Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Ex-prefeito do Rio inaugura autoentrevista

Repórter – Como o senhor explica o seu envolvimento no caso das ambulâncias superfaturadas?

Deputado – A resposta está na minha ‘autoentrevista’ no meu blog.

Repórter – Já vi. Mas o senhor não diz lá coisa com coisa!

Deputado – Leia com mais atenção. Aquilo que eu tinha a dizer sobre esse assunto, eu já disse no blog.

Se a moda lançada pelo ex-prefeito do Rio de Janeiro César Maia pegar, cenas iguais a essa descrita no diálogo acima serão bastante comuns no dia-a-dia da política brasileira. Para evitar a abordagem, sempre muito dura, constrangedora, dos repórteres, os políticos se anteciparão aos jornalistas e eles mesmos vão-se entrevistar e publicar as ‘respostas’ em seus diários eletrônicos. Maravilha das novas tecnologias de informação.

Segundo o jornal Estado de S. Paulo, o ex-prefeito César Maia, um dos mais controversos políticos do país, inaugurou o regime de ‘autoentrevista’ esta semana naquilo que ele chama de ‘ex-blog’. César Maia pergunta e César Maia responde:

Como vê as disputas internas no DEM?

– Se há disputa, se ela é tão intensa como aparece na imprensa, é porque a importância do DEM continua grande.

A punição do colunista

Fácil, não? Não vejo o blog do ex-prefeito e não nego que a importância do Dem continua grande porque atribuem ao partido importância exageradamente grande. Cada vez mais, só é importante em política aquilo que os políticos acham importante e nós, os incautos, deveríamos preferir ficar com a boca devidamente calada.

Pelo que percebo, o ex-prefeito César Maia é dado a alguma dose de erudição. Deve ter, provavelmente, surrupiado a ideia da ‘autoentrevista’ de Dalton Trevisan. Sim, Dalton Trevisan, o Vampiro de Curitiba, o célebre contista paranaense. Tão notória quanto a sua obra, tem sido a sua insistência em nunca dar entrevista. Nunca. Nada causa mais furor a Trevisan do que ver o seu nome em notícias que nada tenham a ver com os seus escritos.

Há quase 30 anos, um célebre crítico musical paranaense publicou em sua coluna em jornal curitibano uma pequena nota informando que Trevisan fora visto a espreitar as mulatas desnudas em desfile carnavalesco. Bastou para que o escritor transformasse o colunista em personagem terrível de um de seus contos: ‘barata leprosa com caspa na sobrancelha’. (Não terão os jornalistas que desapontarem o ex-prefeito o mesmo tratamento em seu ex-blog?)

Para enfrentar o assédio da mídia

Como a abordagem de repórteres que desejavam entrevistá-lo lhe causava grande irritação, Dalton Trevisan criou o que ele mesmo chamava de ‘autoentrevista’. Cada jornalista que o procurava saía de seu escritório, na região central de Curitiba, com um feixe de folhas datilografadas com respostas do escritor a perguntas que ele mesmo se fazia. Uma das respostas, aliás, justificava, no caso do escritor, plenamente, o tipo de iniciativa:

‘Nada tem (o escritor) a dizer fora dos livros. Só a obra interessa, o autor não vale o personagem. O conto é sempre melhor que o contista.’

E havia poesia na ‘autoentrevista’ de Trevisan:

‘Não escrevo para mudar a vida, melhorar o mundo, salvar sua alma. O papel branco vale mais coberto de palavras? Toda a sua desculpa de escrever.’

E mais:

‘Você pode contar nos dedos as pequenas delícias da vida: o azedinho da pitanga na língua do menino, a figurinha premiada da bala Zequinha, um e outro conto de Tchecov, o canto da curruíra bem cedo, o perfume da glicínia azul debaixo da janela, o êxtase do primeiro porrinho, o beijo com gosto da bolacha Maria e geleia de uva, um corpo nu de mulher.’

Já da ‘autoentrevista’ de César Maia não se pode esperar sequer um mínimo gosto literário. Mal sabe ele que o escritor pode, sim, usar desses subterfúgios para driblar a imprensa e todo tipo de curiosos. O escritor não tem a menor obrigação de dar entrevista e se expor publicamente além daquilo que escreve. O político, não. Se bater fora do bumbo, tem por obrigação enfrentar o assédio da mídia, pois será através dela – mais do que através da tribuna de assembleias e câmaras – que ele vai poder oferecer a seus eleitores as merecidas explicações de seus gestos e atitudes. Deixemos a autoentrevista para aqueles ‘cidadãos’ que ainda podem flanar sobre a opinião pública num tom acima de qualquer suspeita.

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Jornalista