Friday, 03 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Um dispositivo de educação na contemporaneidade

A televisão – e, notadamente, a telenovela, o principal produto cultural de produção e exportação do Brasil – estabelece pedagogias e visões de mundo em um processo educativo unilateral e constante. São modelos de pais, filhos, educadores, eleitores, trabalhadores e, acima de tudo, consumidores, que são transmitidos diretamente para os telespectadores na expectativa de que se comportem em consonância com o perfil de seu respectivo grupo social. Claro, tal direção nem sempre se completa e as pessoas reconhecem o conteúdo midiático a partir de um conjunto de mediações, mas não deixam de ser impactadas pelas indústrias culturais, geradoras de um padrão que, ao fim, acaba sendo aquele esperado para todos.

Nessa direção, deve-se posicionar o que se está tratando: educação é um termo guarda-chuva que abriga muitos conceitos, por vezes polissêmicos. Em sua etimologia, educação apresenta duas derivações, quais sejam: o verbo latino educare ou educ?re. Educare refere-se à ação de formar, disciplinar, conduzir, orientar, ensinar e treinar. Já a abrangência deeduc?re é ainda mais rica porque denota extrair, provocar algo ainda não manifesto, ou seja, latente. O vocábulo pedagogia, por sua vez, vem do grego paidagogós, traduzindo-se como condutor de crianças. Logo, entende-se que pedagogo seria condutor de crianças ou condutor da formação de pessoas de todas as idades, hoje, no processo de educação continuada.

Pedagogia, portanto, deve ser concebida como ação do presente que, de certa forma, constrói o futuro, entendimento que cabe muito bem para a inclusão da prática televisiva e que de modo algum representa juízo de valor. O que se insiste aqui é na força da TV enquanto formadora de concepções de sociedade, independentemente de ser algo que possa ser enquadrado como negativo ou positivo, ainda que a ideia de merchandising social (apontada regularmente como exemplo da boa conduta televisiva) deva ser criticada, como o agendamento do público pelo privado, com interesses não necessariamente sociais como guia. Unindo a força da imagem e a dimensão contributiva do áudio, os sistemas televisivos espalham-se como exemplos na sua conformação contemporânea: a PluriTV.

As indústrias culturais e a sociabilidade

O que causa espécie é que, junto com o espaço que tal produto ocupa nas grades de programação, tem-se ainda o acúmulo de personagens que nutrem a maldade a qualquer custo, projetando péssimos exemplos. A telenovela Passione, por exemplo, conseguiu ter mais personagens malvados do que bons. Os personagens da telenovela baseiam-se nos tipos ideais weberianos, que constatam um conceito sobre um fenômeno por meio de suas características gerais e mais relevantes. Mas também não é preciso exagerar: os bonzinhos são caricatos em ingenuidade e os maus estabelecem verdadeiras fórmulas de crueldade e desumanidade. Este modelo segue como regra nas produções, como foi com Cordel Encantado, integrante do novo filão de regionalismo descoberto (Hoje é dia de Maria, A pedra do Reino, entre outros).

Do ponto de vista econômico, político e social, observa-se que um produto cultural como uma telenovela corrobora para a manutenção de forças e relações de poder hegemônicas impostas pela ordem capitalista contemporânea, através das empresas, dentre outros mecanismos. Constituindo-se o conteúdo televisivo, por si próprio, um decisivo processo educativo, independentemente do que esteja abordando, mais cuidado ainda deve ser tomado quando se trata de programação infantil, que recebe um tratamento especial nos melhores exemplos de mercado televisivo e carece de mais proteção no Brasil. Mais do que inserir em sua grade temas sociais a partir de suas próprias lógicas, as indústrias culturais deveriam abrir espaço em sua programação para a discussão de seu papel na sociabilidade.

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[Valério Cruz Brittos e Jacqueline Lima Dourado são, respectivamente, professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Facom-UFBA; e professora na UFPI e doutora em Ciências da Comunicação pela Unisinos]