Thursday, 03 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Sangue e algodão-doce

De longe, mais parece um encontro de numismatas ou filatelistas, reunidos no suntuoso Palácio Chapultepec, de onde se vê a Cidade do México em 360 graus.

Na semana passada, quase uma centena de “jornalistas literários” latino-americanos (em espanhol, “cronistas”) -editores, feras da reportagem internacional e 15 repórteres nascidos depois de 1980- debateram um gênero que, segundo Elena Poniatowska, 82, decana do jornalismo mexicano, é a “poesia do futuro”.

O encontro “Nuevos Cronistas de Indias” (cronistas.fnpi.org) foi organizado pela Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI), que a partir deste mês adota o nome de seu fundador, Gabriel García Márquez.

O México é o país mais perigoso para o metiê, segundo o repórter da revista “The New Yorker” Jon Lee Anderson -o único norte-americano presente. Um exemplo: em 2011, a cabeça de uma repórter da revista “Proceso” foi deixada em cima de seu teclado, numa mensagem sem ambiguidades nem toques literários.

Banalização

Cabeças cortadas e cadáveres se multiplicam nos tabloides. A tensão entre o cultivo do estilo e a urgência de reportar situações que nada têm de poéticas é um dos eixos das discussões.

“Não aguentamos mais ler perfis de chefes do tráfico”, disse o colombiano Camilo Jiménez. Já a chilena Mónica González, da CIPER, criticou o preciosismo de editores que cultivam o texto em detrimento da informação relevante.

O dilema entre as reportagens feitas de “algodão-doce” e as que têm real impacto na vida das pessoas é falso, afirma o chileno Cristian Alarcón, diretor da revista argentina “Anfibia”: “Toda narrativa jornalística depende da investigação, mas nem toda investigação depende da narrativa”.

Seja como for, o encontro mostra um bom momento para o tal “jornalismo literário” na América Latina. E o foco nos meios impressos mostra que a internet, no jornalismo, ainda não passa de uma promessa.

Nos últimos 15 anos, assinala Lee Anderson, o continente viveu uma explosão de revistas, algumas muito refinadas, como a mexicana “Gatopardo”, a colombiana “El Malpensante”, a peruana “Etiqueta Negra”, a chilena “The Clinic” e a brasileira “Piauí”.

Além dessas publicações, estavam representados jornais -a Folha, o mexicano “Reforma”, o espanhol “El País”, os argentinos “Página/12” e “Clarín”-, entidades como a Fundação Tomás Eloy Martínez (links para os sites dos participantes em folha.com/ilustrissima) e editores de livros.

Elitismo

Esse florescimento num continente marcado pelo analfabetismo traz desafios. “O perigo do jornalismo literário é cair na frivolidade, na cobertura de celebridades voltada para uma elite”, disse à Folha Jon Lee Anderson. “Não podemos competir com o 'hard news' e todos precisamos dele, mas a reportagem de fôlego pode conter muitos gêneros ao mesmo tempo e, em três meses de apuração, alimentar a história.”

Lee Anderson também pede mais rigor na definição do que é uma reportagem de fôlego e defende o caráter democrático da grande reportagem, que deve atingir todos os meios sociais.

Isso também vale na América Latina, que não tem uma revista de grande alcance como a “New Yorker”? Como driblar a vocação para o elitismo? Anderson reconhece que, no México, ainda se escreve para uma elite: “Afinal, somos meia dúzia de escritores reunidos no palácio de um imperador”.

Mendigos, uni-vos!

Enquanto isso, no Zócalo, praça no centro histórico, desenrolava-se outro encontro internacional: Homeless World Cup, a Copa do Mundo de moradores de rua. Em pequenas quadras, com arquibancadas, patrocinadores, torcidas e uniformes, 56 seleções formadas por mendigos barbeados e arrumadinhos disputavam o título mundial.

Até o fechamento desta edição, a campanha brasileira era perfeita: entre várias goleadas, batemos a Argentina por 8 a 2, e a Coreia do Sul, num formidável 17 a 3. Os resultados e os melhores momentos em homelessworldcup.org.

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[Paulo Werneck é editor do suplemento “Ilustríssima” da Folha de S.Paulo]