Wednesday, 01 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Folha de S. Paulo – 1




CRISE DAS CHARGES
Editorial


Culto ao terror


‘Um jornal argentino de prestígio, não faz muito tempo, publicou charge
certamente ofensiva aos brasileiros. Éramos retratados na figura de um
macaquinho, usando chapéu palheta e camisa listrada, a evacuar produtos
industrializados sobre o mapa do país vizinho.


Embora destituído de conotações teológicas -vivia-se apenas um dissenso
comercial, entre os muitos que compõem a enfadonha história do Mercosul-, o
desenho era sem dúvida grosseiro e carregado de preconceito, que todo humor, em
alguma medida, implica. Registraram-se protestos enfáticos e, logo após, os
correspondentes pedidos de desculpa. Enquanto isso, ninguém se mobilizou para
pisotear a bandeira argentina, depredar consulados ou publicar, em represália,
caricaturas hostis à imagem de Evita Perón, Sarmiento ou Diego Maradona.


Há alguns anos, o fotógrafo nova-iorquino Andres Serrano expôs, sob o título
de ‘Piss Christ’, a foto de um crucifixo mergulhado em um aquário repleto de
urina. A obra, de péssimo gosto, suscitou escândalo entre muitos cristãos, que
também questionavam a legitimidade do patrocínio federal concedido às
experimentações do artista. Não se tem informação, entretanto, de que cidadãos
americanos residindo em Roma, Lourdes, Dublin ou Aparecida do Norte tenham
sofrido ameaças à sua integridade física.


Pode-se até entender que, no mundo islâmico, a publicação de charges
representando -ainda mais satirizando- o profeta Muhammad suscite movimentos de
acerba indignação. Pedidos de desculpa, tentativas oficiais de reparação,
manifestações de apreço aos dogmas do islamismo pouco seriam capazes de fazer,
entretanto, contra a histeria fundamentalista, para a qual conceitos como
liberdade e tolerância não fazem nenhum sentido.


Caricaturas num jornal dinamarquês, ainda que insultuosas, não impedem
ninguém de praticar a sua religião. Em Teerã ou Beirute, fanáticos querem
entretanto impedir que alguém na Dinamarca escreva, leia e veja o que bem
entender.


Lideranças muçulmanas julgaram oportuno lembrar, nessa conjuntura, que o
Ocidente ‘perdeu o senso do sagrado’. A pertinência da observação está sujeita a
debate; que não seja motivo, entretanto, para aceitar com timidez e culpa a
violência de sectários e extremistas.


Quando a TV exibe imagens de pré-adolescentes marchando uniformizados, de
fuzis ao ombro, a gritar palavras de vingança, não é de ‘senso do sagrado’ que
se trata. Quando funcionários de organizações filantrópicas são ameaçados de
morte simplesmente por terem origem européia, não são os valores espirituais da
paz e da generosidade humana que estão sendo defendidos. Se um seguidor do Corão
se sente ofendido quando alguém identifica o islã ao terrorismo, não é jogando
coquetéis molotov em embaixadas que irá refutar essa acusação.


Mais do que o ‘senso do sagrado’ -que dispensa desfiles militares, tiros de
metralhadora para o ar, cenas de apedrejamento e atentados a bomba-, está em
jogo aqui o senso da convivência pacífica, que concebe diversas formas de
reparação civil quando suscetibilidades ou direitos são atingidos pela crítica.
A liberdade de expressão é um valor universal que está acima das peculiaridades
de cultura e das veleidades de cada crença particular. Ela é a condição de
existência da própria liberdade de religião e das demais liberdades.


Mas fanáticos não querem reparação nenhuma. Querem impor, sobre cidadãos de
todo o mundo, que a muito custo conquistaram sua própria liberdade, uma lei que
se baseia no obscurantismo, na intolerância, no preconceito e no terror.’


Leila Suwwan


Israel é alvo preferido de charges islâmicas


‘O vilão quase invariavelmente leva a estrela de Davi no braço ou usa
uniforme de Tio Sam. O presidente americano, George W. Bush, sua secretária de
Estado, Condoleezza Rice, e o primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, são
monstros, açougueiros ou esqueletos. Esse é o padrão de boa parte das charges
políticas pelos países árabes, que tratam mais de relações externas que
internas, com senso de humor mais burlesco que irônico.


Com a controvérsia, nas últimas semanas, das charges dinamarquesas que
retratam o profeta Muhammad -algumas delas vinculam sua imagem ao terrorismo,
como uma em que ele usa um turbante-bomba- aumentaram as charges contra
Israel.


‘Não temos nada a ver com isso, mas é comum Israel virar o alvo árabe em
qualquer polêmica, inclusive a polêmica sobre o programa nuclear iraniano’, diz
Susan Heller-Pinto, diretora de estudos de Oriente Médio da ADL (Liga
Anti-Difamação), grupo que analisa a imprensa e as charges árabes para rastrear
e expor tendências anti-semitas.


Um exemplo é uma charge que pede um boicote a produtos dinamarqueses -no caso
um queijo podre em forma de estrela de Davi- publicada no diário ‘Akhbar al
Khalij’, de Bahrein.


Para o chargista palestino Baha Boukhari, que publica no ‘Al Ayyam’, nos
territórios palestinos, as charges dinamarquesas são ‘tecnicamente pobres’ e não
deveriam ter sido levadas a sério.


‘Claro que respeitamos a liberdade de expressão, mas há uma diferença entre
opinar e insultar nações e religiões. Eu culpo líderes árabes por abordar a
questão de forma a incitar extremistas e ignorantes’, disse Boukhari. ‘Meu
trabalho como chargista é criar um sorriso, não a raiva.’


O conflito árabe-israelense é sempre um destaque, alvo fácil quando governos
árabes restringem ou limitam as autocríticas, e muitas charges são consideradas
anti-semitas por ativistas judeus e estrangeiros por cruzar a linha política e
entrar em campo histórico e religioso.


Porém, conforme apontam analistas nos Estados Unidos e em Israel, houve uma
evolução qualitativa nas charges pelo mundo árabe, que começam a abordar
frontalmente questões como o terrorismo e a opressão de governos autoritários e
antidemocráticos -até em países de regime islâmico, como a Arábia Saudita.


Para Geoff Porter, analista da consultoria de risco político Eurasia, as
charges no norte da África tendem a ter humor mais sardônico e irônico que na
região do Egito, territórios palestinos, Líbano e Síria, que teriam humor menos
sofisticado e mais zombeteiro. Porter acompanha e traduz a mídia árabe e, na sua
avaliação, a vilificação de figuras ocidentais é homóloga ao que ocorre nas
charges européias ou americanas.


‘Eu tenho o cuidado de verificar se a vilificação é maior do que no
ocidente’, afirmou ele à Folha. ‘Mas o que vi até agora é que as figuras
políticas são brutalizadas, sem rédeas, tanto quanto líderes muçulmanos. Os
principais exemplos são o Muammar Gaddafi [ditador da Líbia] e [o presidente
iraniano] Mahmoud Ahmadinejad.’


Porter nota que, em países de governo islâmico, o controle de governo previne
a sátira de questões internas. Por conta disso, a política internacional vira o
foco favorito.


Ainda assim, muitas charges abordam assuntos delicados, como uma publicada no
Líbano sobre métodos de ‘suicídio’: franceses na banheira, soviéticos com tiros
de roleta russa e sírios com execuções por agentes secretos.


Outros exemplos incluem ironias com o teor pseudodemocrático das eleições
presidenciais egípcias, o autoritarismo e a falta de reformas em vários países
árabes, além do terrorismo.


Terrorismo


Segundo a pesquisadora Aluma Dankowitz, do Memri (Instituto de Pesquisa da
Mídia do Oriente Médio, com sedes em Washington e Jerusalém), atentados
terroristas só viraram tema de charges árabes quando o problema atinge a
região.


‘Foi somente quando extremistas islâmicos começaram a alvejar outros
muçulmanos em países árabes que surgiu um debate sobre ataques suicidas em nome
da religião’, afirma Dankowitz. Em seus estudos, ela aponta charges que mostram
o terrorismo como algo equivalente ao nazismo ou como uma faca nas costas dos
países árabes.


Muitas das charges, porém, mostram que os Estados Unidos alimentaram o
terrorismo (com uma mamadeira em forma de míssil, por exemplo, como o desenho
nesta página) ao invadirem o Afeganistão e o Iraque.


Na Arábia Saudita, uma charge criticou a opressão do povo, retratado preso
numa garrafa de ‘Absolute Power’, alusão à vodca Absolut -álcool é proibido no
país. Uma charge palestina ironiza a vitória do grupo terrorista Hamas,
mostrando o povo preocupado apenas em saber se vão receber salário -a Autoridade
Nacional Palestina é o maior empregador da população.


Quando o assunto é religião, as charges se aproximam de território arriscado.
A rigor, o islã proíbe imagens de profetas para evitar a idolatria. Portanto,
nenhuma das três religiões monoteístas -judaísmo, cristianismo e islamismo- é
satirizada frontalmente.


‘Há restrição religiosa, sobretudo com o islã. Mas, para ser justo, isso
ocorre do mesmo modo que nos Estados Unidos há restrição com o judaísmo e o
cristianismo: é politicamente incorreto e haverá forte repercussão entre grupos
religiosos’, disse Porter.


A questão é mais complexa sob o ponto de vista da ADL. ‘Às vezes, a estrela
de Davi é usada como um símbolo legítimo -afinal, está na bandeira israelense.
Mas as vezes está ligada a um sentimento antijudeu’, disse Susan Heller-Pinto,
fazendo referência a uma charge com um palestino crucificado na estrela de Davi,
em alusão à morte de Jesus Cristo.


Para ela, linha é cruzada quando há desrespeito à memória da morte de judeus
no Holocausto, com vulgarizações da história ou comparações provocativas do
nazismo com Israel.’


Folha de S. Paulo


Milhares protestam contra caricaturas na Europa


‘Milhares de pessoas participaram de protestos pacíficos ontem em cidades da
Europa, como Londres e Paris, contra a publicação de charges sobre o profeta
Muhammad. Segundo um porta-voz do Conselho Muçulmano da Grã-Bretanha, entidade
que convocou a manifestação na praça Trafalgar, no centro de Londres, cerca de
10 mil pessoas estavam presentes. A polícia britânica calculou que seriam 3.500.
Os manifestantes levavam cartazes com frases como ‘Unidos contra a islamofobia’
e ‘Muhammad, símbolo da liberdade e da honra’.


O protesto teve apoio do prefeito de Londres, Ken Livingstone, e de
organizações muçulmanas moderadas. O prefeito justificou seu apoio dizendo que a
manifestação permite conhecer ‘o ponto de vista da corrente dominante da
comunidade muçulmana’, algo que, segundo ele, a maior parte da cobertura da
mídia não respeitou.


Em Paris, convocadas por várias associações muçulmanas, cerca de 7.200
pessoas, segundo a polícia, participaram do protesto contra as charges. Cinco
jornais franceses reproduziram as charges, publicadas originalmente na
Dinamarca.


‘Queremos mostrar, de forma pacífica, que os muçulmanos se sentem
profundamente ofendidos pelas caricaturas e que não se trata de liberdade de
expressão, mas de insultos que passam o limite ofensivo’, disse Fayzal Menia,
porta-voz da união das associações muçulmanas do subúrbio de
Seine-Saint-Denis.


Liderando o cortejo, havia uma bandeira em que se lia ‘Respeito às religiões,
liberdade de expressão… Não há contradição’. Outros cartazes traziam escritas
mensagens como ‘Muçulmanos franceses têm direito ao respeito’, ‘Não ao
terrorismo midiático’ e ‘Sim à liberdade de culto, não aos insultos’.


Grupos muçulmanos também organizaram manifestações ontem em outras cidades
européias como Berlim e Dusseldorf (Alemanha), Amsterdã (Holanda), Oslo
(Noruega) e Berna (Suíça).


Reação dinamarquesa


A Dinamarca anunciou ontem que retirou diplomatas e suas equipes da Indonésia
e do Irã devido a ameaças. Na sexta-feira, o serviço diplomático dinamarquês
deixou a Síria porque não tinha proteção suficiente das autoridades, segundo o
governo dinamarquês. Nesses países, as embaixadas da Dinamarca foram atacadas
recentemente em protestos contra as caricaturas.


O ministério das Relações Exteriores dinamarquês também pediu ontem aos seus
cidadãos que deixem a Indonésia imediatamente, informando que eles enfrentam um
perigo iminente de um grupo extremista.


‘Existe informação concreta que indica que um grupo extremista vai procurar
dinamarqueses em protesto contra a publicação de charges de Muhammad’, informou
o ministério de Relações Exteriores, sem mencionar qual seria esse grupo.


A ONG dinamarquesa ASF Dansk Folkehjaelp retirou dez funcionários do
Afeganistão ontem por causa das ameaças. ‘Não nos atrevemos a deixar nossos
colaboradores em Cabul desde que se colocou preço para a cabeça dos
dinamarqueses’, informou Klaus Noerlem, secretário-geral da organização. Com
agências internacionais’




***


Menos É Mais


‘Enquanto um dos lados do atual conflito se enxerga como civilização, o outro
se vê como religião, o que dificulta a definição do tipo de choque vivido
atualmente. Apenas minorias islâmicas e ocidentais são hostis umas às outras,
mas a ação dessas minorias se radicaliza, levando a pensar num conflito muito
maior, envolvendo toda a sociedade de cada um dos lados envolvidos. Isso é o que
defende o escritor norte-americano Jack Miles, ganhador do Prêmio Pulitzer em
1996 por ‘Deus – Uma Biografia’ e autor também de ‘Cristo’ (ambos pela Cia. das
Letras).


Em entrevista à Folha por e-mail, Miles apontou um fortalecimento do
fundamentalismo nas diferentes religiões devido ao sofrimento de muitas pessoas
no mundo contemporâneo. Seja no islã, no catolicismo -como visto na primeira
encíclica de Bento 16, ‘Deus É Amor’-, no protestantismo do governo puritano de
George W. Bush ou outros credos, diz Miles.


‘Fellow’ da MacArthur Foundation, Miles é um ex-seminarista formado na
Pontifícia Universidade Gregoriana (Itália) e na Universidade Hebraica de
Jerusalém, com doutorado em idiomas do Oriente Médio em Harvard. Para ele, o
excesso de religiões é uma das causas de muitos dos conflitos gerados em todo o
mundo, embora as considere fundamentais para a sobrevivência da humanidade.
‘Temos que conviver com a permanência das religiões em vez de sonhar o sonho
tolo de deixá-las completamente para trás.’ (DANIEL BUARQUE)


Folha – O sr. acha que os protestos e mortes contra a publicação das charges
do profeta Muhammad configuram um choque de civilizações?


Jack Miles – Um choque de algum tipo está claramente a caminho. Mas um dos
lados desse conflito se enxerga como civilização, enquanto o outro se vê como
religião. Então sua pergunta suscita imediatamente uma outra: Estamos
vivenciando um choque de religiões ou um choque de civilizações? Os protestos
violentos em várias partes da ‘ummah’, a comunidade islâmica no mundo, incluíram
o incêndio de igrejas, o canto de hinos anti-semitas e anticristãos e
demonstrações caóticas em bairros cristãos.


Aqueles que lideram esses protestos desejam ativamente definir seus inimigos
como cristãos, primeiramente, e judeus, em segundo lugar. A interpretação deles
é sem dúvida ajudada pelo fato coincidente de haver uma cruz na bandeira da
Dinamarca, que eles estão queimando. Mas o premiê dinamarquês, hoje, não defende
sua nação como cristã, mas como pluralista, tolerante e nem um pouco oposta ao
islã ou a qualquer outra religião.


Implicitamente, ele quer definir seu inimigo como integralista, intolerante e
oposto a todas as religiões que não a dele.


Quão grande é esse choque, independentemente dos diferentes conceitos que
pode vir a ter? Muitos na ‘ummah’ querem para si e desejam estender a outros as
liberdades civis institucionalizadas pelo Ocidente; somente uma minoria deseja
ativamente o oposto.


Muitos no Ocidente praticam uma religião ou, se não o fazem, dificilmente
ironizam os que o fazem; só uma minoria é ativamente hostil a religiões, seja ao
islã ou a qualquer outra. Mas as minorias importam. E determinadas ações de
líderes mundiais podem ter o efeito de intensificar o impacto delas.


Folha – As grandes religiões estão se voltando para seus fundamentos?


Miles- Não acho que o papa Bento 16 e o presidente Bush devam ser mencionados
numa mesma frase. João Paulo 2º foi contrário à invasão do Iraque, e duvido que
Bento 16 a apóie. Sua primeira encíclica é compatível com suas lamentáveis
opiniões sobre o amor homossexual, controle artificial de natalidade e coisas do
tipo.


Mas essas questões não estão diretamente mencionadas na encíclica, que,
principalmente, tenta ligar a ética pessoal do amor à ética social do amor -um
esforço que acredito louvável. Em contraste, as políticas de George W. Bush são
agressivas no exterior e avaras em casa.


Folha – Existe a possibilidade de evoluirmos para um conflito generalizado
motivado pela religião?


Miles – Apesar daquilo que acabei de dizer, eu concordo que dentro do
catolicismo, do protestantismo, do judaísmo e do hinduísmo, assim como no islã,
existe um amplo movimento que busca privilegiar um suposto fundamentalismo. A
forma antiga é julgada pura; a posterior é vista como corrupta. O impulso de
julgar o presente momento como um declínio de algum estado anterior mais feliz é
universal.


Por que deveria ser particularmente intenso agora? Talvez porque um moderno e
secularizado impulso tenha acompanhado (é difícil afirmar que tenha ‘produzido’)
um mundo em que tantas pessoas sofrem de forma tão severa.


Folha – As religiões continuarão a ser uma parte importante da vida das
pessoas? Como irão evoluir?


Miles – As tensões mais severas impostas em nosso mundo -a globalização
econômica e a destruição ambiental- não se reduziriam em nenhum grau se todas as
religiões desaparecessem da noite para o dia e mundo fosse completamente
secularizado. Imagino essa possibilidade como forma de apontar que a evolução da
sociedade a que você se refere parece, por si mesma, ser capaz de levar a
humanidade a sua própria extinção.


O desafio à religião não pode ser, então, apenas acompanhar a evolução até a
extinção. Ele precisa se encaminhar para a correção do sentido da evolução até a
preservação da humanidade.


Ninguém pode prever se a religião fará isso assim como ninguém pode prever se
a sociedade, empregando meio diferentes da religião, fará a tempo as correções
necessárias.


Folha – Como a busca pela pureza nas religiões se reflete nas pessoas?


Miles – Já se considerou por muito tempo que o desaparecimento das religiões
era uma mera questão de tempo. A psicologia evolucionária, de forma mais neutra
e genuína, sugere que de algum modo essa forma de comportamento humano
extremamente durável serviu, até o momento, à sobrevivência da espécie. Um gosto
por alimentos doces teve o mesmo papel por milênios, quando as comidas doces
eram escassas. Agora que ela é abundante, temos um problema mundial de
obesidade. Ocorre algo parecido na religião.


Ela também pode um dia ter preservado o que hoje ameaça destruir. Mas podemos
pensar que -assim como controlar a quantidade de doces que comemos não precisa
necessariamente negar seu apelo- temos que conviver com a permanência das
religiões em vez de sonhar o sonho tolo de deixá-las completamente para
trás.


Folha – O puritanismo na política norte-americana está sendo imposto pelo
governo ou é um reflexo da sociedade? Ele afeta a democracia? Afeta as relações
internacionais?


Miles – Precisamos lembrar que George W. Bush ficou em segundo lugar, e não
primeiro, na eleição de 2000. Seu oponente, Al Gore, teve mais votos que ele. Os
EUA são um país altamente dividido. Bush conseguiu um importante apoio dos
conservadores cristãos, mas até agora teve pouco impacto sobre as opiniões
religiosas dos americanos. Mesmo suas indicações para a Suprema Corte não
provocaram até agora nenhuma revisão real do lugar da religião na vida nacional
do país.


As relações internacionais, infelizmente, são outra questão. Suas freqüentes
referências a Deus -e de membros de seu governo- e a Jesus tiveram o efeito,
entre os muçulmanos, de fazer com que aquilo que o presidente chama de ‘guerra
ao terror’ pareça ‘guerra ao islã’.’




***


Cronologia dos cartoons


’30/9/2005 – O jornal dinamarquês ‘Jyllands-Posten’ publica 12 charges
retratando de forma irônica a cultura muçulmana e o profeta Muhammad


20/10 – Embaixadores muçulmanos reclamam ao premiê dinamarquês, Anders Fogh
Rasmussen


10/1/2006 – O jornal norueguês ‘Magazinet’ republica as charges


26/1 – A Arábia Saudita retira seu embaixador da Dinamarca e anuncia boicote
a produtos de origem dinamarquesa. O tablóide jordaniano ‘Al Mehwar’ republica
as charges


30/1 – O premiê Rasmussen declara que o governo dinamarquês não pode agir
contra as charges publicadas pelo ‘Jyllands-Posten’


30/1 – Homens armados atacam o escritório da União Européia, em Gaza,
exigindo um pedido de desculpas. O editor-chefe do jornal dinamarquês, Carsten
Juste, publica um pedido oficial de desculpas


1/2 – As charges são publicadas nos periódicos ‘Die Welt’ (Alemanha), ‘France
Soir’ (França), ‘La Stampa’ (Itália), ‘El Periódico’ (Espanha) e ‘Volkskrant’
(Holanda), que alegam que a liberdade de imprensa é mais importante que os
protestos. Kofi Annan, secretário-geral da ONU, diz que a liberdade de expressão
não pode ser uma desculpa para o insulto a religiões. O dono do ‘France Soir’
demite o editor do jornal responsável pela publicação dos ‘cartoons’


2/2 – A revista semanal jordaniana ‘Shihan’ publica três das 12 charges. O
premiê dinamarquês tenta acalmar os ânimos aparecendo na TV árabe e pedindo
desculpas pelas eventuais ofensas aos muçulmanos. Três jornais suíços publicam
as charges


3/2 – Corte da África do Sul proíbe a publicação das charges. Protestos na
Embaixada da Dinamarca em Londres. Manifestantes atacam uma igreja cristã no
Paquistão. Uma das charges é publicada no irlandês ‘The Star’


4/2 – Os jornais ‘Philadelphia Inquirer’ (EUA) e ‘Courier Mail’ (Austrália)
publicam uma das charges. Manifestantes incendeiam as embaixadas de Dinamarca,
Suécia, Noruega e Chile em Damasco. Protestos começam a crescer e se tornar mais
violentos nas ruas do Afeganistão


5/2 – O consulado dinamarquês em Beirute é incendiado. Protestos ocorrem na
Nova Zelândia e no Egito


6/2 – Protestos em quatro cidades da Indonésia, em Viena, Istambul e Bancoc.
Jornais da Ucrânia, Bulgária e Romênia publicam as charges. O Irã rompe todas as
relações comerciais com a Dinamarca. Protestos deixam ao menos quatro mortos. O
mais importante diário iraniano, o ‘Hamshahri’, convoca um concurso de charges
sobre o Holocausto em resposta às charges do profeta Muhammad


7/2 – Após receber apoio do presidente George W. Bush, o premiê dinamarquês
declara que a publicação dos ‘cartoons’ desencadeou uma crise global. Protestos
atingem representações italianas e da Otan. A União Européia alerta o Irã de que
o boicote a produtos dinamarqueses pode levar à ruptura das relações entre o
continente e o país árabe


8/2 – Policiais afegãos matam mais quatro manifestantes em confrontos. A
Organização da Conferência Islâmica, maior organização muçulmana do mundo,
publica um comunicado condenando a violência’


Daniel Dennett


A religião do bom senso


‘De acordo com as pesquisas de opinião, a maioria das pessoas no mundo diz
que a religião é muito importante em suas vidas. Muitas diriam que suas vidas
não fariam sentido sem a religião. É tentador aceitar o que dizem sem
questionamento, declarar que não há mais nada a dizer -e deixar por isso mesmo.
Quem pode querer interferir com a coisa, seja lá o que for, que atribui sentido
às vidas das pessoas?


Se fizermos isso, porém, estaremos propositalmente deixando de lado algumas
questões sérias. Será que qualquer religião pode conferir sentido de uma maneira
que devemos respeitar e honrar? O que dizer das pessoas que se tornam vítimas de
líderes de seitas ou que são enganadas, convencidas a entregar suas economias a
trapaceiros religiosos? Suas vidas ainda têm sentido, mesmo que sua ‘religião’
específica seja uma fraude?


No documentário ‘Marjoe’ (1972), sobre o falso evangelista Marjoe Gortner,
vemos pessoas pobres esvaziando suas carteiras e depositando tudo o que têm nos
bolsos no prato de coleta da igreja, com seus olhos brilhando com lágrimas de
alegria, emocionadas por estarem recebendo a ‘salvação’ do carismático fajuto. A
dúvida que me perturba desde que assisti ao filme pela primeira vez é: quem
estará cometendo o ato mais repreensível?


Gortner, que mente às pessoas para ficar com o dinheiro delas, ou os
documentaristas que expõem as mentiras (com a entusiástica cumplicidade de
Gortner), com isso roubando pessoas sinceras do sentido que imaginavam ter
encontrado em suas vidas? Consideremos como podem ser as vidas delas.


Sam, por exemplo, é um sujeito que largou o colégio sem ter concluído o
ensino médio. Ele ganha a vida como frentista num posto em um trevo rodoviário e
nutre a esperança de algum dia comprar uma moto; ele gosta de tomar algumas
cervejas enquanto assiste às partidas de seu time na televisão.


Não há oportunidades de aventuras acenando no futuro de Sam nem no da maioria
dos outros membros da congregação bem-aventurada que vemos no filme, mas essas
pessoas agora foram postas em contato direto com Jesus e estão salvas por toda a
eternidade, integrantes amadas e bem-vistas da comunidade dos crentes renascidos
em Cristo. Iniciaram uma página nova em suas vidas, numa cerimônia das mais
dramáticas, e passaram a enfrentar suas vidas, outrora pouco inspiradas,
sentindo-se renovadas e enaltecidas.


A maior história


Suas vidas agora contam uma história, e essa história é um capítulo da Maior
História Já Relatada. É possível imaginar qualquer outra coisa que elas pudessem
comprar com as notas de US$ 20 [R$ 44] que colocam no prato de coleta e que,
para elas, tivesse valor -ainda que remotamente- comparável a isso?


‘Sim, com certeza’ é a resposta. Poderiam doar seu dinheiro a uma religião
que fosse honesta e que utilizasse o fruto do sacrifício delas para auxiliar
pessoas ainda mais necessitadas. Talvez a principal razão pela qual as religiões
fazem boa parte do trabalho pesado em grande parte dos EUA é que as pessoas
realmente querem ajudar as outras -e as organizações seculares não têm
conseguido competir com as religiões pela lealdade das pessoas.


Isso é importante, mas essa é a parte fácil da resposta e passa ao largo da
parte difícil: o que devemos fazer em relação às pessoas que, honestamente,
acreditamos que estão sendo ludibriadas? Devemos deixá-las com suas ilusões
reconfortantes ou devemos soar o alarme?


Guardar segredos das pessoas para o próprio bem delas pode, em muitos casos,
ser uma atitude sábia e conveniente, mas é preciso apenas uma pessoa para
revelar um segredo, e, como existem desacordos em torno dos casos que fazem jus
à discrição, o resultado é um miasma desagradável de hipocrisia, mentiras e
tentativas frenéticas, mas infrutíferas, de desviar a atenção dos fatos.


E se Gortner convencesse um grupo todo de pregadores evangélicos sinceros a
fazer seu trabalho sujo por ele? A inocência desses outros pregadores
modificaria a equação e conferiria significado real às vidas das pessoas cujo
sacrifício esses pregadores incentivaram e recolheram? Ou será que todos os
pregadores evangélicos são tão falsos quanto Gortner?


Os muçulmanos, com certeza, pensam que sim, embora, de modo geral, sejam
discretos demais para declará-lo. E os católicos consideram os judeus igualmente
iludidos, os protestantes acham que os católicos desperdiçam seu tempo e energia
com uma religião em grande medida falsa e assim por diante. Todos os muçulmanos?
Todos os católicos? Todos os protestantes? Todos os judeus? É claro que não.


Não se sabe quantos muçulmanos acreditam de fato que todos os infiéis merecem
morrer, que é o que afirma o Alcorão, de maneira inegável. Eu arriscaria o
palpite de que a maioria dos muçulmanos é sincera ao insistir que deve ser
ignorada a injunção de que os apóstatas devem ser mortos, mas é no mínimo
desconcertante o fato de o medo de ser visto como apóstata aparentemente
constitui uma motivação importante no mundo islâmico. Logo, não somos apenas nós
-que não fazemos parte do mundo islâmico- que não podemos fazer mais do que
palpitar.


Então qual é a atitude prevalecente hoje entre aqueles que se dizem
religiosos, mas que fazem a defesa vigorosa da tolerância? Existem três opções
principais.


1) O maquiavélico dissimulado: por questão de estratégia política, ainda não
é chegada a hora de se fazerem declarações abertas de superioridade religiosa,
então devemos conciliar e esperar sem alarde, na esperança de que, com o passar
dos séculos, as outras religiões possam ser gentilmente persuadidas a aderir às
nossas posições.


2) O verdadeiramente tolerante: não importa realmente a que religião você
jura fidelidade, desde que você tenha alguma religião.


3) Os negligenciadores benevolentes: a religião é preciosa demais para muitos
para que possam cogitar em prescindir dela, mesmo que ela não faça nenhum bem,
na realidade, e seja apenas um legado histórico vazio que podemos nos dar ao
luxo de conservar até o momento em que ela se apague tranquilamente por conta
própria, em algum momento do futuro imprevisível.


Não adianta perguntar às pessoas qual opção elas escolhem, já que os extremos
são tão pouco diplomáticos que podemos prever de antemão que a maioria das
pessoas optará por alguma versão da tolerância ecumênica, quer acreditem nela ou
não.


Portanto, nós nos enrodilhamos numa teia de hipocrisia, e não existe saída
clara dessa armadilha. Será que somos como aquelas famílias em que os adultos
fazem de conta que acreditam em Papai Noel, apenas para o bem das crianças, e as
crianças fazem de conta que ainda acreditam no bom velhinho, apenas para não
decepcionar seus pais?


Ah, se nosso dilema atual fosse tão inócuo e mesmo cômico quanto esse! No
mundo adulto da religião, pessoas morrem e matam; os moderados se silenciam por
medo da intransigência dos radicais em seguir sua própria fé, e muitos crentes
temem reconhecer o que realmente acreditam por medo de partir o coração da vovó,
de ofender seus vizinhos a ponto de serem expulsos da cidade ou de sofrerem
algum destino ainda pior.


Que alternativas existem? Há os moderados que reverenciam a tradição na qual
foram criados -simplesmente por ser sua tradição- e que se dispõem a fazer
campanha moderada em favor dos detalhes de sua tradição, simplesmente porque, no
mercado das idéias, é preciso que alguém defenda cada tradição até que
consigamos distinguir o que é bom do que é ainda melhor e optar pelo melhor
possível, levando todas as possibilidades em conta.


Entretanto, para adotar uma posição moderada como essa, é preciso abrir mão
das máximas absolutas que, aparentemente, constituem uma das principais atrações
de muitos credos religiosos. Não é fácil ser moral, e isso é algo que parece
estar se tornando cada vez mais difícil hoje em dia. Antigamente, os males do
mundo, em sua maioria -doenças, fome, guerra-, eram coisas cuja redução estava
inteiramente além da capacidade das pessoas comuns.


O que fazer?


Hoje, graças à tecnologia, o que está ao alcance de praticamente qualquer
pessoa se multiplicou por mil, mas nossa compreensão moral daquilo que
deveríamos fazer não acompanhou esse avanço. Podemos ter um bebê de proveta ou
tomar uma pílula do dia seguinte para não ter um bebê; satisfazer nossos desejos
sexuais na privacidade de nosso quarto, descarregando pornografia da internet;
podemos plantar minas terrestres ou contrabandear armas nucleares em
valises.


Também podemos providenciar o envio de US$ 100 [R$ 220] mensais de nossas
contas bancárias para garantir ensino a dez meninas em algum país islâmico ou
beneficiar cem pessoas subnutridas ou fornecer assistência médica a aidéticos na
África. O que deveríamos fazer?


Com certeza quase todo mundo já se viu diante de um dilema moral e, em
segredo, desejou que houvesse alguém -alguém em que confiasse- que lhe dissesse
o que fazer. Não somos responsáveis por tomar nossas próprias decisões
morais?


Sim, mas as virtudes do raciocínio moral ‘faça você mesmo’ têm seus limites,
e se você, após considerar uma questão conscienciosamente, decide delegar outras
decisões morais de sua vida a um especialista, então você terá tomado sua
decisão moral própria. Terá decidido fazer uso da divisão de trabalho que a
civilização nos possibilita, recorrendo à ajuda de especialistas.


Aplaudimos a conveniência de agir dessa maneira em todas as outras áreas
importantes em que é preciso tomar decisões (não se automedique, o advogado que
representa a si próprio tem um tolo como cliente e assim por diante).


É por essa razão que aqueles que não questionam a justeza dos ensinamentos
morais de sua religião constituem um problema: se não avaliaram cuidadosamente,
eles próprios, se seus pastores, padres, rabinos ou imãs merecem exercer tanta
autoridade delegada sobre suas vidas, então estão adotando uma posição
pessoalmente imoral.


Defendo que qualquer pessoa que argumenta que um ponto particular de
convicção moral não é discutível ou negociável -simplesmente por ser a palavra
de Deus ou porque a Bíblia diz assim ou porque é ‘o que todos os muçulmanos (ou
hindus ou sikhs…) acreditam, e eu sou muçulmano (ou hindu ou sikh…)’- deve
ser vista como alguém que impossibilita ao resto de nós levar seus pontos de
vista a sério, alguém que se distancia da discussão moral por inadvertidamente
reconhecer que seus pontos de vista não são mantidos com consciência e não são
merecedores de atenção maior.


É chegada a hora de os seguidores racionais de todas as fés encontrarem a
coragem e a energia necessárias para inverter a tradição que honra o amor
incondicional a Deus -em qualquer tradição religiosa.


Longe de ser honorável, esse amor não é nem sequer desculpável. É vergonhoso.
Eis o que devemos dizer às pessoas que seguem tal tradição: só existe uma
maneira de respeitar o teor de qualquer edito moral supostamente passado a nós
por Deus. Devemos analisá-lo conscienciosamente, à luz plena da razão, fazendo
uso de todas as evidências que temos à nossa disposição. Não é digno de ser
adorado nenhum Deus a quem agradam as manifestações de amor destituído de razão.


Daniel C. Dennet é diretor do Centro de Estudos Cognitivos da Universidade
Tufts. Este texto foi adaptado de seu livro ‘Breaking the Spell – Religion as a
Natural Phenomenon’ (Rompendo o Encantamento – A Religião como Fenômeno
Natural), que sai neste mês nos EUA pela ed. Viking. Copyright ¸ 2006 de Daniel
C. Dennett. Tradução de Clara Allain.’


Daniel Buarque


A via sacra


‘Os atos contra as charges consideradas ofensivas a Muhammad -o maior profeta
do islamismo- publicadas em vários jornais de todo o mundo já causaram a morte,
no Afeganistão, de pelo menos 11 pessoas até a quinta-feira passada, além de
protestos violentos no Oriente Médio, como incêndios e apedrejamentos de
embaixadas de países europeus. O Irã cortou relações comerciais com a Dinamarca
-país de origem do ‘Jyllands-Posten’, jornal que publicou os 12 ‘cartoons’ pela
primeira vez, no final de setembro- e a União Européia, em retaliação, ameaçou
cortar os laços econômicos com o Irã.


O premiê dinamarquês, Anders Fogh Rasmussen, declarou não poder fazer nada a
respeito das charges, mas, publicamente, pediu desculpas aos países
islâmicos.


É espantoso que, em uma nação tão pequena como a Dinamarca, um jornal obscuro
publique uma charge e isso represente um ultraje a milhões de pessoas, muitas
das quais nem sabem onde fica esse país


Mais do que um simples choque de civilizações -para usar a expressão cunhada
pelo cientista político Samuel Huntington-, o que parece estar em jogo no
Ocidente é antes a liberdade de crença e expressão. Sintomaticamente, o
editor-chefe do ‘Posten’, Carsten Juste, desculpou-se no site do jornal pelas
ofensas que as charges provocaram, mas se recusou a retratar-se por sua
publicação.


Já o historiador norte-americano Robert Darnton defende que esse caso só
atingiu tais dimensões devido ao avanço das tecnologias de comunicação -a
internet, mais precisamente. Sem esta, que em tese permite justamente o acesso
mais democrático às informações, jamais as charges publicadas em um ‘obscuro
jornal dinamarquês’ poderiam ter provocado as conseqüências trágicas de
agora.


‘A comunicação entre culturas não traz a compreensão automática, e mesmo no
longo prazo as coisas podem piorar’, alerta Darnton.


Pessimista, o professor de história européia na Universidade Princeton e
autor de algumas obras básicas sobre o século 18, como ‘Os Dentes Falsos de
George Washington’ (Companhia das Letras) e ‘O Grande Massacre de Gatos’
(Graal), diz acreditar que já vivemos um momento de conflito e violência
globais, deixando de lado a agressão simbólica e partindo para a física.


Folha – Os protestos e mortes contra a publicação das charges que ironizam o
islamismo evidencia um choque de civilizações?


Robert Darnton – Tenho minhas dúvidas sobre essa expressão, criada por Samuel
Huntington e que se tornou uma teoria sobre o que está acontecendo hoje no
mundo. Como interpretação geral dos eventos, não posso ter certeza, mas
certamente acho que a violência atual dramatiza o choque de dois sistemas de
valores que são completamente opostos, e isso torna o fenômeno ao mesmo tempo
trágico e fascinante.


O Ocidente é apaixonadamente comprometido com seu valor de liberdade de
expressão e os países islâmicos são apaixonadamente comprometidos com seu
conceito de sagrado. Não há formas de mediar essa contradição e encontrar uma
solução. Não acho que uma contradição se apresente ao público global de forma
tão dramática freqüentemente. É entristecedor e fascinante ao mesmo tempo.


Um dos problemas para nós, do Ocidente, é entender a força da paixão em
relação ao sacrilégio nos países islâmicos. A maioria de nós perdeu a noção de
sacrilégio, que naturalmente foi muito forte na Idade Média e no início da Idade
Moderna.


Na nossa sociedade altamente secularizada e materialista, é difícil entender
o conceito de uma paixão visceral por símbolos sagrados e contrária a qualquer
crítica agressiva, que pode ser traduzida em violência física, nas ruas. Temos
que aceitar o fato de que há um profundo senso de ultraje e violação de um
símbolo religioso nesse caso e temos que entender essa revolta, por mais difícil
que possa parecer.


Mas esse episódio também dramatiza o poder da comunicação global. É
impressionante que uma imagem publicada num jornal dinamarquês faça com que, do
outro lado do mundo, a violência exploda nas ruas e pessoas morram em protestos
contrários à publicação. O poder que a mídia tem hoje de comunicar mensagens de
forma global e provocar a ação é assustador. E vemos a violência simbólica se
transformar em violência física em uma escala enorme.


É de tirar o fôlego a idéia de que, num país tão pequeno como a Dinamarca, um
jornal obscuro publique uma charge e isso represente um ultraje a milhões de
pessoas, muitas das quais não devem nem saber onde fica esse país. É
espantoso.


Há alguns mal-entendidos envolvidos no caso, mas isso faz parte desse tipo de
fenômeno global, o processo que eu costumo chamar de ‘simplificação radical’, no
qual símbolos têm o poder de cristalizar atitudes e pôr um lado contra o outro,
direcionando mentes e criando uma sensação de transposição de limites e de
violação de um território. Ver isso acontecer em escala global é
surpreendente.


Folha – Pode-se pensar no seguinte círculo vicioso: a publicação das charges
gera protestos, que geram notícias globais por meio das quais as charges voltam
a ser publicadas, gerando mais protestos?


Darnton – Naturalmente. É um processo que gera uma escalada de eventos, sem
que se possa ver exatamente onde vamos parar.


É interessante. Eu até hoje não vi essas imagens. O ‘New York Times’ se
recusou a publicar as charges.


Temos então outras duas novas questões: a autocensura de alguns órgãos da
imprensa e a solidariedade de outros, defendendo a liberdade de expressão. Acho
que foi terrível que o ‘France Soir’ tenha demitido seu editor. É um processo
complexo e complicado. No Brasil, nos EUA e na Dinamarca, todos fomos varridos
por esse fenômeno e arrastados por uma discussão.


Folha – O sr. acha que foi um erro as charges terem sido publicadas ou
republicadas?


Darnton – Em retrospecto, sim. É fácil olhar para trás e dizer que houve um
mau julgamento do caso, o que acabou ofendendo outro povo de forma tão profunda.
No momento da publicação, entretanto, eu provavelmente teria sido tão ingênuo
quanto o editor do jornal dinamarquês, sem perceber que se tratava de material
tão ofensivo.


Eu também acredito apaixonadamente na liberdade de imprensa e concordo
totalmente com a decisão do governo dinamarquês de não punir o jornal que
publicou as charges.


Mas acho que deve haver sempre a questão de avaliação de danos na publicação
de um jornal, o que pode ser considerado autocensura, mas acho que se deve
evitar a publicação de mensagens profundamente ofensivas. Acho que imagens de
muita violência, de corpos mutilados, de mortos e esse tipo de coisa não deviam
ser publicadas, mas essa também é uma questão de gosto.


Folha – O sr. acha que no Ocidente a religião é um assunto de menor
importância que no Oriente?


Darnton – Numa tremenda generalização, minha resposta curta é: sim, a
religião é um assunto menor no Ocidente. Respondendo de forma mais aprofundada,
entramos numa questão complicada.


No século 18, num incidente famoso, um cavaleiro chamado Jean-François de la
Barre foi torturado e teve seu corpo queimado por ‘desrespeitar’ a religião
católica. Ele simplesmente não tirou o chapéu enquanto uma procissão passava na
rua, além de possuir um livro escrito por Voltaire. Ele desrespeitou um símbolo
católico quando o símbolo era levado muito a sério na religião, o que foi
entendido como sacrílego e ofensivo.


Houve centenas de outros casos como esse no passado da civilização ocidental,
com o sacrilégio sendo punido com a morte.


Não temos mais isso, não matamos mais ninguém por sacrilégio. Mas alguns
símbolos sagrados ainda existem e ainda são levados a sério nos países
ocidentais. Eles podem carregar emoção. Durante os protestos contrários à Guerra
do Vietnã, por exemplo, um homem usou um lenço com o padrão da bandeira dos EUA
para limpar o nariz. Isso deixou muita gente furiosa. Parecia uma grande ofensa
a algo que muitos acreditavam ser sagrado.


Folha – Como se a democracia e o patriotismo se tornassem a nova religião no
Ocidente?


Darnton – De forma simples, acho que sim, é correto dizer isso. Nos EUA temos
o que chamamos de ‘american way of life’, que é simbolizado pela bandeira e é
levado a sério por muita gente. Não é nacionalismo, é patriotismo, mas envolve,
sim, um sentido de força religiosa.


É uma religião civil, no sentido em que falavam Rousseau e Tocqueville, e as
pessoas respondem a isso, tornando-se uma questão muito séria em suas vidas.
Quando as pessoas queimam a bandeira norte-americana no Oriente Médio, elas
estão cometendo um ato de sacrilégio que ofende as pessoas desse país. E é por
isso que elas o fazem.


Folha – O sr. acha que os atuais eventos relacionados às charges de Muhammad
vão mudar a forma como o Oriente vê as representações do Ocidente ou, então, a
forma como o Ocidente retrata os símbolos do Oriente?


Darnton – Não sou um bom profeta, mas acho que podemos esperar uma série de
conflitos em que a violência simbólica vai se transformar em violência física.
Acredito que a situação vai piorar, não melhorar, e haverá uma escalada desse
tipo de choque cultural, sem que o entendimento mútuo se propague.


A comunicação entre culturas não traz a compreensão automática, e mesmo no
longo prazo as coisas podem piorar. Por mais que tenhamos fé na comunicação
aberta e na capacidade de a mídia se espalhar e penetrar em territórios
distantes, acho que seríamos inocentes se achássemos que a comunicação por si
mesma nos levaria a um final feliz.


Folha – O sr. acha que existe a possibilidade de evoluirmos para um conflito
generalizado por conta dessas diferenças culturais e religiosas?


Darnton – Acho ofensivo o uso exagerado da palavra ‘guerra’. Acho que ela
representa mal a situação atual. Não acredito que estejamos em guerra, por mais
que o presidente Bush o repita permanentemente.


Mas creio, entretanto, que a violência generalizada está se espalhando pelo
mundo, e estamos no meio dela. Seja nas explosões que acontecem na Espanha, na
França, na ex-União Soviética… E muito dessa violência é causada por questões
culturais e religiosas.


Uma expressão do tamanho da Segunda Guerra está distante, mas vivemos no meio
de um novo tipo de violência global, que toca a vida de milhões de pessoas sem
que realmente a possamos entender. Uma forma de evitar mal-entendidos é não usar
a palavra ‘guerra’, que simplifica os conflitos e dificulta a compreensão dos
fenômenos.’


Contardo Calligaris


Carta aberta às elites religiosas muçulmanas


‘Caros amigos,


há, entre nós, grandes diferenças culturais, ou seja, não temos os mesmos
hábitos da mente e do corpo. Além disso, entre o islã e, digamos assim, o
Ocidente, há uma longa história de desconfianças e guerras. Mas a virulência
atual do conflito pede novos esforços para saber o que acontece.


Nestes dias, a imprensa propôs fotografias de manifestantes assediando
embaixadas ocidentais no mundo islâmico. Curioso, em muitas delas, à primeira
vista, não dá para entender se os manifestantes estão atacando as embaixadas ou
tentando entrar para pedir asilo. Claro, o equívoco é meu, mas ele tem suas
razões de ser.


Entre aqueles manifestantes, quantos já planejaram emigrar para um país
europeu? Na hora em que as massas se reuniam para saquear e queimar, quantos
muçulmanos estavam se aventurando pelo estreito de Gibraltar, num barco mal
aparelhado, na esperança de alcançar a Espanha? Quantos circulavam pelos Bálcãs,
escondidos num caminhão, para chegar a Londres?


Não digam que são traidores, vendidos ao sonho ocidental. Se os milhões de
imigrantes muçulmanos que vivem na Europa fossem ‘vendidos’, eles estariam,
hoje, solidamente integrados à população européia. Acontece o contrário, e não é
apenas pela resistência das nações ocidentais. O fato é que o êxodo de
populações muçulmanas à Europa inaugurou uma nova forma de emigração,
especialmente trágica. Explico.


Qualquer emigração é um movimento de idealização e de amor. Mesmo que procure
apenas melhorias financeiras, o emigrante deposita seus sonhos no país que o
hospedará. Ora, há uma tragédia que dura há décadas: a dolorosa divisão, na alma
do emigrante muçulmano, entre a esperança que deposita no país para onde se muda
e seu ódio mandado pela nova vida com a qual ele sonha.


Mohammed Atta, um dos pilotos do 11 de Setembro, passou a noite do dia 10
numa boate, bebendo e festejando. Estranho modo de se preparar para o sacrifício
de sua vida, não? Talvez, espatifando-se contra o World Trade Center, o que ele
queria não fosse tanto matar milhares de americanos quanto, suprimindo-se,
acabar de vez com sua intolerável contradição interna.


O conflito, caros amigos, talvez não seja entre islã e Ocidente. Talvez seja
um conflito exasperado dentro da alma islâmica, entre a sedução do Ocidente e a
fidelidade à cultura e à religião ancestral. Esse conflito não será resolvido
por guerras ou terrores, nem por protestos nem por tratados. Ele só pode ser
resolvido por vocês. Há momentos em que as elites culturais e religiosas podem
decidir o destino de seus povos. Espero que não seja tarde, espero que a voz que
chama do minarete ainda possa sarar o conflito da subjetividade muçulmana
hodierna.


Tomemos o caso dos medíocres desenhos publicados por um jornal dinamarquês.
Alguns deles (os demais são inócuos, como vocês sabem) são charges contra o
Maomé dos homens-bomba, o Maomé invocado pelo apóstolos do terror. Ora, sou
cristão, criado na religião católica. Qual seria minha reação diante de charges
em que Cristo apareceria liderando o extermínio dos albigenses, ou, vestido de
inquisidor, torturando apóstatas e colocando fogo na pira de Giordano Bruno?
Como reagiria ao ver Cristo, nos paramentos do papa romano, vendendo
indulgências plenárias ou, sapeca, furando camisinhas numa sauna gay? Ou, então,
engravatado como um pastor, exigindo o dízimo dos pobres? Uma coisa me parece
certa: não me indignaria com quem desenhou as charges, mas com aqueles que se
escondem atrás de Cristo para praticar seu sectarismo, sua ganância, sua sede de
poder ou sua estupidez.


Para dormir tranqüilo, não me bastaria mandar uma carta de desculpas às
viúvas cátaras e aos amigos de Giordano Bruno. Para dormir tranqüilo, precisaria
denunciar os falsários que se servem de Cristo para justificar sua iniqüidade.
Hoje, no cristianismo, esse gesto é fácil. Um cardeal poderia conclamar que o
papa é um apóstata; no máximo, seria excomungado por uma igreja cuja autoridade,
de qualquer forma, ele não reconhece mais.


Mas houve uma época em que os homens religiosos da Reforma arriscaram sua
vida para produzir um cisma que era imposto por suas consciências.


Ora, o terror se espalha, e ouço só palavras constrangidas e formais. Onde
estão os imames que tenham a coragem de jogar um anátema contra o ódio e o
terror? Quando, caros amigos, aparecerão seus Luteros? No lugar onde eles são
esperados, aparecem imames decretando a morte de escritores laicos, ou, por que
não, de chargistas dinamarqueses.


Não é por acaso que a modalidade do terror islâmico, hoje, é o atentado
suicida. Não é uma ironia da história que os mortos destes dias se contem entre
os manifestantes muçulmanos. Pois uma contradição interna, atiçada até a um
paroxismo insolúvel, só se resolve no gesto extremo de quem, para silenciar seu
conflito, acaba com sua própria vida.


Se vocês se calarem hoje, se não defenderem o Maomé no qual vocês acreditam
contra os que o aviltam invocando-o em seu ódio do Ocidente, se vocês não
tiverem a coragem de apaziguar a alma islâmica, a história contará que vocês
levaram seu povo ao suicídio.’


Alain Finkielkraut


Fanáticos sem fronteiras


‘A comunicação imediata venceu o tempo e o espaço. O intervalo entre o
próximo e o distante se reduziu. Há apenas alguns anos, esse fenômeno nos
causava júbilo. Encantávamo-nos por nossa moral ter se tornado ubíqua. Víamos
com emoção a técnica se colocar a serviço da ética.


A concordância entre o cosmopolitismo da telepresença e a exigência
cosmopolita nos parecia milagrosa: no momento mesmo em que o reconhecimento da
semelhança em todos os homens nos levava a denunciar o direito soberano dos
tiranos a massacrar suas minorias ou sua oposição à abertura de suas fronteiras,
a imagem indiscretamente democrática penetrava as mais espessas muralhas. E essa
abolição das distâncias nos parecia conduzir de maneira bastante natural a uma
aproximação entre os povos.


Por que jamais surgiu uma manifestação no mundo islâmico contra os sangrentos
massacres em Nova York?


Mas agora temos de enfrentar a globalização do ódio. Um convidado inesperado
se apresentou ao banquete da abolição de fronteiras: depois dos médicos,
farmacêuticos, enfermeiros, advogados e repórteres sem fronteiras, chegou a era
dos fanáticos sem fronteiras.


Na sociedade civil mundial que nossos melhores votos acalentam, a ingerência
desumana se torna cada vez mais peremptória e estridente.


Incapacidade de diferenciar


Uma ínfima minoria daqueles que, do Paquistão à Argélia, protestam contra as
charges publicadas pelo diário dinamarquês ‘Jyllands-Posten’ saberia localizar
Copenhague em um mapa. Mas o que importa a geografia? Na era da internet, o
mundo inteiro é para todos, somos todos anjos, e aí está o horror.


Quem são os responsáveis primordiais pela crise? ‘Os cartunistas e os
jornalistas que não quiseram temperar o exercício da liberdade de expressão com
o respeito às crenças’, dizem muitos dos chefes de governo ocidentais,
acompanhados por numerosos intelectuais. Esses sábios se esquecem de que o
respeito às crenças e à liberdade de expressão são os dois lados da mesma
moeda.


Aqueles que combatem a liberdade de expressão em nome do respeito à crença
que lhes é cara desprezam as crenças alheias e expressam claramente esse
desprezo.


Os jornais de Teerã, de Damasco e do Cairo estão repletos de caricaturas
vingativas e grotescamente desavergonhadas de judeus ortodoxos ou de desenhos
que demonizam o Talmud [conjunto de interpretações das leis mosaicas]. É a
dolorosa renúncia à convicção de seu absolutismo que embasa a um só tempo a
liberdade de expressão e o respeito às crenças. E é a essa renúncia que as
elites e as massas islâmicas opõem sua cólera santa.


A imagem que detonou a crise representa Muhammad usando um turbante em
formato de bomba. Imagem injuriosa, nos dizem. Um vínculo ofensivo, um vínculo
cruel, um vínculo difamatório entre o profeta e o terrorismo. Sem dúvida. Mas
esse vínculo não foi estabelecido pelos caricaturistas dinamarqueses, e sim
pelos adeptos da jihad [guerra santa]. Por que jamais surgiu uma manifestação no
mundo islâmico contra os sangrentos massacres em Nova York, Madri, Mombaça, Bali
e outras cidades?


Na verdade, as imagens de turbas furiosas saqueando as embaixadas
escandinavas são infinitamente mais obscenas, infinitamente mais caricaturais,
do que as charges vindas da Escandinávia.


Os crentes que se consideram ultrajados e caluniados por uma tal
representação de Muhammad reagem pedindo a morte daqueles que insultam o islã. E
aqueles que insultam o islã, aos olhos deles, não são apenas os autores dos
desenhos a que objetam -são também os governos dos países nos quais esses
desenhos foram publicados e os cidadãos desses países.


Essa incapacidade de diferenciar é o espírito do terrorismo. Matam-se
inocentes porque não existem inocentes, não existem nem mesmo indivíduos: apenas
espécimes. O anonimato reina: cada pessoa vale apenas por sua proveniência, cada
pessoa é um alvo.


Inimigos renitentes


Será que Bin Laden representava apenas uma amostra do que está por vir?
Somado à belicosidade nuclear da nova liderança iraniana e ao sucesso eleitoral
dos islâmicos militantes na Palestina, recentemente, e em breve, com certeza, no
Egito, essas manifestações delirantes nos forçam a apresentar a questão. Para
viver em um mundo pacífico ou para obter a paz, não se pode abjurar todo
espírito de conquista, confessar crimes e proclamar a todos que não temos mais
inimigos.


A prova é que o temos feito e agora se torna forçoso reconhecer que, apesar
de nossos esforços, nossos inimigos continuam determinados e renitentes.


Mas, atenção: esse ‘nós’ não quer dizer apenas ‘nós, os franceses’, ‘nós, os
europeus’ e nem mesmo ‘nós, os ocidentais’. É preciso que ele englobe igualmente
os muçulmanos tradicionalistas moderados, os muçulmanos laicos, as mulheres
muçulmanas emancipadas ou que aspiram a isso, os cristãos que vivem em terras
islâmicas.


O escritor Thomas Mann costumava dizer que Hitler não caiu como um meteoro
sobre o solo da Alemanha e que a Alemanha não podia, em conseqüência, declarar
ter extirpado o nazismo. Mas acrescentava que ele também era a Alemanha. Pois
bem, em lugar de tentar lisonjear os fanáticos por meio de palavras pias e
desonrosas sobre a alteridade e a aceitação, cabe-nos afirmar agora, sem nenhuma
hesitação, nossa solidariedade a todos os Thomas Mann do mundo muçulmano.


Alain Finkielkraut é filósofo e professor de história das idéias no
departamento de humanidades da Escola Politécnica de Paris. É autor de ‘A
Ingratidão’ (ed. Objetiva). Este texto foi publicado no ‘Libération’. Tradução
de Paulo Migliacci.’




MÍDIA & GUERRA
Jeff Gerth, Carlotta Gall e Ruhullah Khapalwak


EUA ampliam guerra de informações


‘DO ‘NEW YORK TIMES’ – O centro de mídia em Fayeteville, Carolina do Norte,
seria o orgulho de qualquer empresa global de comunicações. Em estúdios dos mais
modernos, produtores preparam o misto diário de música e notícias para as
estações de rádio do grupo, além de spots para emissoras de televisão amistosas.
Redatores que preparam jornais e revistas para sair em Bagdá ou Cabul conversam
entre si por teleconferência. Trailers contendo equipamentos de alta tecnologia
estão estacionados do lado de fora, prontos para a próxima crise.


O centro não faz parte de uma organização noticiosa, mas sim de uma operação
militar. Os redatores e produtores são militares. A unidade de operações
psicológicas sediada em Fort Bragg, com 1.200 profissionais, produz o que seus
oficiais descrevem como ‘mensagens verdadeiras’ para dar apoio aos objetivos do
governo americano, embora seu comandante reconheça que as matérias que produz
são unilaterais e que o patrocínio americano delas é mantido em sigilo.


‘Chamamos nossa produção de informação, e a do inimigo, de propaganda’, disse
o coronel Jack N. Summe, o então comandante do 4º Grupo de Operações
Psicológicas, durante viagem em junho. Mesmo no Pentágono, disse ele, alguns
profissionais de assuntos públicos os enxergam ‘sob ótica desfavorável’, ‘como
trapaceiros sujos e mentirosos’.


A revelação recente de que um empresário a serviço do Pentágono no Iraque
pagou a jornais para publicarem artigos de ‘boas notícias’ escritos por soldados
americanos provocou ultraje em Washington, onde parlamentares disseram que a
prática prejudica a credibilidade americana, enquanto altos funcionários
militares e da Casa Branca afirmavam não ter qualquer conhecimento dela.


Mas o trabalho da empresa em questão, o Lincoln Group, não era uma operação
irregular. Na tentativa de contrabalançar o sentimento antiamericano onipresente
no mundo muçulmano, a administração Bush vem conduzindo uma guerra da informação
que é cara, ampla e muitas vezes oculta, segundo documentos e entrevistas com
empresas contratadas e autoridades governamentais e militares.


No Iraque e no Afeganistão, alvos da maioria dessas atividades, o setor
militar americano opera jornais e estações de rádio, mas não revela as conexões
americanas desses veículos. Estes produzem materiais jornalísticos que às vezes
são creditados ao ‘Centro Internacional de Informações’, uma organização
impossível de ser rastreada.


O grupo Lincoln diz que já plantou mais de mil artigos na imprensa iraquiana
e árabe e publicou editoriais num site iraquiano, conforme mostram documentos do
Pentágono. Para um projeto amplo de persuasão oculta em países vizinhos, o
Lincoln traçou planos -que acabaram rejeitados- para um jornal clandestino,
programas jornalísticos na TV e uma comédia antiterrorista baseada em ‘Os Três
Patetas’.


Oficiais militares disseram que, como o grupo Lincoln, algumas unidades de
operações psicológicas do Exército às vezes pagam para transmitir sua mensagem,
oferecendo a estações de TV dinheiro para colocar no ar segmentos que não serão
atribuídos a elas, ou então pagando redatores para escrever artigos de opinião
para sair em jornais.


‘Não queremos que alguém olhe o produto, discirna a ação do governo americano
e perca o interesse em razão disso’, disse o coronel James Treadwell, que
dirigiu o apoio a operações psicológicas no Comando de Operações Especiais em
Tampa.


A Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID) ocasionalmente
também mascara suas atividades. Ela financia cerca de 30 estações de rádio no
Afeganistão, mas não informa os ouvintes desse fato. A agência já distribuiu no
Iraque e no Afeganistão dezenas de milhares de aparelhos de áudio do tipo iPod
que tocam mensagens cívicas prontas, mas a distribuição é feita através de uma
empresa que promete ‘não deixar transparecer rastros dos EUA’.


Para a administração Bush, transmitir sua mensagem é crucial. Mas é algo
imensamente difícil, em vista da hostilidade aos EUA amplamente difundida no
mundo muçulmano.


Os produtores de mensagens americanas que relutam em identificar seu papel
citam fatos constatados pelo Pentágono, institutos de pesquisas e outras fontes
que ressaltam os problemas fundamentais de credibilidade que os EUA enfrentam no
exterior.


Os defensores das campanhas de influência afirmam que estas são eticamente
corretas e podem exercer um impacto positivo. ‘As operações psicológicas
constituem uma parte essencial da guerra, mais ainda na era eletrônica’,
ponderou o tenente-coronel Charles Krohn, ex-porta-voz do Exército e professor
de jornalismo. ‘Se você vai invadir um país, derrubar seu governo e ocupar seu
território, precisa informar a sua população o porquê disso. Isso requer um
programa de comunicações bem pensado.’


Outros, porém, avisam que batalhas de informação travadas por baixo do pano
podem ter efeitos contrários aos desejados ou podem revelar-se ineficazes. A
notícia de que as Forças Armadas americanas estavam comprando influência foi
recebida com indiferença em Bagdá, onde os leitores tendem a ter atitude cética
em relação à mídia. Um diário iraquiano, ‘Azzaman’, queixou-se em editorial de
que a campanha de propaganda paga constitui um esforço do governo americano
‘para humilhar a imprensa independente nacional’. Muitos iraquianos dizem que,
em razão das condições duras impostas pela ocupação militar americana, dinheiro
nenhum gasto na tentativa de moldar a opinião pública terá grande impacto, por
maior seja o valor investido.


Embora os EUA não proíbam a distribuição de propaganda do governo no
exterior, o Gabinete de Responsabilidade Governamental (GAO), em relatório
recente, disse que a ausência de crédito atribuído pode prejudicar a
credibilidade de noticiários.


Em seu parecer em que considerou inapropriada a divulgação de releases
noticiosos em vídeo produzidos pela administração Bush e que apareceram na
televisão americana, o GAO disse que esses releases ‘deixaram de ser puramente
factuais’ ‘devido à ausência do fato essencial da atribuição do crédito’ pelo
material.


Depois que o 11 de Setembro forçou muitos americanos a reconhecer a
precariedade da reputação de seu país no mundo árabe, a administração Bush
decidiu entrar em ação para melhorar a imagem do país.


Boa parte da máquina de informações do governo, incluindo a Agência de
Informações dos EUA e alguns programas da CIA, foi desmantelada após a Guerra
Fria.


Nessa luta com a URSS, os guerreiros da informação se beneficiaram da
percepção de que os EUA estavam ajudando vítimas de governos tirânicos. Muitos
muçulmanos hoje vêem Washington como demasiado próximo de regimes autoritários,
como na Arábia Saudita e no Egito.


A Casa Branca procurou a ajuda de John Rendon para ajudar a influenciar
públicos estrangeiros. Rendon dirige uma companhia de comunicações em Washington
e, antes da Guerra do Afeganistão, ajudou a montar centros a partir dos quais os
EUA podiam dar respostas rápidas em órgãos de imprensa estrangeiros a acusações
do Taleban.


O grupo Rendon tinha um histórico de trabalhos passados para o governo em
regiões problemáticas do mundo. Nos anos 90 a CIA contratou Rendon para,
secretamente, ajudar o nascente Congresso Nacional Iraquiano a lançar uma
campanha de relações públicas contra Saddam Hussein.


Ao mesmo tempo em que assessorava a Casa Branca, Rendon fechou com o
Estado-Maior Conjunto um contrato de US$ 27,6 milhões para criar grupos de
discussão de notícias e análise jornalística de organizações noticiosas como a
rede Al Jazira.


Mais ou menos na mesma época a Casa Branca contratou Jeffrey Jones, um
ex-coronel que havia dirigido o grupo de operações psicológicas de Fort Bragg,
para coordenar a nova guerra da informação. Jones chefiou um comitê secreto
-cuja existência não tinha sido revelada até agora- que cuidava de tudo, desde a
diplomacia pública, que abrange educação, assistência e programas de
intercâmbio, até operações sigilosas de informação.


O grupo chegava a examinar as palavras do presidente. Preocupados com a
possibilidade de Bush provocar o repúdio de muçulmanos no exterior, membros do
comitê tentaram, em vão, impedir Bush de encerrar seus discursos com a frase
‘Deus abençoe a América’.


Empurrão


Com quase US$ 100 milhões em ajuda americana, a mídia iraquiana cresceu
substancialmente desde a queda de Saddam.


Cerca de 200 jornais e entre 15 e 17 televisões de propriedade iraquiana
operam no país. Muitos, porém, são vinculados a partidos políticos e são
abertamente partidários, adotando posturas pró ou antiamericana rígida. Alguns
publicam boatos, meias-verdades ou mentiras declaradas.


O grupo Lincoln trabalha para divulgar a mensagem dos militares americanos
desde seu escritório na base de Camp Victory.


Os funcionários da empresa trabalham lado a lado com soldados. Oficiais do
Exército supervisionam o trabalho do Lincoln e exigem ver detalhes dos custos e
da inserção dos artigos, contou um dos ex-funcionários, falando sob a condição
do anonimato. ‘Quase nada do que fazíamos podia passar sem a aprovação do
comando’, disse o ex-funcionário.


Os funcionários pegavam despachos noticiosos escritos por militares,
traduziam-nos para o árabe e os distribuíam por jornais locais. O Lincoln
contratou ex-jornalistas árabes e pagava agências de publicidade para inserir os
materiais em veículos da imprensa.


Normalmente o grupo pagava aos jornais entre US$ 40 e US$ 2.000 para publicar
os artigos como notícia ou publicidade, conforme documentos obtidos pelo ‘New
York Times’. De acordo com documentos do Pentágono, mais de mil artigos saíram
em até 15 jornais iraquianos e árabes. As publicações não revelaram a seus
leitores que os artigos tinham sido gerados pelos militares.


Um funcionário da empresa fazia visitas freqüentes ao centro de convenções de
Bagdá, ponto de encontro da imprensa iraquiana, para recrutar jornalistas
dispostos a escrever e inserir artigos de opinião. A companhia pagava aos
jornalistas entre US$ 400 e US$ 500 mensais.


Como os despachos produzidos em Fort Bragg, esses ‘storyboards’ eram
unilaterais e otimistas. Cada um tinha um público alvo -por exemplo, ‘xiitas’ ou
‘iraquianos em geral’-, um tema subjacente, como ‘antiintimidação’, ‘sucesso e
legitimidade das forças de segurança iraquianas’, e um jornal alvo.


Artigos escritos pelos soldados de Camp Victory muitas vezes eram redigidos
na voz de iraquianos. ‘Nós, iraquianos, somos o governo. Este é nosso país’,
dizia um artigo. Outro dizia: ‘É chegada a hora de os iraquianos comuns se
unirem -você, eu, nossos vizinhos, familiares e amigos’.


Enquanto alguns dos artigos eram relatos exaustivos, repletos de jargão
militar e burocrático, outros optavam pela linguagem dos tablóides: ‘apóstatas
sanguinários’, ‘arrastaram-se sobre os estômagos, como cães se arrastando na
lama’, ‘fanáticos de cérebro pequeno’, ‘rei do terror’.


Um ex-funcionário do Lincoln disse que a tentativa de fazer com que os
artigos parecessem ter sido escritos por iraquianos, removendo ‘impressões
digitais’ americanas, não foi muito bem-sucedida. ‘Muitos iraquianos sabem que
aquilo vem dos EUA’, disse ele.


Documentos do Pentágono dizem que as Forças Armadas americanas vêm buscando
ampliar sua influência de mídia para além do Iraque, chegando aos países
vizinhos, como Arábia Saudita, Síria e Jordânia.


O esforço de mídia do Pentágono no Afeganistão começou pouco após a derrubada
do Taleban. Num ambiente que antes era árido e parco em matéria de mídia, hoje
operam 350 revistas e jornais e 68 TVs e estações de rádio. Nem todos são
independentes. Os EUA vêm fornecendo dinheiro para subsidiar a mídia, além de
formação para jornalistas e porta-vozes governamentais.


Mas boa parte do papel dos EUA permanece escondido dos leitores e do público
locais.


O Exército americano publica no Afeganistão um jornal ‘irmão’, também
intitulado ‘Paz’. Uma análise feita dos números do jornal revelou que ele não
publicou más notícias.


‘Não temos obrigação de nos pautar pelos princípios jornalísticos da
objetividade’, disse Summe, o especialista do Exército em operações
psicológicas. ‘Contamos o lado americano da história a públicos-alvo aprovados’.
Nem a estação de rádio nem o jornal revelam seus vínculos com as forças
americanas. Tradução de Clara Allain’




MERCADO EDITORIAL
Folha de S. Paulo


Circulação de jornais aumentou 3,9% no ano passado, diz IVC


‘A venda de jornais no país aumentou 3,9% no ano passado, período em que o
mercado registrou circulação média paga de 3,443 milhões de exemplares por dia,
segundo o balanço anual do IVC (Instituto Verificador de Circulação). Em 2004, a
circulação média foi de 3,315 milhões.


A Folha manteve a liderança do mercado nacional de jornais em 2005, com uma
média diária de 307,9 mil exemplares vendidos em banca e por assinatura, contra
307,7 mil no ano anterior.


‘Desde meados do ano passado, já se percebia um aumento consistente da
circulação de jornais no país’, disse Fernando Martins, diretor-executivo da ANJ
(Associação Nacional de Jornais). ‘Os jornais aperfeiçoaram seus departamentos
de vendas e assinaturas. As empresas se preocuparam muito com a qualidade da
prestação dos serviços aos assinantes. Isso, de certa maneira, também alavanca
as vendas.’


O segundo lugar no ranking dos maiores jornais é ocupado por ‘O Globo’, com
274,9 mil exemplares (257,5 mil em 2004). O jornal carioca registrou evolução de
6,8% no período.


‘O Estado de S.Paulo’, na terceira posição entre os grandes jornais,
apresentou circulação de 230,9 mil exemplares (233,5 mil no ano anterior,
redução de 1,1%). Em quarto, está o ‘Zero Hora’, do Rio Grande do Sul, com
circulação média de 178,2 mil exemplares (180,4 mil em 2004).


A ‘Gazeta Mercantil’ (74,4 mil) e o ‘Jornal do Brasil’ (68,2 mil) registraram
decréscimos de circulação de 16,1% e 10%, respectivamente, em 2005.


Jornais populares


Segundo Martins, o crescimento das vendas também foi puxado pelo jornais
populares, de baixo custo, ‘com muitas fotografias e noticiário compacto’.


‘O ‘Agora São Paulo’, por exemplo, está vendendo bem. O ‘Extra’, do Rio de
Janeiro, e o ‘Diário Gaúcho’, do Rio Grande do Sul, também estão puxando esse
aumento de circulação’, disse o diretor-executivo da ANJ.


Os números auditados pelo IVC confirmam que a maior expansão ocorreu entre os
jornais populares, cuja circulação total cresceu 7% no ano passado: 1,158 milhão
de exemplares contra 1,082 milhão em 2004. A circulação dos jornais regionais
cresceu 1,4%.


Em São Paulo, o mercado de jornais populares é liderado pelo ‘Agora’, que, em
2005, manteve o patamar de vendas do ano anterior (80,6 mil exemplares). O
‘Diário de S.Paulo’ (72,8 mil) e o ‘Jornal da Tarde’ (58,0 mil) tiveram redução,
respectivamente, de 7,8% e 6% no período.


No mercado nacional, o maior crescimento de circulação entre os jornais
populares foi obtido pelo ‘Lance!’ (116,4 mil exemplares em 2005, contra a média
de 86,7 mil, em 2004), num aumento de 34,3%. Esse segmento é liderado
nacionalmente pelo jornal ‘Extra’, com 271,8 mil exemplares em 2005, crescimento
de 11,7% em comparação ao ano anterior.


Num ano marcado por grave crise política, os três maiores jornais brasileiros
registraram crescimento de circulação no Distrito Federal: Folha (6%), ‘O Globo’
(19%) e ‘O Estado de S.Paulo’ (7%). A Folha e ‘O Globo’ registraram, igualmente,
expansão de 13% na circulação em Minas Gerais, um dos pólos da crise provocada
pelo ‘valerioduto’. ‘O Estado de S.Paulo’ registrou queda de 4% nas vendas em
Minas Gerais.


O diretor-executivo da ANJ não atribui ao noticiário político uma maior
influência no aumento total das vendas em 2005, pois os primeiros sinais do
crescimento antecederam o ‘mensalão’.


Martins vê com otimismo as perspectivas para este ano. ‘A Copa do Mundo
sempre dá um alento às vendas de jornais. A agenda eleitoral também deverá ter
reflexos na circulação, com novos leitores interessados na campanha e nos
programas políticos.’’




REQUIÃO vs. GAZETA
Folha de S. Paulo


ABI critica governador do Paraná por colocar outdoors contra jornal


‘A ABI (Associação Brasileira de Imprensa) enviou mensagem ao governador do
Paraná, Roberto Requião (PMDB), criticando os outdoors espalhados por Curitiba
contra o jornal ‘Gazeta do Povo’. Os cartazes, assinados pelo partido do
governador, dizem: ‘PMDB adverte: Gazeta do Povo mente’. O motivo do ataque
foram reportagens do jornal que criticaram a política de saneamento do Estado,
mostrando que as praias do Paraná eram as mais poluídas da região Sul do país, o
que indicaria descaso público. O jornal quer processar o partido.


A mensagem enviada pela ABI ao governador diz que as medidas, chamadas pela
entidade de ‘malsinadas ocorrências’, podem ‘caracterizar restrições ao
exercício da liberdade de imprensa que não se coadunam com a trajetória
democrática’ de Roberto Requião.


A organização também afirma que os outdoors ‘lembram práticas políticas que
mereceram reprovação dos setores democráticos da vida nacional quando oligarcas
locais não vacilavam em expor à exprobação pública aqueles que ainda que
timidamente contestavam seus atos’.


Procurado na noite da última sexta-feira, o governador não foi encontrado
para comentar a mensagem da ABI.’


FSP CONTESTADA
Painel do Leitor


Charges do islã


‘‘Em nome da comunidade islâmica e árabe do Brasil expressamos nosso repúdio
e decepção com a Folha de S.Paulo, que em sua edição de 31/1/2006, ao republicar
uma das infames caricaturas que intencionam retratar a imagem do profeta
Muhammad, de forma ofensiva agrediu e desrespeitou o Islã, os muçulmanos e o
povo árabe. Diversos órgãos da imprensa, nacional e internacional, veicularam a
notícia, mas, no entanto, foram respeitosos ao não publicar imagens que agridem
a opção e a liberdade religiosa dos demais. Salientamos que agredir e ofender a
religião e crença dos demais se caracteriza como um ato ilegal de acordo com a
Constituição nacional e a constituição da ONU. Acreditamos que as relações entre
os muçulmanos e a imprensa devam sempre se basear no respeito e no diálogo,
buscando sempre a aproximação e o entendimento entre as pessoas, povos e
civilizações, principalmente neste momento, em que o diálogo é tão necessário, e
mais uma vez afirmamos que essas são as bases reais ensinadas e estimuladas pelo
islã no nosso relacionamento com todos os órgãos, nações e suas crenças.’
Nasereddin Khazraji, secretário-geral do Centro Islâmico no Brasil (São Paulo,
SP)


Elites


‘Gostaria de parabenizar o cineasta Walter Salles pelo excelente artigo ‘Os
Idiotas’ (‘Tendências/Debates’, 9/2), que mostra a degradação das elites e
autoridades brasileiras. A maioria da população não percebe o quanto são nocivas
as atitudes da classe ‘A’ brasileira. Somos um povo trabalhador e honesto, mas
também humilhados e injustiçados todos os dias, e em nível internacional. Estive
no Japão e nos EUA e fui obrigada a ouvir de algumas pessoas: ‘Que pena, no
Brasil só há prostitutas e bandidos’. Respondi: não, temos também uma elite
burra, que opera contra a nação.’ Sandra Almeida (São Paulo, SP)


‘Walter Salles não é caricato. É quase um Goethe -discreto, bonito, rico,
inteligente, bem-sucedido. Admiro seu trabalho como cineasta, mas parece que ele
acha que quem é idiota são pessoas como eu. Concordo que não é nada polido
pousar de helicóptero na praia, mas não é disso que se trata, ou não apenas
disso. Talvez, como roteirista que sou, possa sugerir-lhe um roteiro -que
poderia ter o mesmo título de ‘Os Idiotas’. Seria a história de um povo que vê
um ‘biliardário’ se passar por homem comum, cineasta, anticonsumo, com forte
espaço na mídia. Esse homem (poderíamos chamar o Tom Cruise para o papel
principal?) faria filmes sobre Che Guevara e enganaria a todos a ponto de nem
parecer mais quem ele é, chegando ao cúmulo de dizer que todos são idiotas
enquanto seu cartão de crédito gold brilharia dentro de seu jeans velho, sua
camiseta branca barata e suas havaianas, tudo realmente muito chique e ‘cult’.
Walter Salles nem parece rico -tanto quanto seu banco deseja não parecer um
banco.’ Markus Avaloni (São Paulo, SP)


Governo Lula


‘Tenho reparado que, nas últimas semanas, o noticiário das realizações do
governo Lula na Folha tem sido quase que invariavelmente associado à expressão
‘em ano eleitoral’. Na reportagem ‘Prazo de treino preocupa, diz astronauta’
(Ciência, 9/2), sobre a viagem do primeiro astronauta brasileiro ao lado de um
russo e de um norte-americano, creio que o jornal ultrapassou os limites da
racionalidade. Tendo como único argumento a expressão ‘a Folha apurou’, o jornal
alega que a viagem na nave russa Soyuz, sob total comando dos russos, teria sido
antecipada de outubro para março ‘por escolha do governo brasileiro, motivada
pelas eleições de outubro’. Ora, nem um lunático seria capaz de acreditar que o
governo brasileiro poderia influenciar uma missão internacional desse nível de
complexidade. Além disso, o jornal não deve ter feito as contas direito. Se as
eleições serão em outubro, não seria melhor então para o presidente Lula que o
astronauta brasileiro chegasse ao espaço no auge da campanha, como estava
previsto pelos russos, e não seis meses antes? Creio que o jornal deve uma
explicação para essa afirmação que vai além de um simples ‘a Folha apurou’.’
Arnaldo Comin (São Paulo, SP)


Resposta do jornalista Salvador Nogueira – Os russos mandam espaçonaves Soyuz
ao espaço regularmente a cada seis meses. O Brasil queria o vôo para 2006, com o
objetivo de comemorar o centenário dos primeiros vôos de Alberto Santos-Dumont
com o avião 14-bis. As negociações originais tinham como outubro a data mais
provável. Depois, a pedido do governo brasileiro, a data foi antecipada para a
primeira oportunidade, na época ao redor de abril. Duas fontes independentes
ligadas ao programa espacial brasileiro que optaram por não se identificar
confirmaram que a opção do governo estava atrelada às
eleições.’




TELEVISÃO
Daniel Castro


Globo já negocia ‘Big Brother’ até 2010


‘Para muita gente, a sexta edição de ‘Big Brother Brasil’, que está no ar,
não está empolgando, o que revelaria um desgaste natural do ‘reality show’. Mas,
para a Globo, isso é uma falsa impressão.


Tanto que a emissora já negocia com a Endemol, produtora do grupo Telefônica
que detém os direitos mundiais do programa, a renovação do atual contrato.


Em 2005, a Globo fechou com a Endemol contrato que lhe dá o direito de
produzir um ‘BBB’ por ano até 2008. Agora, a emissora quer assegurar o ‘reality
show’ pelo menos até 2010. Ou seja, a série pode superar o ‘BBB 10’.


A Globo negocia a extensão do contrato com a Endemol baseada em números do
Ibope. Ao contrário do que possa aparentar para a crítica, que vê em ‘BBB 6’ um
cansaço da fórmula, sua audiência está muito boa. Às terças-feiras, dia de
‘paredões’, ‘BBB 6’ marca até agora na Grande São Paulo média de 45 pontos. Só
perde para ‘BBB 5’ (50 pontos).


Para a Globo, o quinto ‘Big Brother’ foi ‘excepcional’. Logo na primeira
semana, os participantes se dividiram em dois grupos, de ‘vilões’ e ‘mocinhos’,
o que mobilizou o público e chamou a atenção da imprensa.


O sexto ‘Big Brother’ quase não aparece em jornais e revistas, mas continua
com ibope de novela das oito. Isso ‘indica não haver desgaste do programa’,
registra uma análise do departamento de pesquisas da Globo.


OUTRO CANAL


Carimbo Deverá ser de Walther Negrão (‘Como uma Onda’) a novela das seis da
Globo que substituirá ‘Sinhá Moça’, que estréia em março. Elizabeth Jhin, que
foi co-autora de ‘Começar de Novo’, está na disputa, mas Negrão lidera as
preferências. O martelo só deverá ser batido pela cúpula da Globo nesta semana.


Estatueta O canal Telecine bateu um recorde neste ano: já adquiriu os
direitos de 11 filmes que concorrem em alguma categoria do Oscar. Os principais
são ‘O Segredo de Brokeback Montain’, ‘Crash – No Limite’, ‘Capote’ e ‘Munique’
_simplesmente quatro dos cinco que disputam o Oscar de melhor filme. O Telecine
acaba de comprar também ‘O Jardineiro Fiel’, dirigido pelo brasileiro Fernando
Meirelles.


Sabático Funcionários da Band já estão até com saudades. Fora do ar e sem
qualquer perspectiva de voltar tão cedo, a apresentadora Márcia Goldschmidt não
dá as caras na emissora desde o ano passado. Está viajando pelo exterior.


Positivo Nem tudo é ruim na caracterização da minissérie ‘JK’, em que alguns
personagens envelheceram demais e outros continuam, aos 40 anos, com a mesma
cara e corpo de quando tinham 20. A barriga postiça de Antonio Calloni está
impecável. Até parece que nasceu com o ator.’


Laura Mattos


Pai do ‘Castelo Rá-Tim-Bum’ volta à infância


‘Cao Hamburger, mentor do clássico infantil ‘Castelo Rá-Tim-Bum’, tinha oito
anos em 1970, quando viveu um dos melhores e um dos piores momentos de sua
infância: viu o Brasil ser tricampeão na Copa do Mundo e, poucos meses depois,
seus pais serem presos pela ditadura militar.


É esse também o enredo de seu novo filme, ‘Goleiro’, com lançamento previsto
para agosto, quando já terá passado a Copa.


Após seu primeiro longa-metragem, ‘Castelo Rá-Tim-Bum, o Filme’ (2000),
Hamburger optou por uma obra ‘adulta’, mas não resistiu a voltar para a infância
e resgatar parte de sua própria história. Não é exatamente uma obra
autobiográfica, diz o cineasta, mas há ainda outra referência à sua vida. O
garotinho Mauro, após o sumiço dos pais, passa a conviver com uma tradicional
comunidade judaica do Bom Retiro.


‘Meu pai é judeu e minha mãe, católica. Fiz isso no filme para entender essa
lado da minha família, para conhecer melhor essa cultura, com a qual nunca tive
muito contato’, explica Hamburger.


O bairro, no centro de São Paulo, é hoje também dos imigrantes coreanos, mas
em 1970, tempo de ‘Goleiro’, foi reduto de judeus que falavam iídiche e
resolviam suas questões com o rabino.


Uma rua do centro de Campinas (interior de SP), ainda de paralelepípedo, foi
utilizada para reconstituir o Bom Retiro de 1970, além de algumas partes pouco
modificadas na região paulistana.


Judeus de verdade


‘Goleiro’ tem também cenas reais dos gols da ‘melhor seleção brasileira de
todos os tempos’, nas palavras de Hamburger. A Copa de 70, ‘a primeira’ do
cineasta (nas anteriores ele não tinha idade suficiente para curtir), é quase um
personagem do longa.


Quando os pais (Simone Spoladore e Eduardo Moreira) deixam Mauro com o avô
(Paulo Autran), dizem que voltam para buscá-lo após a Copa. E o menino, que
sonha ser goleiro, assiste aos jogos enquanto os espera (os de Hamburger ficaram
presos por dez dias, e ele ficou com os avós, pelo que se lembra: ‘É um assunto
sobre o qual não falamos’.)


Ao mesmo tempo, Mauro, que morava em Belo Horizonte, tem de se adaptar à
mudança de cidade e aos costumes da religião com a qual não tinha contato.


Além dos já citados atores profissionais, há participação de Caio Blat. Mas
os protagonistas foram garimpados em escolas e instituições de terceira idade
judaicas.


‘Queria preparar pessoas da própria comunidade que não tivessem experiência
nem vícios de interpretação’, diz Hamburger.


Mais de mil crianças foram testadas até a descoberta de Michel Joelsas, 11,
numa escola judaica de SP. Lindo, de olhos claros, ganhou o papel do
protagonista e demonstra ter aprendido o ofício nas cenas vistas pela Folha.
Outro achado de Hamburger num colégio judeu paulistano foi a expressiva Daniela
Piepszyk, 10, que interpreta Hanna, amiga de Mauro.


O papel de Shlomo, vizinho do avô de Mauro que acaba o adotando
provisoriamente, ficou com o empresário judeu Germano Haint, 65. Morador do
Recife, ele sabe falar iídiche e topou o convite para a inédita experiência.


A preparação dos ‘recém-atores’, como diz Hamburger, durou dois meses e teve
a coordenação de Laís Corrêa, que já havia feito esse trabalho em ‘2 Filhos de
Francisco’ e ‘Casa de Areia’.


Para o roteiro, Hamburger teve a colaboração Bráulio Mantovani (indicado ao
Oscar por ‘Cidade de Deus’), Claudio Galperin (‘Cidade dos Homens’ e ‘Acquaria’)
e Anna Muylaert, sua parceira também em ‘Castelo Rá-Tim-Bum’ (programa de TV e
filme) e na inédita série ‘Menino Maluquinho’, da TVE (leia ao lado).


A fotografia setentista é assinada por Adriano Goldman (‘Cidade dos Homens’ e
‘O Casamento de Romeu e Julieta’). A produção, da Gullane Filmes, teve um
orçamento de R$ 5,6 milhões, e o lançamento, da Buena Vista, deverá ter uma
verba de R$ 1,5 milhão.’




***


Diretor estréia as séries ‘Carnaval’ e ‘Maluquinho’


‘Enquanto finaliza o filme ‘Goleiros’, Cao Hamburger estreará duas séries
televisivas: ‘Filhos do Carnaval’, no canal pago HBO, e ‘Menino Maluquinho’, na
emissora pública TVE/Rio (a ser exibida em SP pela Cultura).


‘Filhos do Carnaval’ é protagonizada por Jece Valadão, um bicheiro que banca
uma escola de samba. A série, que gira em torno desse tema que estrangeiros
adoraram, será veiculada no Brasil e na América Latina.


A produção custou R$ 6 milhões (valor considerável para os padrões
televisivos brasileiros), e toda a filmagem foi feita em película (material de
cinema). O dinheiro é proveniente do artigo 39 da Ancine (Agência Nacional do
Cinema), que incentiva canais estrangeiros a investirem no Brasil.


É a segunda produção brasileira da HBO (a primeira foi ‘Mandrake’, baseada na
obra de Rubem Fonseca).


Serão seis episódios de 50 minutos cada um (domingos, às 22h). A estréia está
marcada para 5/3 e, assim como foi feito com ‘Mandrake’, deverá ser aberta a
todos os assinantes (o canal HBO é à la carte ou exclusivo de pacotes mais
caros).


Hamburger conta que se preocupou em evitar estereótipos carnavalescos, apesar
de haver cenas reais do desfile da Mocidade (Rio). ‘Não aparece nenhuma bunda’,
garante, rindo.


Já o seriado infantil ‘Menino Maluquinho’, conta Hamburger, foi inspirado no
primeiro livro de Ziraldo.’


Nina Lemos


Série americana vira novo espelho feminino


‘A recepcionista Luciana Millaneli, 29, ainda não é uma mulher casada com
filhos e uma vida pacata. Mas já imagina como será no dia em que isso acontecer.
‘Acho que vai ser meio parecido com ‘Desperate Housewives’, ela diz.


O seriado que inspira Luciana mostra a vida de cinco donas-de-casa de
subúrbio americano: Linett, Susan, Bree, Edie e Gabrielle. A vida das moças,
narrada por uma amiga delas que se mata no primeiro episódio, fez com que o
seriado virasse campeão de audiência nos EUA. Por aqui, também serve de espelho
para telespectadoras como Luciana, que se identificam com as personagens.


A segunda temporada de ‘Desperate’, que venceu o mais recente Globo de Ouro
na categoria série de TV de comédia/ musical, estréia nesta quinta-feira, às
20h, no Sony, com vários enigmas revelados.


Para as fãs, um deleite, já que elas falam das personagens com intimidade,
como se fossem amigas delas. Ou melhor, como se fossem elas próprias. ‘Eu sou a
Susan, ela é superparecida comigo, meio maluca. Mas às vezes até que eu gostaria
de ter a coragem da Eddie’, diz Luciana.


Pode parecer conversa de maluco. Mas isso significa que a moça se sente uma
mulher normal, meio neurótica e romântica, mas que gostaria de ser mais prática
e amoral. Isso porque cada uma das personagens (como em ‘Sex and the City’) é um
estereótipo bem-formado. Bree é uma mulher fria, com mania de limpeza. Linette é
a que largou a carreira para ter uma penca de filhos. Susan é uma mãe solteira
louca por um novo amor. Eddie dá em cima dos namorados das amigas. Gabrielle é
casada com um homem rico e amante até do jardineiro.


‘A série faz sucesso porque são mostrados comportamentos femininos em formato
de caricatura’, diz a produtora Kika Pereira, 43. Segundo ela, a série exibe
desejos femininos levados às últimas conseqüências. ‘A gente pode ter vontade de
matar o marido, mas claro que não vamos fazer isso na vida real. O legal é que,
como é ficção, elas vão lá e fazem.’


A produtora diz que ‘gostaria de ser controlada como a Bree’. ‘Mas não sou.
Sou meio histérica, choro muito. Acho que sou mais parecida com a Susan.’


A tradutora Alyne Azuma, 26, se considera uma mistura das personagens. ‘Mas
no momento sou mais parecida com a Lynett, nessas coisas de ter muito o que
fazer e colocar o pé pelas mãos.’


O fanatismo é tão grande que algumas telespectadoras são capazes de fazer
projeções para o futuro. ‘Acho que eu sou parecida com a Susan porque faço o que
quero, mas quando tiver filhos posso ficar parecida com a Linett’, diz a
estudante Melissa Campanini, 23.


As fãs consideram o seriado do momento uma espécie de ‘Sex and the City’ com
mulheres casadas. ‘É um pouco parecido com o futuro de ‘Sex’, sim. Os seriados
têm em comum essa coisa de amizade entre as mulheres’, diz Alyne. Prova disso é
a mania de brincar de ‘quem é quem’. Existem vários desses testes sobre ‘Sex’ na
internet. Agora, começa a mania por ‘Housewives’ -um acordo entre a Disney e a
Rede TV! já prevê uma versão brasileira da série.


Por que tanta identificação? ‘Acho que toda mulher se identifica com uma das
personagens, essa coisa de se apaixonar, ser ligada às amigas, trair’, diz
Luciana. Na vida real, ela diz que não seria capaz de casar com um homem rico e
ter um caso com o jardineiro. ‘Mas até que é engraçado quem é corajosa assim’,
diz. Sim, as heroínas do momento são capazes de matar e trair.’


Bia Abramo


‘Avassaladoras’ ignora a vida nas ruas


‘Curioso: um país com tantos e tão bons cronistas poderia, em tese, ter
roteiristas que conseguissem fugir dos estereótipos, das caricaturas, dos tipos
‘publicitários’. Não tem.


A sensibilidade de cronistas, capazes de, em diversos momentos, captar a alma
encantadora das ruas (e daqueles que circulam nelas), não se transmitiu para a
produção ficcional de TV.


Talvez porque não haja mais ruas. A hipótese pode parecer meio abstrusa, mas
quem sabe é essa a razão para explicar a tibieza de uma série como
‘Avassaladoras’? Exibida pela Record e pela Fox, veio, por um lado, recomendada
pelo sucesso razoável do filme homônimo e, de outro, com o peso de ser uma
sucedânea local de ‘Sex and the City’ -isso sem contar a responsabilidade de ter
sido produzida com dinheiro público.


Então, temos ali um grupo de amigas em torno dos 30 anos, em diferentes
estados civis e graus de histeria. O que se tenta é tratar com humor o estado
atual das relações entre homens e mulheres modernos, urbanos, profissionais de
classe média. O que se consegue fica tão aquém disso que é de se perguntar o
porquê.


E, diante da artificialidade dos diálogos, da falta de profundidade dos
personagens, da pobreza geral das situações, da incapacidade de o enredo sair do
esboço e ganhar alguma vida, graça ou relevância, surge a hipótese de que quem
faz a série não tem idéia do que está falando. Ou melhor, tem só uma noção, bem
vaga, e poucos recursos técnicos para transformá-la em ficção.


Não é só uma questão de verossimilhança, embora às vezes a tessitura
ficcional seja tão frágil que também aí apresente buracos, mas de uma certa
verdade que escapa e sem a qual uma peça ficcional, que pretende flagrar um
universo específico e dele extrair graça, não funciona. E escapa pela técnica
tosca -sim, se pode falar em rigor no terreno do entretenimento- mas também
porque, simplesmente, talvez não exista.


Voltemos à hipótese. Como fazer a crônica de uma classe média que não convive
coletivamente na cidade, que não está na rua para ser observada pelo escritor?
Como falar de gente que se esconde, apavorada, com medo do outro? Como falar de
cultura urbana num país em que a convivência nas cidades é de esquiva e
confronto?


Em ‘Sex and the City’, por exemplo, a presença da cidade -e não qualquer uma,
mas ‘a cidade’, Nova York- é tão significativa que está no título. Carrie e suas
amigas andam pelo parque, freqüentam os cafés e restaurantes, pegam táxi, entram
nas lojas. Em quase todos os episódios há referências a hábitos, modismos,
nomes, programas reais da cidade; em quase todos, há cenas externas. É
evidentemente uma representação da cidade, mas uma representação de um lugar que
existe. ‘Avassaladoras’, por sua vez, parece concebida e produzida em lugar
nenhum, para ninguém.’


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