoa. Adoração à imagem não sei qual número, dor funda: eu ria de tristeza.

Esse padre-auxiliar não foi o único. Durante a missa, volta e meia os padres se revezavam, arranjavam uma brechinha, iam lá na frente, levantavam o braço e registravam Bethânia e Caetano, Regina Casé etc.

Ao final, depois de, com toda razão, se irritarem, Caetano não deu entrevista para a imprensa. Bethânia deu um grito quase assim: uéu, deixa eu tirar minha mãe daqui. A aniversariante foi embora, o fuzuê continuou: Regina Casé foi a sensação.

Bonitinha, miudinha…

Fui embora de Santo Amaro da Purificação querendo ter vivido no tempo de Dona Canô, quando o melhor as câmeras não escondiam, quando o melhor era o presente, era estar perto, ver para crer.

Fui embora de Santo Amaro da Purificação sentindo pena de Dona Canô por ela ter vivido até ver o mundo se transformar nisso.

Até que ponto vai a sociedade do espetáculo? Até desistirmos de presenciar acontecimentos e ficarmos enfurnados em casa, vendo tudo pela televisão.

De noite, vi Dona Canô bonitinha, miudinha, quietinha, com um vestido brilhante, no Fantástico

******

Jornalista, Salvador, Bahia