Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Euforia treinada e o equívoco midiático

Atualmente o setor publicitário espelha como nenhum outro o ufanismo em que vive o Brasil. Inúmeras marcas, igualmente novas e de tradição, “vestiram” a roupa do futebol. Thomas Kister, o correspondente do jornal Süddeutschte Zeitung durante a Copa das Confederações percebeu isso muito bem com artigo publicado no sábado (15/6) sob o título “Um nação inteira de chuteiras” (tradução livre; ver aqui, em alemão).

Especialmente durante o horário nobre, a avalanche de comerciais tem como resultado uma overdose de ufanismo e de bom humor injetado: brasileiras e brasileiros sorridentes mirando o horizonte promissor, treinando para ser um torcedor esperto: a cerveja certa, a sandália certa, o banco certo, o carro certo. Finalmente ter uma Copa do Mundo na porta de casa, finalmente ter a mídia internacional focada no Brasil para uma cobertura positiva.

Tanto ensinamento e tanta preparação não foram suficientes para tirar de letra um evento do porte do torneio da Fifa. Na abertura, o mundo assistia, ao vivo e em cores, a presidenta do Brasil e o presidente da Fifa testando os microfones com sopros contínuos. Depois de sentidos minutos, algum funcionário de alto escalão voltou-se para Blatter dizendo “It's ok”, e como isso linguisticamente não funcionou, o funcionário apelou para o gesto do dedo polegar pra cima, coisa que o mundo todo entende, até o Blatter.

Texto decorado

Em um portunhol vergonhoso e obsoleto para o chefão de uma organização internacional, Blatter anunciou a presidenta Dilma, que colheu vaias homéricas. Como se não bastasse a ignorância linguística de Blatter, ele ainda mandou lição de moral para os brasileiros, perguntando para onde teria ido o “espírito esportivo” (ver aqui).

O jornalista alemão Jens Weinreich (ex-Berliner Zeitung), hoje freelance, está há mais de duas décadas no encalço da Fifa e do Comitê Olímpico Internacional (COI) no que diz respeito à corrupção. Em seu blog Sports and Politics ele menciona que Blatter, além de ter habilidade ímpar em dissimular, “também quer ser amado” – algo totalmente infactível. Vale lembrar que na abertura da Copa do Mundo na Alemanha, Blatter também foi vaiado. O agravante é que ao seu lado havia o ser mais carismático do país, o kaiser Franz Beckenbauer, ovacionado logo depois de Blatter, tornando o antagonismo de popularidades dos dois, ainda mais gritante (ver aqui).

Apática e imune de qualquer porção de empatia ou carisma, a presidenta Dilma esperou o sinal verde de Blatter para mandar seu texto decorado: “Está aberta a Copa das Copa das Confederações da Fifa 2013”.

Ufanismo treinado

Referindo-se às vaias, Galvão Bueno comentou: “Na democracia em que vivemos, é um direito absoluto”. Será que o comentarista da TV Globo também acha legítimo os protestos em várias capitais do país, contra o aumento de custo dos transportes? O que podemos ter certeza é que Galvão jamais poderá servir de referência no quesito democracia, como se a exerce, conquista e mantém.

Richard von Weizsäcker, ex-presidente alemão e também ex-prefeito de Berlim, disse certa vez, em discurso histórico: “A democracia não é algo que cai do céu, nem algo que podemos armazenar. Ela tem que ser conquistada todos os dias”. Enquanto grande parte do Brasil é influenciada pelo ufanismo midiático, falta por outro lado naturalidade frente à internacionalização que, de fato, o Brasil vive. Como forma não é conteúdo, Galvão cometeu uma gafe provinciana, regada por percepções culturais passadas, obsoletas. Quando o árbitro português desejou aos capitães dos times do Brasil e Japão “have a good match!”, Galvão imediatamente se mostrou surpreso com a naturalidade do português: “Ih, ele falou em inglês!”

O culto do exótico

O Domingão do Faustão, em euforia sem freios sobre o torneio da Fifa, convidou japoneses para “mostrarem sua arte” e, claro, dançarem samba com uma das morenas estonteantes do programa, deliciando a plateia sempre solícita com o exotismo do gringo japonês.

O Caldeirão do Huck,no sábado (15/6), foi na mesma onda midiática. Luciano Huck, desprovido de qualquer talento, vestido como japonês, ficou horas brincando de gringo no serviço de “delivery”, entregado sushi na casa dos clientes. De um lado, o ufanismo treinado; do outro, o ranço de um país construído a partir do terceiro andar, sem o alicerce da educação.

Meias verdades

No preâmbulo do jogo Espanha x Uruguai, na Arena Pernambuco (o último dos seis estádios entregues para o torneio da Fifa), os comentaristas do SportTV denunciaram as condições do estádio ainda inacabado, reclamando de terem que subir as escadas até o quarto andar, já que os elevadores não ficaram prontos. Restos de material de construção ao longo das escadas, além da ainda restrita capacidade de acolher torcedores, foram alguns dos comentários referentes à arena.

Na transmissão do jogo na Rede Globo, nada desse tema foi mencionado. Está mais do que na hora de comunicar a Galvão Bueno que direito à informação sobre todos os lados da notícia é uma condição intrínseca, sem a qual não se faz jornalismo com credibilidade.

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Fátima Lacerda é jornalista freelance, formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988