Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Festejos juninos, cultura popular e jornalismo

O sexto mês do ano chegou e as festas juninas já tomam conta de várias cidades do Nordeste. O jornalismo local aposta todas as cartas nos eventos e várias pautas também ganham espaço na mídia nacional. De acordo com o discurso jornalístico, esses festejos são a representação da cultura popular. Falam do triângulo, da sanfona, da zabumba, do forró, do xaxado e do baião. Das comidas de milho, como pamonha e canjica. Da fogueira, dos fogos e da comemoração em família. Mas será que todos esses elementos continuam representando a festa, como diz o discurso?

O conceito de cultura popular gera polêmica. Sempre há grande discussão a respeito do que é cultural e do que não é. Em termos gerais, trata-se das manifestações produzidas por um povo, gerando comportamentos na música, na dança, na literatura e em outros aspectos da vida social. Para alguns, esse conceito abrange o que foi produzido no passado e o que vemos no presente, sem juízo de valores. Partindo daí, imaginamos que a discussão não deve girar exatamente em torno do que é cultura ou não, mas de que tipo de cultura estamos falando.

Nasci e moro em Campina Grande, na Paraíba, cidade que se orgulha em realizar uma festa de 31 dias que leva o título de maior São João do Mundo. Quando criança brincava em volta da fogueira soltando fogos de artifício. Era assim há anos, desde a infância dos meus pais, dos meus avós e bisavós. O cheiro da comida de milho saía de tardezinha da cozinha da vovó. No ar soavam o triângulo, a zabumba e a sanfona que faziam todos dançarem madrugada adentro. As meninas vestiam saias rodadas feitas de tecido colorido e os meninos não dispensavam a camisa xadrez e o chapéu de palha. Os passos tradicionais da quadrilha uniam a vizinhança inteira e a festa sempre terminava com a dança no meio da rua.

Hoje, olho para o Parque do Povo, lugar onde acontece a festa em Campina Grande, e vejo que dos festejos juninos que conheci quando criança pouca coisa restou. Os valores “modernos” e a realidade atual modelaram uma outra festa que carrega apenas alguns traços dos festejos juninos de 20 anos atrás. A sanfona, o triângulo e a zabumba não são mais protagonistas. No palco principal do Parque do Povo o predomínio é do forró eletrônico que divide espaço com outros ritmos, como o sertanejo. O forró autêntico perdeu o lugar de protagonista para atuar como coadjuvante (ou até figurante) do espetáculo. A indústria tratou de “enlatar” o ritmo e a população não ficou apenas de testemunha ocular, mas aceitou e passou a consumir sempre mais.

Uma cultura popular moldada pela indústria

As quadrilhas juninas de hoje também são estilizadas. Os concursos de quadrilhas incluem roupas superproduzidas (e caras) e coreografias diferentes a cada ano. A fogueira já não é mais bem vista. As chamas podem alcançar os fios de eletricidade entre as residências. Em meio a floresta de concreto e a quase inexistente vegetação a fumaça se aglomera, prejudicando os alérgicos respiratórios. Se acesa na rua, se mistura ao trânsito e torna a brincadeira de criança extremamente perigosa. E ainda, por causa da violência atual, ficar com os portões de casa abertos é um risco que nem todo mundo quer correr.

Com a seca prolongada na Paraíba e outros estados do Nordeste, o milho, que antes era cultivado até em quintais na cidade, agora vem dos perímetros irrigados de outros estados. A comida típica hoje já não é tão barata nem tão popular. As vovós de hoje, diferentes das mulheres de ontem, já não se dedicam à casa em tempo integral. Por isso, raras vão para a cozinha fazer comidas típicas. Além disso, no Parque do Povo, há anos pamonha e canjica não são encontradas com facilidade. A maioria dos comerciantes, alheia à intenção de perpetuar os costumes, não faz questão de as incluir no cardápio.

Vejo que os festejos juninos são cada vez menos um retrato de costumes e tradições reproduzidos pelo povo. Essa cultura popular que ultrapassa gerações vem morrendo a cada ano, tanto pela forte atuação mercadológica quanto pelas características da sociedade atual. No lugar dela cresce uma cultura popular moldada pela indústria, que tende a tornar homogêneos os festejos de diversos lugares, com poucas diferenças.

Gerações atuais não tomam conhecimento do passado

Alheios às causas, consequências e desdobramentos dessas transformações que citei e de tantas outras que povoam a realidade cultural da atualidade, os jornalistas seguem cobrindo os festejos juninos com o mesmo discurso do marketing e do turismo, esquecendo das premissas que o diferencia dos outros dois, como contextualização, reflexão, análise e observação cuidadosa. Os próprios jornalistas da atualidade não conseguem ver importância em eventos isentos de glamour. Não conseguem enxergar a profundidade de manifestações populares simples, mas genuínas.

Lembro de uma frase dita pelo repórter Marcelo Canellas em uma palestra num evento sobre Folkcomunicação, área que estuda a difusão das manifestações culturais populares e do folclore nos meios de comunicação. “Para falar sobre cultura popular, aquela cultura mais pura de um povo carregada de significados, é preciso ver além das aparências.” Uma missão que se torna difícil para a nova geração de jornalistas que cresceu na sociedade do efêmero, do consumo e da ostentação. Numa realidade rasa, sem maiores leituras, sem maiores reflexões, sem raciocínio crítico.

A de ontem e a de hoje são culturas, mas bem distintas. Não há mais profundidade, não há mais significados (a não ser os financeiros), não há mais referências, não há mais ensinamentos. As gerações atuais estão sendo formadas por pessoas que sequer tomam conhecimento do passado. Vivem um presente moldado com bases cada mais líquidas, como se não houvesse o ontem, deixando no ar um sentimento de orfandade para o amanhã.

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Luciellen Souza Lima é jornalista