Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A Gaza do entretenimento

Em um instante, o delírio dá lugar ao desespero. Os apaixonados gritos de uma torcida fanática sucumbem frente a pulsantes brados em um indignado sotaque de espanhol andino. “¡Asesinos! ¡Asesinos! ¡Asesinos!” (Assassinos!) Em Oruro, o paradoxal futebol ganhava trágicos e inéditos contornos. Kevin Douglas Beltrán Espada, jovem torcedor do San José, era nova vítima na Gaza do entretenimento: o estádio de futebol.

“O que foi pensado para salvar matou”, escrevia Ugo Giorgetti. O disparo de um sinalizador marítimo, artefato de uso proibido em jogos disputados pela Copa Libertadores da América, matou o torcedor de apenas 14 anos. Responsabilizou-se pelo disparo um jovem três anos mais velho que a vítima. Desde então, muito se suspeitou de se tratar de uma possível manobra para proteger a principal torcida organizada, além da própria instituição Corinthians. Pelo jornal boliviano La Razón, Lorenzo Carri alertou: “Por mais que negue veementemente, a entidade brasileira [Corinthians] – como tantos outros clubes desta parte do mundo – tem uma dissimulada, porém evidente, relação com sua torcida organizada. E tratar de resolver o desgraçado episódio com a declaração de um autor aparentemente ‘falso’, menor de idade, me parece uma saída indigna” (tradução livre). O jornalista Juca Kfouri desabafou: “Talvez seja verdade, mas, mais conveniente, impossível. Se tudo ficar por isso mesmo, difícil segurar a vontade de desistir…”

Uma guerra imbecil

Mesmo que o menor, conhecido pelas iniciais H.A.M, seja provado autor do disparo que matou o torcedor do San José, o episódio não pode se resumir a esse cômodo veredicto que joga nas costas da inconsequência de um jovem toda a responsabilidade por uma tragédia cuja iminência, há tempos, era anunciada. O uso de sinalizadores nos estádios de futebol é prática corriqueira entre membros de torcidas organizadas. Então, por que apenas um deles deve ser punido? É evidente que o autor do crime merece punição mais severa, mas sanções a quem desrespeita as exigências da Conmebol (apesar de instituição caótica) são imperativas.

O San José, mandante da partida, responsável pela organização do espetáculo, também falhou. Em reportagem feita para o jornal La Razón, o jornalista Rafael Sempértegui escreveu: “Segundo as normas, o clube organizador é o primeiro responsável. O San José devia ter coordenado uma operação com a polícia para evitar que os fogos fossem introduzidos ao cenário” (tradução livre). Por meio de texto editorial, o jornal boliviano também expôs a parcela de culpa da polícia local: “Se esperaria uma sorte de mea culpa entre os membros da instituição verde-oliva [polícia boliviana], que deveriam se perguntar quanta responsabilidade têm nessa lamentável perda, que nunca teria acontecido se existisse um rigoroso controle nas entradas, capaz de evitar o ingresso de sinalizadores e outros artefatos perigosos. Se as autoridades e forças da ordem insistem em atribuir toda a responsabilidade em quem lança esse tipo de artefato, em vez de adotar medidas que restrinjam seu emprego, previsivelmente este tipo de incidente seguirá acontecendo”(tradução livre).

A Gaviões da Fiel, sem dúvida, também tem responsabilidade na morte de Kevin Beltrán; assim como o próprio Corinthians. No entanto, é importante destacar a ressalva feita por Juca Kfouri para que a discussão seja menos contaminada por um “anticorintianismo” fanático (da mesma forma que o oposto deve ser evitado): “E, depois, não transformar a nova tragédia em mais uma guerra clubística imbecil. Desnecessário lembrar que a estupidez, infelizmente, não é monopólio de nenhuma torcida e que todas elas já causaram mortes por onde passaram.”

Ato de torcer

Alguns fatos nos levam a crer que foi uma ação acidental, ocorrida quando a torcida corintiana comemorava o gol de Paolo Guerrero, que punha a equipe paulista em vantagem na partida. Eis que surge mais um paradoxo na tragédia do estádio Jesús Bermúdez, na Bolívia: “As melhores mentes e as piores agora se igualam na mesma loucura. Que eu saiba é a primeira vez que se mata num estádio para comemorar. É a primeira vez, que eu saiba, que se mata para celebrar um gol, que se mata por alegria, não por ódio. Alguém agarrou um objeto que já faz parte de sua vida normal, como um pente ou uma carteira, e comemorou. Esse objeto da morte era como sua corneta, ou seu tambor”, aponta Ugo Giorgetti em seu texto “Que fazer?”

Os paradoxos da história de Kevin revelam a natureza complexa da violência no esporte. A possível não intencionalidade do autor do disparo coloca-nos diante de um caso raro, que parece nos ludibriar a todo momento. Em artigo publicado neste Observatório (“Corinthians paga por praga“), a jornalista Silvia Chiabai – apesar de fazer importantes ponderações sobre o tema e criticar aqueles que, acima da justiça, querem ver o Corinthians prejudicado pelo simples prazer de um infantil revanchismo clubístico –, a meu ver, escorrega ao rechaçar a tese de violência no episódio:

“A tese da violência, aventada por muitos, só se justifica para os que consideram o crime não como fruto de irresponsabilidade, culposo, mas doloso, intencional.”

Como já foi dito neste artigo, alguns fatos nos levam a crer que não houve intenção no disparo do sinalizador. No entanto, não é necessária intencionalidade para que a ação se configure como violência. Talvez possamos ir além e discutir um suposto dolo no episódio (leitores conhecedores da área de Direito, por favor, façam as correções e observações que julgarem necessárias). Sabendo que, apesar da ineficácia na fiscalização, é estritamente proibido o uso de sinalizadores no interior dos estádios de futebol pela Copa Libertadores da América, poderíamos dizer que quem ignora a regra se responsabiliza por eventuais acidentes (no caso, mais que isso: tragédia)?

Se, por um lado, esse episódio apresenta traços de ineditismo, o devastador desfecho é o mesmo dos diversos capítulos do drama futebolístico, best seller mundial. Mesmo não se tratando da manifestação do ódio tal como conhecemos, o que ocorreu em Oruro pode ser oportunamente comparado aos demais casos de violência no futebol em alguns pontos. O professor da faculdade de Direito da USP Jorge Luiz Souto Maior, em texto intitulado “O futebol, a vida e a dignidade”, escreveu: “A atitude de uma pessoa de levar a um estádio de futebol um artefato como o que gerou a tragédia está integrada ao contexto da grave distorção que se instalou nos estádios de futebol (e fora deles) no sentido de que a violência, individual ou coletiva, está justificada pelo impulso do ato de torcer.”

Geração de emoções

Heloisa Helena Baldy dos Reis, especialista em segurança em espetáculos esportivos, autora do livro Futebol e Violência (2006), afirma que as raízes da violência no futebol estão no cerne da própria sociedade e abre aspas para o deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), que diz:

“Não há como escapar ou negar que a exclusão social é um fator preponderante dentre as múltiplas causas da violência. A pobreza, as péssimas condições de vida, o desemprego, a falta de escola, de moradia, de cultura, de lazer etc.”

O futebol, segundo Heloisa, sempre envolveu relações políticas e sociais complexas. A autora vê fortes vínculos entre a disseminação da violência e as origens patriarcais do esporte:

“No futebol, sempre esteve presente uma certa dose de violência, tanto no terreno de jogo como entre os torcedores. O futebol foi criado sob valores de masculinidade, valores exacerbados de virilidade, força e sobrepujança. Em sociedades como as nossas, patriarcais, caracterizadas por valores de masculinidade e com um poder predominantemente masculino, o futebol encontrou terra fértil para solidificar-se e dar muitos frutos, principalmente ao capital.”

A autora, porém, esclarece: “Isso não quer dizer que perpetuaremos eternamente a cultura da existência de uma relação simbiótica entre futebol e violência.”

Outros fatores, como infraestrutura inadequada de estádios, decisões de árbitros, declarações de jogadores, treinadores e dirigentes, ausência dos devidos controles policiais e consumo de bebidas alcoólicas, são expostos por Heloisa como influentes no incremento da violência. Estudiosos da psicologia social acrescentam à lista as frustrações vivenciadas pelos espectadores de futebol, que encontram no esporte “uma das principais razões de ser na geração de emoções”, de acordo com Eric Dunning, citado por Heloisa.

Atletas canonizados

Além disso, a identificação que o torcedor estabelece com seus ídolos representa uma potencial ameaça à segurança no esporte: “Essa identificação em indivíduos que não têm uma identidade própria pode levá-los a não perceber os limites entre a sua vida e a sua equipe, ou entre a sua vida e a vida de um ídolo (jogador), e, desta forma, passa a viver suas emoções basicamente por meio dos acontecimentos esportivos, do sucesso e da derrota de seu clube predileto. Alguns dos torcedores organizados dedicam a vida à sua torcida. Vivem para ela e, por ela, chegam a perder qualquer outra referência, pois é essa experiência compensatória que lhes dá identidade”, acrescenta a autora de Futebol e Violência.

É neste contexto que entram em cena os mass media. Jerónimo Nieto, citado na obra de Heloisa Helena Baldy dos Reis, escreveu em Temas para el debate:

“A identificação coletiva propiciada pelo futebol é explorada pelos meios audiovisuais de forma especial pela televisão, sobretudo depois do aparecimento e diversificação das televisões privadas. A batalha pelas audiências tem utilizado o futebol como elemento de conquista de um bom número de espectadores e com a continuidade necessária como para fixar e estabilizar essas audiências por parte desses canais de televisão.”

Vale salientar também a exploração de uma linguagem agressiva por parte desses meios no esporte, estimulando o desencadeamento da violência. Além disso, evidencia-se o crescente uso do maniqueísmo como ferramenta discursiva. Não é incomum vermos atletas serem canonizados – afinal, futebol tornou-se religião – por comunicadores que se sentem na eterna necessidade de fabricar heróis para uma sociedade carente de autoconfiança. Do outro lado, vemos a depreciação de infortunados, expostos à sorte, a critérios, senão aleatórios, desprovidos do mínimo de lógica na maioria dos casos.

O colorido, o pitoresco, o impressionante

Em outubro do ano passado, a revista esportiva Placar estampou, em sua capa, uma fotomontagem que punha o jovem atacante santista Neymar pregado na cruz – tal como Cristo no quadro do pintor espanhol Diego Velázquez, conforme observou o jornalista João da Paz em artigo publicado neste Observatório (“A crucificação de Neymar“). Para completar as polêmicas alusões feitas a figuras de grande significado religioso, a revista trouxe, na mesma edição, a seguinte chamada: “Chamado de ‘cai-cai’, o craque brasileiro vira bode expiatório em um esporte onde todos jogam sujo”.

Por ora, deixemos de lado o mérito da tese defendida pela reportagem. É importante fazer, aqui, uma indagação sobre os resultados que comparações como tal podem implicar na já instável atmosfera do futebol, que, vez ou outra, nos dá sinais de barbárie. Jornalisticamente vale a pena? Eu duvido. Os efeitos colaterais eram altíssimos, mas o mercado parece ter falado mais alto. O desrespeito a crenças religiosas, além dos riscos de poder contribuir na manutenção do status quo da violência nos estádios por meio de um suposto estímulo ao fanatismo, não me parece contraponto desprezível para a realização de uma matéria que pretende defender um personagem que já se tornara herói nacional – na verdade, anti-herói com alguma herança genética do Zé Carioca.

Outro ponto sensível no que diz respeito à relação entre a cobertura esportiva feita por grande parte da mídia e a violência é a questão das torcidas organizadas. Thomas Castilho, em texto disponível no blog Viomundo, critica a forma como a imprensa trata esses grupos:

“Um dos pontos que mais chama a atenção é a relação ambígua que a imprensa alimenta com as torcidas organizadas. Ainda que já tenham recebido todas as adjetivações possíveis e imagináveis, são essas mesmas torcidas que são utilizadas para promover o espetáculo. Resumidamente, o lado belo das torcidas serve apenas para promover o evento e render uns trocados, sem dar a elas qualquer direito à voz, qualquer direito à defesa.”

Lorenzo Carri, do jornal boliviano La Razón, envereda por uma perspectiva semelhante:

“Os meios de comunicação, especialmente a televisão, que tem câmeras e tempo disponíveis antes dos jogos, exageram no esforço de mostrar e louvar o ‘colorido, o pitoresco, o impressionante espetáculo das tribunas’, especialmente em cortejos noturnos, e então outros torcedores, de outros lugares, tentam superar o que foi visto na TV” (tradução livre).

Mais violência

Nesse cenário, no qual o espetáculo se faz cada vez mais presente, o entretenimento cresce nas redações. No entanto, na editoria de esporte – provavelmente a mais assolada por crises existenciais na atualidade –, o conflito entre interesse público e entretenimento dá sinais de trégua. Mais que um singelo tratado de paz entre as partes, a comunhão do par faz crescer o infotenimento, uma mina de ouro no quesito “audiência” (ao menos, em curto prazo) para os donos de grandes emissoras.

O projeto desenvolvido pela Rede Globo no final da década passada, principalmente no programa Globo Esporte (programa assumido por Tiago Leifert em São Paulo), é um bom exemplo dessa nova tendência. O grupo acredita – ou, pelo menos, diz acreditar – que tal forma de cobertura esportiva contribui na redução dos índices de violência. Ainda é cedo para constatações ou refutações, mas é difícil acreditar que essa tenha sido a real motivação da emissora, que, antes da mudança, enfrentava três anos consecutivos de queda-livre na audiência do programa. Além disso, mais do que nunca, a divinização de atletas se faz presente nas narrativas dos novos programas; e, conforme já foi escrito neste artigo, esse é um dos fatores que contribuem no incremento da violência, na medida em que estimula a identificação e o fanatismo por parte de alguns torcedores, segundo estudiosos do assunto.

Portanto, me arrisco a dizer que o que está por trás de todas essas mudanças no jornalismo esportivo pouco efeito tem na questão da violência. Na verdade, trata-se de uma ampliação da fórmula do Big Brother para garantir índices ainda mais expressivos de audiência, independentemente dos efeitos colaterais que isso possa causar. Então lhes pergunto: ainda há espaço para o Jornalismo no esporte? Será que reportagens como as que, no ano passado, garantiram aos jornalistas Filipe Coutinho, Julio Wiziack, Leandro Colon, Rodrigo Mattos e Sérgio Rangel (“O jogo suspeito e a queda de Ricardo Teixeira”) o Prêmio Esso de Jornalismo, estão com seus dias contados? Será que teremos que nos contentar apenas com os resultados dos jogos e a cor do cabelo do Neymar?

Se essa realmente for a nossa sina, espero que, pelo menos, vidas sejam poupadas e o futebol deixe de ser palco de conflitos de fé. “Há a impressão de que os grupos jovens do século 21 estão pedindo socorro a uma sociedade que não os percebe, não os compreende, e a resposta de suas ações transgressoras é mais violência” (Heloisa Helena Baldy dos Reis).

In memoriam: Kevin Douglas Beltrán Espada, cujo falecimento completa um mês nesta semana.

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Marcos Mortari é estudante de Jornalismo, São Paulo, SP