Sunday, 05 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Ficha suja virou item do orçamento

Mais uma história proibida para menores enriqueceu nos últimos dias a tradição nada exemplar do Orçamento da União. Na quinta-feira (15/12), o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cezar Peluso, deu o voto necessário para Jader Barbalho (PMDB-PA), um ficha suja, ocupar uma cadeira no Senado. No dia anterior, ele havia recebido quatro figuras peemedebistas de peso – os senadores Valdir Raupp (RO), Renan Calheiros (AL), Romero Jucá (RR) e o deputado Henrique Eduardo Alves (RN). Na quinta-feira todos os grandes jornais mencionaram pressão do PMDB sobre a corte. Só o Globo citou, nas últimas linhas do material, recentes intervenções de parlamentares a favor do aumento salarial para o Judiciário. Foi uma luzinha a mais na cobertura do dia.

O Estado de S. Paulo insistiu no assunto e foi mais fundo na edição de sexta-feira (16). Segundo o jornal, a comitiva do PMDB havia tratado com Peluso de dois assuntos – a autorização para Jader Barbalho tomar posse e o aumento para o Judiciário. Ninguém pareceu preocupado em resguardar pelo menos o decoro aparente. “Vamos tentar convencer o governo a dar o reajuste”, disse o deputado Henrique Eduardo Alves, líder do partido na Câmara.

Alguns dias antes, a Comissão de Constituição e Justiça, presidida pelo deputado João Cunha (PT-SP) havia defendido o aumento por meio de emenda à proposta de lei do Orçamento. O presidente da comissão, João Cunha (PT-SP), é réu no processo do mensalão. Na terça-feira (13), essa emenda já havia sido derrubada por um relator setorial, o senador Inácio Arruda (PCdoB-CE). Mas João Cunha havia pelo menos tentado e seria uma ingratidão esquecer esse detalhe.

A estranha “cota presidencial”

Finanças públicas podem render boas histórias políticas e econômicas – com frequência, uma rica mistura dos dois gêneros, como é o caso, agora, do penoso ajuste fiscal de muitos países da Europa. Mesmo em épocas de prosperidade e águas mansas na economia, o assunto pode ser fascinante. No prefácio de um dos mais famosos manuais publicados no século passado sobre o assunto – The Theory of Public Finance –, Richard Musgrave, de Harvard, escreveu:

“Ao contrário de alguns puristas econômicos de hoje em dia, eu reconheço mais que uma pura motivação científica: a ação inteligente e civilizada do governo e o delineamento de suas responsabilidades estão no coração da democracia. De fato, a conduta do governo é o campo de teste da ética social e da vida civilizada.”

Política fiscal afeta o nível de emprego, as possibilidades de transformação do aparelho produtivo e a distribuição de benefícios entre os diferentes grupos sociais. A meta do equilíbrio fiscal de longo prazo é apenas um dos problemas da política orçamentária. No entanto, é uma questão importante e a presidente Dilma Rousseff pode justificar com mais de um argumento o compromisso com um sólido resultado fiscal em 2012. “Não é hora de dar aumento salarial” para o serviço público, disse ela num encontro de fim de ano com jornalistas, na sexta-feira (16/12). A observação foi motivada, obviamente, pela discussão sobre as pretensões do Judiciário – aumento de 14,79% para juízes e de 56% para os demais servidores da Justiça.

A conversa foi ampla, naquele encontro, e vários assuntos da administração foram examinados, sempre com o inevitável tempero político. O Estadão deu prioridade à questão fiscal, na manchete de sábado: “Dilma diz que ‘não é hora’ de dar reajuste aos servidores”. A Folha de S.Paulo deu destaque a um dos problemas centrais da política de coalizão: “Dilma rejeita interferência de partidos no governo”. O sentido não é literal. Ela não decidiu rejeitar a participação dos aliados na distribuição dos ministérios, mas introduziu uma ressalva: a gestão é assunto de governo, não de partidos aliados.

Parece óbvio, mas no Brasil o detalhe faz diferença. Afinal, a simples noção de “cotas partidárias” já é muito estranha. Mais estranha, ainda, a ideia de ministérios, como o da Fazenda, pertencentes a uma “cota presidencial”. Enfim, o Brasil não é um país comum, mas a linguagem reproduzida pela imprensa tende a dar uma aparência de normalidade às maiores aberrações da vida política. Seria saudável os jornalistas darem uma pausa para respirar, de vez em quando, e perguntar: “Cota presidencial? Que diabo é isso?”

***

[Rolf Kuntz é jornalista]