Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Google é obstáculo à parceria Microsoft-Yahoo!

Leia abaixo a seleção de terça-feira para a seção Entre Aspas.


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Folha de S. Paulo


Terça-feira, 5 de fevereiro de 2008


TECNOLOGIA
Andrew Ross Sorkin e Miguel Helft


Google tenta inviabilizar união Microsoft-Yahoo!


‘DO ‘NEW YORK TIMES’ – O maior obstáculo à união entre a Microsoft e o Yahoo! pode ser o gigante tecnológico que os vêm derrotando o tempo todo: o Google.


Em um esforço incomumente agressivo para impedir que a Microsoft leve adiante sua oferta de US$ 44,6 bilhões pelo Yahoo!, o Google desenvolveu planos no fim de semana para atrapalhar a transação.


A empresa se posicionou contra a aquisição publicamente, alegando em comunicado que a união, proposta pela Microsoft na sexta-feira na forma de uma oferta hostil de tomada de controle acionário, seria uma ameaça à livre concorrência e teria de ser examinada pelas autoridades de defesa da competição em todo o mundo.


E o Google, que considera a possível união como ataque direto, foi muito além disso nos bastidores. O presidente-executivo da empresa, Eric Schmidt, telefonou para Jerry Yang, o presidente-executivo do Yahoo!, oferecendo ajuda para que a empresa resista à oferta, possivelmente na forma de uma parceria entre os dois grupos, disseram pessoas informadas sobre a conversa.


Os grupos de lobby do Google em Washington começaram a planejar a melhor maneira de apresentar argumentos contrários à proposta diante dos legisladores, disseram pessoas que estão informadas sobre os planos da empresa. O Google pode se beneficiar caso consiga simplesmente prolongar a revisão de uma fusão pelas autoridades regulatórias até a posse do próximo presidente dos EUA.


Além disso, executivos do Google fizeram contato discreto com aliados em empresas como a Time Warner, que controla a America Online, a fim de determinar se elas planejavam apresentar proposta rival, e de que maneira o Google poderia ajudar, segundo essas fontes. O Google detém participação de 5% na America Online.


A despeito dos esforços do Google e do trabalho dos bancos que atendem ao Yahoo! no fim de semana para despertar interesse em uma proposta que rivalize com a da Microsoft, não parece provável que surja uma oferta concorrente, pelo menos no estágio inicial do processo.


Rivais intimidados


Um porta-voz da News Corp., por exemplo, declarou no domingo que a empresa não estava preparando uma proposta, e outros potenciais interessados mencionados com freqüência, como Time Warner, AT&T e Comcast, ainda não começaram a trabalhar em possíveis ofertas, disseram pessoas que conhecem essas companhias. As fontes sugeriram que os grupos não desejavam entrar em um leilão contra a Microsoft, já que esta poderia facilmente superar quaisquer lances.


Enquanto isso, pessoas próximas ao Yahoo! afirmam que a empresa recebeu uma série de consultas de possíveis interessados em sua aquisição, no fim de semana. Alguns funcionários do grupo chegaram a especular quanto à possibilidade de dissolver a empresa. Isso significaria vender ou terceirizar seus serviços de busca para o Google e promover a cisão ou a venda de subsidiárias que produzam conteúdo original, segundo essas fontes.


Uma pessoa envolvida nas deliberações do Yahoo! sugeriu que ‘a soma das partes valia mais que o todo’, argumentando que diversas das divisões do grupo, como o Yahoo! Finance, por exemplo, poderiam ser vendidas a uma empresa como a News Corp. com grande ágio, enquanto o Yahoo! Sports poderia ser vendido à ESPN, subsidiária da Walt Disney.


Os executivos de empresas rivais demonstraram menos otimismo quanto a essa estratégia de divisão. ‘Ninguém vai chegar a um preço de US$ 44 bilhões’, disse um executivo de uma grande empresa de mídia, ‘mesmo que eles dividam o grupo em uma dúzia de partes’.


Ontem o Yahoo! informou apenas que estudará todas as opções ao seu alcance diante da oferta da Microsoft.


Ao fazer sua oferta pelo Yahoo!, a Microsoft está apostando que as decisões judiciais dos últimos anos que a consideraram culpada de abusos de seu poder monopolista no mercado de software para computadores pessoais não restrinjam sua liberdade de ação na aquisição de uma empresa de Internet.


No comunicado divulgado no domingo, o Google afirma que a potencial aquisição do Yahoo! pela Microsoft acarretaria ameaças à competição que precisariam ser examinadas pelas autoridades competentes.


O esforço do Google para bloquear ou retardar a transação alegando questões antitruste espelha as ações da Microsoft contra ele com relação à aquisição da DoubleClick, uma empresa de publicidade on-line, em uma transação de US$ 3,1 bilhões anunciada em abril.


A estratégia não surpreende, se considerarmos que qualquer atraso beneficiaria o Google. ‘O Google poderia explorar toda a má vontade que a Microsoft despertou junto às autoridades de defesa da competição nas últimas duas décadas’, disse Eric Goldman, diretor do Instituto de Leis de Alta Tecnologia, na Escola de Direito da Universidade de Santa Cruz.


O resultado de qualquer inquérito antitruste dependerá, em parte, de como as autoridades definirão os diversos mercados. Uma combinação entre Yahoo! e Microsoft, por exemplo, controlaria larga proporção do mercado de e-mail na web, mas uma fatia menor do mercado de e-mail mais amplo.


‘A preocupação potencial seria que a Microsoft, caso adquira o Yahoo!, aja no mercado de internet como o fez no mercado dos computadores pessoais e pressione por padrões mais enquadrados aos seus produtos, de maneira a atrair mais consumidores’, disse Stephen Houck, um advogado que representa os Estados envolvidos no processo antitruste original contra a Microsoft.


Carl Tobias, professor de direito na Universidade de Richmond, disse que uma revisão das questões antitruste criadas pela união entre Microsoft e Yahoo! poderia demorar muito ‘e facilmente se estender a um novo governo, que adote posições muito diferentes das que o governo Bush sustenta com respeito a questões antitruste’.


Tradução de PAULO MIGLIACCI’


 


Folha de S. Paulo


Microsoft rebate acusações feitas pelo Google


‘Um dia depois das críticas públicas da direção do Google à oferta da Microsoft pelo Yahoo!, o CEO (presidente-executivo) da gigante de software, Steve Ballmer, rechaçou que a concretização do negócio possa prejudicar a concorrência na internet.


Segundo Ballmer, diante de um grupo de analistas em Nova York, a união entre Microsoft e Yahoo! permitiria, na verdade, a criação de um ‘forte competidor número 2’ contra o líder em buscas na internet, o Google.


‘O Google claramente tem uma posição dominante. Eles têm cerca de 75% do sistema de busca paga no mundo’, afirmou Ballmer. ‘Nós consideramos [que a nossa oferta] fortalece a competição. Qualquer outra coisa não seria tão positivo sob essa perspectiva’, disse.


No domingo, em ‘post’ no blog da empresa, o vice-presidente sênior do Google David Drummond acusou a Microsoft de tentar estender à internet suas práticas monopolistas em outras áreas, como a de software.


‘Será que a Microsoft poderia agora tentar exercer a mesma espécie de influência indevida e ilegal sobre a internet que ela exerceu sobre os computadores pessoais?’, questionou Drummond, que também é diretor jurídico da empresa líder em buscas.


Mas, segundo analistas, as preocupações do Google não oferecem alegações detalhadas sobre os efeitos adversos da transação sobre a competição, e a empresa não solicitou publicamente de imediato que as autoridades regulatórias tomassem providências específicas.


O Yahoo! se recusou a comentar as declarações do executivo do Google.


Com agências internacionais e o ‘New York Times’’


 


GOVERNO
Eliane Cantanhêde


A folia continua, o portal some?


‘BRASÍLIA – Alguém perguntou ao site ‘SexoCristão’ se freqüentar motéis seria pecado. Resposta: ‘Não há pecado em ir a motel com o seu marido. O problema está no fato de um conhecido (ou outra pessoa) vê-los entrando no motel. Isso, sim, pode prejudicar a imagem do casal cristão’. Traduzindo: pode fazer qualquer coisa, mas faça escondido. O pecado não é fazer, é ser pego com a boca na botija.


Essa moral tem uma versão política -’o que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde’- e está neste momento em discussão no governo. O pecado não é a ministra Matilde gastar R$ 171 mil dos cofres públicos em férias, aluguel de carros, almoços e comprinhas em free shop. O problemaço é que descobriram e foi parar na imprensa.


A culpa não é dela e dos outros ministros que caem na folia por aí usando o cartão corporativo do governo para tudo e qualquer coisa, nem dos seguranças da filha do presidente que o sacam até para material de construção. A culpa é de quem mostrou e de quem divulgou.


A solução, portanto, é simples: tire-se do ar o ‘Portal da Transparência’ da Controladoria Geral da União. Cada ministro, segurança e assessor que gaste quanto, onde, com quem e como bem entender.


Ninguém precisa ficar sabendo.


Corte-se o mal pela raiz!


Benedita da Silva caiu depois de viajar a Buenos Aires, já no primeiro ano de governo, com passagem (executiva) e hotel (um dos três melhores da cidade) pagos pelo contribuinte, mas para participar do 12º Café da Manhã com Evangélicos; Matilde, depois que descobriram que era a campeã dos cartões corporativos, na proporção inversa à relevância do cargo.


Duas mulheres, duas negras, duas ministras, uma da Promoção Social, outra da Igualdade Racial.


Duas vitórias do movimento feminino. Duas vitórias do movimento negro. Duas apostas para revigorar a ‘área social’. Para dar nisso?’


 


Elvira Lobato


Temporão acusa mídia de alardear a febre amarela


‘O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, criticou a atuação da imprensa na cobertura dos casos de febre amarela, e defendeu que a saúde pública seja tratada como questão de segurança nacional. Para ele, não cabe à imprensa questionar informação das autoridades sanitárias sobre necessidade de vacinação.


‘Um número pequeno de casos de febre amarela silvestre foi tratado por alguns veículos como ameaça de epidemia. Isso é muito perigoso. Não se pode tratar uma matéria com tantas implicações como qualquer fato’, afirmou Temporão, em entrevista no sambódromo, domingo à noite, onde esteve como convidado do governador Sérgio Cabral Filho (PSDB).


Segundo o ministro, milhares de pessoas se vacinaram sem necessidade porque a mídia pôs em dúvida as declarações das autoridades sanitárias. Defendeu que a liberdade de questionamento da imprensa não pode prevalecer em questões de saúde pública.


‘Nesse caso, acho complicado falar no papel da imprensa de duvidar e de questionar. Nesse caso, cabe à imprensa informar, acompanhar, analisar, comentar (…). A questão poderia ser tratada até como de segurança nacional’. declarou.


Para ele, cabem comentários, reflexões e análise na cobertura jornalística, mas, questionar a seriedade da autoridade sanitária sobre a necessidade de vacinação é ‘perigosíssimo’.


‘Vamos aos fatos: o governo colocou com clareza o que devia ser feito, mas criou-se um questionamento. Ouvi gente no rádio, com irresponsabilidade brutal, questionando abertamente se o governo estava falando a verdade. A população, desorientada, se vacinou desnecessariamente, e gente morreu. Pessoas adoeceram, e aí? (…) Não acho que a imprensa tenha sido responsável por mortes, seria exagero falar isso’, declarou.


Também criticou jornais que, na avaliação dele, passaram aos leitores a idéia de que o governo não dizia a verdade, ao negar risco de epidemia.


‘Dei entrevista coletiva, não adiantou. Fui à TV, em rede nacional. Não adiantou. Questionaram a seriedade da autoridade sanitária, como se fosse possível brincar com a saúde pública. Todos os sanitaristas cientistas de respeito do país falaram o mesmo que o governo, e, mesmo assim, ainda leio pessoas ironizando e questionando se o governo é sério, misturando política e saúde pública.’


Segundo o Ministério da Saúde, ocorreram 13 mortes por febre amarela silvestre desde 30 de dezembro, o mesmo total de mortes registrado nos últimos quatro anos. Contando os que sobreviveram à doença, são 25 as suspeitas confirmadas. O Estado mais atingido é Goiás, com 18 casos e 12 mortes, seguido do Distrito Federal, com três casos e uma morte.’


 


TELEVISÃO
Daniel Castro


Dinheiro de Pernambuco seduz a Band


‘A novidade do Carnaval deste ano na TV foi a abertura de espaço, pela Band, para as manifestações populares de Pernambuco.


Depois de 15 anos de exclusividade a Salvador, finalmente a Band cedeu aos apelos do governo pernambucano, comprador de uma cota de patrocínio (R$ 8,5 milhões na tabela).


Houve protestos na Bahia. Diante do ‘glass studio’ da Band em Barra-Ondina (Salvador), o músico Alexandre Peixe disse ao vivo e em rede nacional que estava ‘indignado’ porque a emissora não transmite mais de Campo Grande -outro ponto de concentração de trios elétricos baianos.


Não é bem assim. A Band continua em Campo Grande, mas mostra pouco, porque agora tem de revezar Salvador com Olinda e Recife. E o áudio em Campo Grande é péssimo. Parece pirata.


A Band apanhou para transmitir o Carnaval pernambucano, muito diferente do soteropolitano, no qual já tem know-how de cobertura.


Em Olinda, os blocos não têm caminhão de som, o que prejudica a captação de áudio. Os foliões apenas vão e voltam, o que não tem a menor graça na TV.


Em Recife, a emissora se postou diante do palco do maior pólo carnavalesco da cidade. Exibiu de shows de artistas consagrados a apresentações folclóricas. Mas a iluminação e captação de áudio ainda têm muito o que melhorar.


SALVE, JORGE


Patrocinadores das transmissões da Band, os governadores de Pernambuco e Bahia foram paparicados. Ao da Bahia, Jacques Wagner, o repórter perguntou qual era a diferença do Carnaval de 2007 para o de 2008, ambos ‘maravilhosos’. Diante de tanta generosidade, o político nem se importou em ser chamado de Jorge Wagner (jogador do São Paulo).


FOLIA SHOPPING


O Carnaval da Band é um grande shopping. Uma geladeira de cerveja compõe o cenário do estúdio de Salvador. Um repórter leva o nome de refrigerante. Outro, de um creme dental, dá brindes a beijoqueiros. Os apresentadores pedem lances para o ‘leilão’ de um carro e anunciam a venda de vídeos, músicas e fotos pelo celular.


FALASTRÕES


Âncoras da Globo no Rio de Janeiro, Cléber Machado e Maria Beltrão iniciaram as transmissões falando sem parar. Ficou a impressão de que queriam provar que não só estudaram os enredos, mas também história e mitologia.


OVER


A Globo estreou um telão imenso no sambódromo do Rio, onde exibe as marcas de seus patrocinadores. Além dos ‘efeitos visuais’, as escolas têm que dividir espaço na tela com a ‘globeleza’ e logomarcas.


ÉTICA PROTESTANTE


Na Record, o Carnaval se resume ao camarote de uma cervejaria no Rio, que patrocina a transmissão. Já os telejornais abrem alas para as tragédias.’


 


Lucas Neves


‘The Black Donnellys’ chega ao fim


‘O AXN anuncia para hoje o último capítulo da ‘minissérie’ ‘The Black Donnellys’, criada pelos ‘oscarizados’ Bobby Moresco e Paul Haggis (de ‘Crash’). Pois bem: de saída, já temos um erro conceitual. ‘Donnellys’ é uma série (e não minissérie) cuja primeira temporada foi concebida com 13 episódios.


Por causa da baixa audiência e da recepção pouco entusiasmada por parte da crítica norte-americana, só seis segmentos foram ao ar, no primeiro semestre de 2007 (os outros sete foram relegados ao site da emissora NBC).


A trama gira em torno dos quatro irmãos Donnellys, de ascendência irlandesa, que se envolvem com o crime organizado no distrito barra-pesada de Hell’s Kitchen, em Nova York. No derradeiro episódio, Tommy, o líder do clã, seguindo o conselho de um policial, decide deixar a cidade, mas Jimmy, o primogênito, quer fazer um último acerto de contas.


Em resenha publicada na estréia da série, o ‘New York Times’ criticou maneirismos estéticos (como o visual excessivamente sombrio) e o tom de sermão da narrativa. ‘[Paul] Haggis lhe conta o que quer lhe contar, e aí lhe conta o que contou’, disse a crítica do diário. Quem viu o superestimado ‘Crash’ sabe exatamente do que ela está falando.


THE BLACK DONNELYS


Quando: hoje, às 20h


Onde: AXN’


 


CINEMA
Marco Aurélio Canônico


Navalha na carne


‘É o tipo de cena que fez muita gente passar mal nos cinemas americanos: uma garota pendurada de cabeça para baixo vai sendo lentamente fatiada com uma foice por uma mulher nua, deitada em uma banheira, em busca de um banho de sangue.


Ela está em ‘O Albergue 2’, a última sensação do ‘torture porn’ a chegar às locadoras brasileiras, e resume bem o porquê desse tipo de filme de horror ter sido rotulado assim pelos críticos -algo como ‘tortura pornográfica’.


Desde o imenso e inesperado sucesso de ‘Jogos Mortais’ (2004) e ‘O Albergue’ (2005), os filmes de horror passaram a um novo patamar de brutalidade e explicitação, com tortura sádica em close e muito sangue derramado. Críticos enojados tanto com os filmes quanto com seu sucesso forjaram o rótulo ‘torture porn’ para detonar de roldão todos eles.


Esqueceram-se, no entanto, de olhar a sociedade em que vivem, o mundo pós-11 de Setembro onde as cenas de tortura no Iraque viraram rotina. É o que afirma à Folha Adam Lowenstein, professor de estudos cinematográficos da Universidade de Pittsburgh (EUA) e autor de livro sobre o papel social dos filmes de horror.


FOLHA – Já é possível estabelecer o papel da nova geração do horror?


ADAM LOWENSTEIN – Acho que é um pouco cedo, como mostra o debate sobre o ‘torture porn’. Para mim, isso é uma indicação de que a maioria dos críticos e parte do público ainda não estão prontos para lidar com esses filmes do modo como lidamos com ‘A Noite dos Mortos-Vivos’ [de George A. Romero], que já é analisado rotineiramente com foco em sua importância social e política.


Não quero dizer que os filmes recentes que são colocados sob esse rótulo, como as séries ‘Jogos Mortais’ e ‘O Albergue’, são tão bons quanto ‘A Noite…’, mas acho que, com o tempo, algumas coisas sobre esses filmes ficarão mais claras.


Olhando para as críticas da época do lançamento do filme de Romero, em 1968, percebe-se que ele também foi descrito como um ‘torture porn’.


FOLHA – O rótulo é inadequado?


LOWENSTEIN – Acho-o infeliz e pouco útil ao debate. O termo tem uma conotação muito negativa e sugere que a violência nesses filmes é gratuita, irresponsável. Não quero generalizar, mas alguns deles são violentos por um motivo. Uma coisa que ficará clara com o tempo é que o rótulo ‘torture porn’ terá de ser analisado em relação ao escândalo da tortura em Abu Ghraib, na Guerra do Iraque. Muitos dos filmes foram lançados e discutidos dentro do contexto pós-11 de Setembro.


FOLHA – O nível geral de violência explícita aumentou nos filmes, mesmo em outros gêneros?


LOWENSTEIN – Sim, e acho que faz sentido que tenha aumentado no geral. Os filmes não têm mais o papel central que costumavam ter na consciência social, precisam brigar muito mais para serem notados. E uma maneira de fazer isso é ficar mais gráfico, visceral, tendendo ao confronto, gritando por atenção. Muito disso é preocupante, mas não acho que estejamos testemunhando uma escalada sem precedentes.


O nível de violência que vemos agora não é tão diferente de momentos anteriores de crise, como o período dos anos 80 em que ‘Rambo’ surgiu.


FOLHA – Mas, até pela evolução dos efeitos especiais, os filmes hoje não estão indo mais longe do que nunca nas cenas explícitas?


LOWENSTEIN – Não acho. Se olharmos para coisas tão recentes quanto os ‘slasher movies’ do fim da década de 70, aqueles filmes são tão brutais quanto ‘O Albergue’. Os ‘Sexta-Feira 13’ são bastante gráficos e brutais, com ótimos efeitos especiais feitos com látex. Hoje, temos computação gráfica, que é bem menos visceral, os efeitos com látex são bem mais realistas, corporais. Você nota em filmes como ‘O Albergue’ ou ‘Grindhouse’ a preferência pelo látex, o que mostra o desejo nostálgico de voltar a um tempo em que a brutalidade era mais encorpada.


FOLHA – Sam Raimi disse que é a quebra de tabus que move os filmes de horror. O sr. concorda?


LOWENSTEIN – Acho que a quebra de tabus é central para o gênero, mas a maneira como eles são quebrados varia muito. Pense em momentos importantes, como 1968, que teve ‘A Noite dos Mortos-Vivos’ e ‘O Bebê de Rosemary’, dois filmes bem diferentes, um independente, outro de um grande estúdio. Ambos estabeleceram novidades, e ainda sentimos suas influências, mas não podemos dizer que quebraram tabus da mesma forma.


FOLHA – Como se explica o imenso sucesso desses novos filmes?


LOWENSTEIN – Há vários fatores, um deles é que foram lançados em uma época em que havia uma demanda não atendida por violência gráfica nas telas. Havia poucos filmes dispostos a explorar a parte mais extrema da categoria R da censura [em que menores de 17 anos precisam da companhia de um adulto], o modelo em voga era o da série ‘Pânico’, de filmes mais leves. ‘Jogos Mortais’ e ‘O Albergue’ apostaram nesse nicho, e estavam certos.


FOLHA – O que o sr. acha do novo terror asiático?


LOWENSTEIN – Vejo um paralelo forte entre os filmes de horror japoneses da década de 90 até hoje com os americanos dos anos 60 e 70. Além de se parecerem na popularidade que atingiram, ambos os ciclos surgiram a partir de crises sociais seríssimas. Nos EUA, foram a Guerra do Vietnã e o movimento dos direitos civis, enquanto no Japão foi o esfacelamento da economia. Não surpreende que filmes como ‘O Chamado’, ‘O Grito’ e ‘Pulso’ tenham notável ligação com a então fracassada economia baseada na tecnologia -são filmes obcecados por celulares, TVs, vídeos.’


 


CARNAVAL
Mônica Bergamo


‘Tá cada vez mais difícil vir para camarotes’


‘São 22h30 e seguranças estão em fila na porta do camarote da Brahma para receber Lucy Liu, atriz de filmes como ‘Kill Bill’ e ‘As Panteras’. Uma assessora pede aos jornalistas: ‘Perguntem amenidades, sobre a temperatura do Brasil, a mulher brasileira…’. Lucy é toda ‘wonderful’ quando chega. O que acha do Brasil? ‘Wonderful!’ Como foi contracenar com Rodrigo Santoro em ‘As Panteras’? ‘Really wonderful!’ E as mulatas da Sapucaí? ‘Woooonderful!’


Num carnaval em que boa parte das celebridades sumiu dos camarotes, a cervejaria nega que tenha pago cachê a Lucy, estimado em 170 mil euros. Diz que só custeou passagens e hospedagem. O costume de se pagar pela presença dos artistas está gerando uma espécie de crise no ‘setor’, com artistas se recusando a pisar nos camarotes de graça.


Lucy deixa a sala de entrevistas e vai para o chiqueirinho dos ultra-VIPs. Lá, ficam celebridades como Monica Bellucci com o marido, Vincent Cassel, Luiza Brunet e a tenista Anna Kournikova -que só deseja ‘have fun, put a mask and go crazy’ [divertir-se, colocar uma máscara e ‘enlouquecer’].


Lucy Liu resolve fazer xixi. Oito seguranças são chamados para escoltá-la até o banheiro mais próximo. Confusão. Empurrados pela escolta, alguns convidados puxam o coro: ‘Lucy Liu, eu quero teu chimbiu! Lucy Liu, eu quero teu chimbiu!’. A atriz sorria, sem entender palavra.


De calça branca transparente, Carolina Dieckmann deixava aparecer a calcinha escura estampada com bolinhas brancas. Para desespero da organização, estava sem a camiseta do camarote. ‘Vim assim de casa, gente. Me mandaram entrar, eu entrei’, diz ela: ‘Tá cada vez mais difícil vir para camarotes’.


Começa a chuva na Sapucaí e Susana Vieira não protege os cabelos dos pingos. ‘O meu é falso, meu bem, pode chover à vontade que não enrola.’ Na hora do jantar, a atriz escolhe uma mesa ao lado de Monica Bellucci. ‘Nem vi que ela estava sentada aqui do lado. Ela me olhou tão friamente que deve pensar que eu sou uma tiete, né? Ela não tava me dando muita bola, não, mas quando o povo da avenida começou a me jogar beijos, ela viu que sou importante e ficou íntima’.


‘Iiih, só tem mulher feia!’, diz o marido de Susana, Marcelo Silva, a um amigo no camarote. Em 2007, ele foi acusado de quebrar um motel ao brigar com uma garota de programa. O jornalista esportivo Milton Neves se aproxima: ‘Falei que não é mais pra você dar mancada, hein? Mas tá certo, carioca é assim mesmo. Se você tivesse sido pego com outro homem na cama, daí não teria perdão’.


Caio Junqueira, um dos aspirantes de ‘Tropa de Elite’, faz gestos largos e derrama cerveja para todos os lados. ‘Eu não vinha aqui faz três anos, porque não era convidado…’ Ficou famoso depois de ‘Tropa’? ‘Meu amor, eu trabalho há 22 anos. Agora tenho reconhecimento das pessoas do povo, da classe, da classe, é… artística. Mas eu sou pobre. A minha renda não é mais de R$ 20 mil. É o que tenho pra comprar um carro e ficar zerado depois’.


Na concentração da Mangueira, Luana Piovani explica: ‘Eu vinha pelo Salgueiro antes, mas mudança faz parte da vida. Uma hora a gente tá de salto alto, outra tá de alpargatas’, diz apontando os pés.


No camarote da Nova Schin, Selton Mello é a estrela da pista de funk. Vai ao bar e abraça uma garota -loira, cabelo comprido, microshort jeans. Quase de saída, puxa o rosto dela, rouba um selinho e sai. Ela leva as duas mãos ao rosto e olha para o namorado -sim, a loira estava acompanhada.


CAMAROTE OFICIAL


‘Nossa, como você engordou!’


‘O Lula me pediu: cuida dos meus filhos. Eu falei: fica tranqüilo. Vou deixar as crianças bem longe dessa gente [jornalistas]!’, brincava o governador Sérgio Cabral, do Rio, com os repórteres e colunistas convidados para visitar seu camarote no Sambódromo, no Rio.


Cabral reservou uma sala do lugar só para os filhos do presidente: Fábio Luiz (‘Lulinha’), Sandro, a mulher dele, Marlene, e mais 15 amigos, entre eles o médico de Lula, Roberto Kalil, e sua mulher, Claudia Cozer (dona Marisa estava ‘louca’ para acompanhar os filhos, mas o presidente Lula preferiu ficar no Guarujá).


A nora do presidente era a mais animada. ‘Está todo mundo deslumbrado por estar aqui. É um espetáculo maravilhoso, tem que ser visto’, dizia Marlene. Sandro observava as mulatas na avenida com certa, digamos, indignação. ‘Tem muita pena [cobrindo o corpo das sambistas]!’. Marlene rebatia: ‘Ele fala só para me provocar. Os meninos [filhos de Lula] são supertímidos. Fomos ontem a uma feijoada no hotel Caesar Park. Tinha um show de mulatas, elas se aproximaram. Eles ficaram de cabeça baixa o tempo todo!’.


Cabral chega com José Serra. Num sinal de que o governador paulista anda muito bem falado dentro da casa dos Lula da Silva, os meninos o trataram com a maior simpatia e até concordaram em posar para uma foto com o tucano. Fábio e Serra falaram sobre a contratação de outro filho de Lula, Luís Cláudio, como preparador físico do Palmeiras, que na opinião do governador ‘tá mal’. ‘Ele vai fazer um bom trabalho lá’, dizia Fábio, esclarecendo: ‘Mas eu sou corintiano’.


No melhor estilo ‘Serrinha paz e amor’, o governador, além de sambar na avenida, distribuía beijos e sorrisos no camarote -sem evitar, no entanto, alguns de seus foras clássicos. ‘Nossa, como você engordou!’, disse a um jornalista que não via há tempos.


O bilionário Ricardo Salinas, do banco Azteca, do México, é carregado pelo braço por Cabral para cumprimentar Serra, ao lado de Mario Garnero e de Jânio Quadros Neto, amigo do banqueiro. ‘Ele vai abrir uma agência do banco dele na Rocinha’, dizia Cabral. Surge a piada: e banqueiro gosta de emprestar dinheiro para pobre?


‘Esse gosta’, emenda logo Cabral. Em outra roda, Salinas ria das lembranças de seu encontro com Lula no Palácio do Planalto. Ele levou ao presidente uma garrafa de tequila. Ganhou de volta uma garrafa de cachaça. ‘Mas sai daqui com ela embrulhada. Porque eu e esse menino [Jânio Neto] temos um histórico familiar terrível com bebida e os jornalistas lá fora vão dizer que estávamos todos aqui enchendo a cara!’, recomendou Lula, referindo-se ao ex-presidente Jânio Quadros.’


 


POLÍTICA AMERICANA
Sérgio Rizzo


Mamet satiriza gestão Bush em sua nova peça


‘Às vésperas das eleições, o cenário não é dos mais favoráveis para o presidente norte-americano Charles H. P. Smith, que encerra o primeiro mandato. Seus índices de popularidade são baixíssimos, falta dinheiro para pagar anúncios de TV e nem os seguranças da Casa Branca o levam a sério.


Humilhação suprema: se perder a reeleição e voltar para casa, não conseguiu levantar sequer os recursos necessários para construir, a exemplo de todos os ex-presidentes, uma biblioteca com seu nome para abrigar os documentos da gestão. Apesar disso, ele ainda não entregou os pontos – ao menos até encontrar uma forma hon-rosa de fazê-lo.


Smith é o genérico de presidente dos EUA criado pelo dramaturgo, roteirista, diretor e produtor de cinema e TV David Mamet em ‘November’, sua primeira peça teatral desde ‘Romance’ (2005) e seu retorno mordaz ao ambiente do longa ‘Mera Coincidência’ (1997), os bastidores da Casa Branca.


Desta vez, no entanto, toda a ação se concentra no Salão Oval da Presidência – restrição espacial que Mamet havia adotado, com ótimos resultados, em peças como ‘American Buffalo’ e ‘Oleanna’, já adaptadas para o cinema. E o protagonista, que o público acompanha em três momentos de crise em um período de 24 horas, é mesmo o presidente, e não seus assessores.


‘November’ entrou em cartaz na segunda quinzena de janeiro em uma das salas mais tradicionais da Broadway, o Ethel Barrymore Theatre, que completará 90 anos em dezembro. Mas é um corpo estranho na vizinhança, ocupada sobretudo por musicais voltados para a diversão sem compromisso com a reflexão política.


A estréia coincidiu com o acirramento das eleições primárias nos EUA, que vivem hoje a ‘superterça’ e a conseqüente intensificação do debate a partir da condenação de Bush e do uso da palavra-chave ‘mudança’ na campanha.


‘Fiquei chocado, depois das primárias em Iowa, ao me pegar pensando: ‘Bem, se forem esses os dois candidatos, (John) McCain e (Barack) Obama, qualquer um deles provavelmente seria um ótimo presidente’, disse Mamet em entrevista à revista ‘New York’.


Embora garantisse que votaria hoje nas primárias da Califórnia, onde mora, ele se recusou a dizer em quem. ‘Não sou um sujeito de falar sobre política. Sou um escritor de humor’, afirmou. ‘November’ não deixa a menor dúvida, com seu habitual ritmo intenso de diálogos evitando que se passe um mísero minuto sem risos.


Além de Mamet, o grande responsável por isso é Nathan Lane (‘The Producers’), um dos maiores astros da Broadway, que representa Smith sem apelar ao humor de chanchada. Não é um presidente ridículo, mas patético, cuja ironia vem do contraste entre o espírito de estadista que gostaria de ter e as ações de político provinciano ligado às circunstâncias.


Dois valorosos personagens contribuem para lavar a roupa suja de sua gestão e realçar a pequenez de sua herança: um assessor especial (Dylan Baker), lúcido e pragmático, e a principal redatora de seus discursos (Laurie Metcalf), que adotou uma criança chinesa e quer a todo custo que o presidente celebre seu casamento – com outra mulher.


A certa altura, ao proteger Smith de uma agressão, ela se explica: ‘Fiz isso em nome de todos os que votaram no senhor’. O presidente retruca, como quem se desculpa: ‘Eles não sabiam o que faziam’. Na liberal Nova York, a lembrança a George W. Bush só provoca gargalhadas sem culpa.’


 


 


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O Estado de S. Paulo


Terça-feira, 5 de fevereiro de 2008


TECNOLOGIA
O Estado de S. Paulo


Google joga pesado para evitar compra do Yahoo


‘The New York Times e Associated Press – Uma barreira tecnológica que constantemente surpreende Microsoft e Yahoo está se colocando novamente entre as duas empresas: o Google. Em um esforço incomum para impedir a Microsoft de avançar em sua oferta hostil de US$ 44,6 bilhões para comprar o Yahoo, o Google apresentou durante o fim de semana diversos planos que o colocam no papel de estraga-prazeres.


Publicamente, o Google se posicionou como uma empresa contrária ao acordo, distribuindo um comunicado em que afirmava que a união, proposta na sexta-feira, traria ameaças à competição no setor que precisariam ser avaliadas pelos reguladores da economia ao redor do mundo.


Internamente, o Google viu o possível acordo como um ataque direto com muitas conseqüências. O presidente da empresa, Eric Schmidt, telefonou para o presidente do Yahoo, Jerry Yang, oferecendo apoio para que a empresa resistisse à Microsoft – propondo até uma possível parceria entre as duas empresas, afirmaram pessoas próximas à negociação.


Os lobistas do Google em Washington também começaram a comentar com legisladores como isso poderia ser um caso a ser analisado, dizem fontes ligadas à empresa. O Google poderia se beneficiar muito apenas com o prolongamento de uma revisão das regras comerciais até que o próximo presidente dos Estados Unidos assumisse o poder.


Além disso, muitos executivos do Google fizeram ‘ligações de bastidores’ para conhecidos em empresas como a Time Warner, dona da America Online (AOL), para questionar se eles planejavam fazer uma oferta rival e como eles poderiam auxiliar nessa situação. O Google é dono de 5% da AOL.


Mas, apesar dos esforços do Google e do trabalho dos banqueiros do próprio Yahoo em levantar o interesse de outros grupos em fazer ofertas para confrontar a Microsoft, nenhuma apareceu – e nem deve aparecer a curto prazo.


Um porta-voz da News Corporation, por exemplo, afirmou no domingo à noite que não pretendia fazer propostas, e pessoas ligadas a outros possíveis interessados, como Time Warner, AT&T e Comcast, afirmaram que essas empresas não estão trabalhando com a possibilidade de fazer qualquer oferta. Eles deram a entender que as empresas não querem entrar em uma guerra de ofertas contra a Microsoft, que poderia facilmente fazer qualquer uma delas parar. Um porta-voz da Time Warner preferiu não comentar o assunto, assim como o porta-voz da Comcast. Representantes da AT&T não foram encontrados.


Nesse meio tempo, pessoas próximas do Yahoo disseram que a empresa recebeu vários questionamentos durante o fim de semana de possíveis interessados. Algumas pessoas de dentro do Yahoo chegaram a especular sobre a possibilidade de dividir a empresa. Isso poderia significar algo como vender ou terceirizar os negócios relacionados a ferramentas de busca para o Google e investir ou vender a produção de conteúdo. ‘Todos estão considerando todo tipo de possibilidade, e um acordo no setor de buscas é uma delas’, disse uma pessoa próxima às negociações.


RESPOSTA


O presidente-executivo da Microsoft, Steve Ballmer, respondeu ontem à acusação feita por um vice-presidente do Google no domingo de que a empresa queria, com a compra do Yahoo, estender para a internet o monopólio que exerce no setor de softwares. Segundo Ballmer, a compra do Yahoo, na verdade, deixaria a Microsoft como um ‘forte competidor’ para enfrentar o domínio do Google na internet.


Falando a um grupo de analistas em Nova York, Ballmer disse que a aquisição aumentaria a competição na web, ao invés de eliminá-la – especialmente nas áreas de anúncios comerciais e buscas. ‘O Google tem claramente uma posição dominante. Eles detêm cerca de 75% das buscas pagas no mundo’, disse. ‘Nós acreditamos que nossa proposta vai melhorar a concorrência. Sob esse ponto de vista, qualquer outra coisa seria pior.’’


 


WOODY ALLEN
Luiz Zanin Oricchio


Novo esboço sobre a moral e o acaso


‘Em Cassandra’s Dream, Woody Allen faz um novo filme sobre a questão moral. De novo?, pode se perguntar qualquer pessoa que acompanha a sua obra. Sim, de novo. E daí? Ao invés de acusar Allen de se repetir, ou, ao menos, repetir temas e idéias, que tal encararmos esse retorno obsessivo como uma característica geral dos grandes artistas, que pintam, escrevem, esculpem os mesmos temas porque sabem que, por mais retrabalhados que sejam, jamais serão esgotados. Ninguém se queixa dos esboços repetidos que Picasso fez até chegar às formas definitivas de Guernica, por exemplo. Porque cobraríamos isso de Allen? Porque, de maneira equivocada, entendemos que o cinema só deve tratar de novidades?


O fato é que os dilemas morais vêm preocupando desde sempre esse leitor de Dostoievski. Foi assim no já distante Crimes e Pecados (1989), retornando com força nessa sua fase londrina. O tema do crime e da culpa (ou ausência dela) comparece em Match Point (2005). Dá um descanso nesse divertimento chamado Scoop (2006) e retorna, com força total, neste Cassandra’s Dream (2007).


A história é a de dois irmãos, Ian (Ewan McGregor) e Terry (Colin Farrell), que sobrevivem de maneira modesta. Gente comum. Ian ajuda o pai no pequeno restaurante da família. Terry sonha com a sorte grande em todo tipo de aposta, do pôquer à corrida de cães. Acontece que Terry aposta (e perde) mais do que pode. Ian se apaixona por uma jovem atriz (Hayley Atwell) e vê sua necessidade de dinheiro crescer. Enfim, dinheiro é mais uma vez o motor da história (assim como fora em Match Point, com o protagonista dividido entre um casamento por interesse e a paixão sensual por Scarlett Johansson).


Como em toda tragédia (porque Cassandra’s Dream é dessa ordem), também é necessário que a força do destino se imponha. Um agente externo irá transformar essa mistura de ambição e desejo, própria da natureza humana, em um coquetel explosivo. Esse fator aparece na figura de um tio, o homem de negócios Howard (Tom Wilkinson), que pode fornecer o dinheiro que os jovens necessitam para resolver seus problemas. Mas exige uma coisa em troca, porque, afinal, uma mão lava outra, e negócios íntimos se resolvem assim, em família, pois laços de sangue tornam os acordos sagrados. Mesmo os acordos mais escabrosos.


Tio Howard é o fator desencadeante. É quem acrescenta aquele grão de loucura que transforma os destinos de dois jovens tão agradáveis e normais. Mas a culpa é de Howard e sua oferta tentadora e imoral? Ou o crime já estava inscrito na dupla de irmãos, em sua verdade íntima? Vamos lembrar a frase de Machado de Assis, que tinha uma visão realista sobre a natureza humana: ‘A ocasião faz o furto; o ladrão já nasce feito.’ Ou podemos pensar que, sem Howard, Ian e Terry prosseguiriam em suas vidas medíocres e sem maiores tribulações? Woody Allen não cogita essa hipótese. Nem nós precisamos fazê-lo. Porque também é da vida que o acaso e outras inferências entrem no jogo para tecer os destinos das pessoas. E, vistos a posteriori, pareçam fazer parte da necessidade das coisas.


Se bem observarmos, em Match Point é o acaso que vai regendo as trajetórias das pessoas, a cada passo. A mesma coisa acontece em Cassandra’s Dream. Nessa ordem moral oscilante, estudada por Allen filme após filme, a sorte e o azar entram como fatores determinantes. Pobre é a condição humana, que pensa reger seu próprio destino quando de fato é joguete de forças aleatórias. Na tragédia eram os deuses que jogavam com as vidas dos mortais, como se estas servissem apenas de divertimento, distração para o tédio da eternidade. Hoje, são pequenos acasos, uma bolinha de tênis que pode cair de um lado ou de outro da rede, um anel jogado para o rio, que pode, ou não, bater na amurada, cair na água e desaparecer para todo o sempre, ou ricochetear e permanecer na calçada – como acontece em Match Point. Ou surgir na figura de um tio bonachão, que poderá ser a solução de todos os problemas ou, pelo contrário, a perdição. É, no fim, uma meditação sobre o acaso, sobre a ética, mas também sobre a liberdade e o livre-arbítrio que Allen realiza nessas obras seguidas, e que se comentam entre si.


Desse modo, parece que Woody Allen seja um dos poucos diretores contemporâneos dispostos a fazer um cinema que se poderia chamar de ‘filosófico’ sem qualquer aviltamento ao termo. Usando uma técnica simples, sem grandes virtuosismos, a fotografia fria de Vilmos Zsigmond e a música reiterativa de Philip Glass, Allen alcança resultado contundente. Não por acaso, esses filmes, tidos como ‘intelectuais demais’, estão sendo rodados na Europa e não nos Estados Unidos. Mas, de qualquer modo, de um lado ou do outro do Atlântico, há cada vez menos gente disposta a discutir esses temas, na verdade tão antigos quanto a humanidade. Por sorte, existem ainda espectadores em quantidade suficiente para manter em atividade essa avis rara na fauna banal do cinema.’


 


Ryan Stewart


Saudade amolece coração de Allen


‘O escritor e diretor Woody Allen retoma seus impulsos mais sombrios em Cassandra’s Dream, um thriller rodado em Londres que explora o que dois irmãos pobres farão para enriquecer – ou pelo menos sobreviver – e o que seu tio rico fará para não ficar pobre, ou pior. O filme não tem previsão de estréia no Brasil.


Serão inevitáveis as comparações com Match Point (2005), o drama de Allen aclamado pela crítica sobre os caprichos do destino e da sorte.


Desta vez, contudo, a ênfase não está nas tensões entre homens e mulheres, mas em quanto as lealdades familiares podem ser forçadas ou testadas antes de cederem.


A Première conversou com o cineasta em Nova York, onde ele está mixando seu próximo filme, a comédia romântica Vicky Cristina Barcelona, rodada na Espanha com Scarlett Johansson e Javier Bardem.


E então, em que você está trabalhando hoje?


Hoje estou dando algumas entrevistas para a estréia do filme, pois estou aqui, disponível, e quero cooperar com as pessoas que o distribuem.


Você terminou de mixar e editar Vicky Cristina Barcelona?


Já terminei a edição, mas não a mixagem. Na verdade, estamos agora no meio da mixagem, e da correção de cor, mas a montagem do filme já foi feita.


Li em algum lugar recentemente que Steven Spielberg sempre faz cinco sessões de montagem em seus filmes. Quantas vezes você monta?


Acho que montamos uma vez, e então refinamos. Não monto novamente o filme inteiro. Posso mudar uma cena, encurtar uma cena, retirar uma cena e então incluí-la novamente mais tarde, mas, basicamente, a primeira montagem do filme é o filme.


Então você está quase no ponto em que nunca mais verá o filme novamente, já que você prefere não revisitar seus trabalhos.


Terei de vê-lo quando fizer a correção de cor. Não o verei com som, mas vou checar a mixagem uma vez e, assim que ela estiver concluída, esta será provavelmente a última vez que ouvirei o filme. E então farei a correção de cor e pronto. Terei visto o filme cem vezes.


Assisti Cassandra’s Dream recentemente e achei o personagem de Colin Farrell interessante. Ele é diferente de muitos dos personagens de seus dramas de assassinato. Em Match Point e Crimes e Pecados (1989), a questão era como um materialista racional ou um ateísta lida com uma crise moral, mas esse personagem, claramente, crê em Deus.


Bem, eu queria retratar três personagens. Queria um homem que não tivesse problema em se comprometer e outro que não poderia agüentar, porque no fim ele simplesmente teria consciência demais. Algo lhe pareceu errado e ele não pôde suportar. Ele não tinha certeza de que não existia algum tipo de ordem moral no universo e concluiu que havia transgredido essa ordem de alguma maneira e precisava corrigi-la. E então há um irmão capaz de lidar com uma concessão moral e um tio completamente amoral que pode fazer com que esses rapazes cuidem de seu problema e, no fim, simplesmente ir embora sem problema nenhum. Eu quis obter um contraste entre esses três.


Ao filmar um drama negro como este, você acha em algum momento que ele precisa de algum humor para não ser opressivamente desolador?


De vez em quando. Há algumas risadas neste filme. Há algumas coisas engraçadas, como em Match Point quando Jonathan Rhys Meyers tenta montar o fuzil pouco antes de matar a mulher. As partes ficam caindo e ele não consegue montá-lo quando chega a hora, e então finalmente consegue. O mesmo ocorre aqui. Eles querem matar o homem, mas sempre há uma desculpa. Colin inventa uma desculpa: ‘Deixe-o falar com sua mãe primeiro, e então o mataremos.’ Há coisas mais leves, permitindo um pequeno alívio em meio à tragédia implacável que se desenrola. Conhecer o homem numa festa e ficar cara a cara com ele, sabe, teve um caráter mais leve. Não vou fazer piadas, mas existem momentos mais sutis, irônicos, divertidos, na esperança de obter um ritmo mais leve.


Certamente você tem o mesmo controle de sempre sobre seus filmes, mas eu me pergunto se, hoje em dia, você sofre mais pressões para oferecer coisas como extras de DVD.


Não, não sofro pressão nenhuma. Ninguém nem sequer sugere isso. Faço o filme e então lanço, e eles põem no DVD. Invariavelmente, eles me perguntam: ‘Você tem alguma sobra? Tem algo que possamos colocar aqui?’ Mas eu quase nunca tenho. E não sou o tipo de pessoa que quer comentar meus filmes enquanto vocês os assistem. Por isso, meus DVDs são bem esporádicos.


E quanto a materiais que interessariam a seus fãs, como as cenas perdidas da montagem Anhedonia de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977), aquela com você jogando basquete contra os Knicks e outras cenas?


Tudo isso provavelmente não existe. Provavelmente destruí isso há 20 anos.


Verdade? Esse material não está apodrecendo em algum depósito?


Essas coisas, não. Guardamos material dos dois filmes mais recentes e, assim que surgem outros, jogamos fora.


Para você faz diferença seus filmes serem vistos numa tela grande, numa tela de TV ou em algo menor?


Sim. Prefiro que eles sejam vistos na tela grande. É para isso que os filmes são feitos. Imagino que um dia, quando você estiver em sua sala de mídia em casa, com alta definição e uma tela de 2 m x 3 m ou algo parecido, não haverá muita diferença. Mas a verdade é que o filme é feito para uma tela de cinema, uma tela maior que a vida real, com o público enchendo a sala, cochichando, saindo e dando sua opinião. É uma experiência social e uma experiência comunitária. Assim, não gosto que os filmes sejam vistos pela primeira vez em DVD, mas não há nada que se possa fazer, pois a cultura caminha nessa direção.


Agora você está de volta a Manhattan, preparando-se para filmar na primavera, depois de quatro filmes no exterior. A distância amolece o coração?


A distância amolece meu coração. Fiz o primeiro filme, Match Point (em Londres), porque eles ofereceram o dinheiro. Eu havia concluído o roteiro para Nova York e estava quase pronto para filmá-lo em Nova York quando eles apareceram e disseram: ‘Daremos todo o dinheiro necessário para você fazer o filme em Londres. Faça-o lá.’ Fui para lá apreensivo, mas tive uma ótima experiência, pois o tempo estava tão bom, o céu estava tão cinzento e bom para o trabalho com a câmera que voltei no verão seguinte e fiz um pequeno filme (Scoop – O Grande Furo) com Scarlett (Johansson), apenas pela graça de trabalharmos juntos, um pequeno filme trivial que fizemos para nossa diversão pessoal. Então voltei novamente para filmar Cassandra’s Dream porque estava gostando e eles estavam financiando. E então o pessoal de Barcelona disse que, se eu fosse até lá fazer um filme, eles financiariam. Então eu fui e fiz esse filme no verão passado.


Então é tudo muito prático.


Sim, é muito prático. Agora começarei a filmar em Nova York daqui a umas oito semanas, ou seis. Depois disso, no entanto, realmente dependerá do que eu arranjar. Pessoas falaram comigo sobre financiar filmes em Paris e Roma, então eu poderia fazer um filme nesses lugares. Ou, se eu conseguisse levantar o dinheiro com facilidade, provavelmente filmaria em Nova York.


Por falar nisso, o que você e Scarlett estão fazendo para aquela antologia, I Love New York? O jornal The New York Post disse que cada um de vocês está dirigindo um dos curtas.


Isso foi uma invenção total – em relação a mim, quero dizer. Não tenho idéia do que ela estaria fazendo. Não ouvi nada. Não estou nem nunca estive ligado a isso de nenhuma maneira.


Scarlett é uma espécie de aluna sua?


Ela é apenas uma garota muito, muito talentosa. É uma garota muito bonita, muito sensual, muito, muito habilidosa e com um grande alcance. Ela pode atuar num drama, pode atuar numa comédia. Atua neste filme romântico que fiz no verão e está maravilhosa. É um prazer trabalhar com ela. Se há um papel para ela em meu roteiro, sempre acabo por chamá-la, pois a conheço, me tornei seu amigo, é muito fácil trabalhar com ela e ela sempre corresponde às expectativas. Assim, se o papel é bom para ela, eu a chamo primeiro, em vez de procurar alguma estranha.


Há um papel para ela em seu projeto da primavera?


Não.


Com que freqüência você vai ao cinema atualmente?


Bem, tenho uma sala de projeção onde faço minha edição, então normalmente realizo sessões ali. Meu assistente telefona e aluga um filme no fim de semana. Como qualquer outra pessoa nos Estados Unidos, costumo ir no sábado à noite. Geralmente faço uma sessão para mim mesmo e meus amigos em minha sala de projeção.


Você não gosta do ambiente de uma sala de cinema pública?


Gosto, sim, mas fiquei preguiçoso com o passar dos anos, e (minha sala) é perto de minha casa, basta dar um pulo até lá. Vejo os filmes numa tela inteira, num cinema de verdade – é uma sala de projeção com imagem em tamanho grande, bom som e tudo o mais -, e não em vídeo. É apenas um pouco mais conveniente para mim. De vez em quando, no entanto, eu apareço. Faço uma caminhada de dia com minha mulher e paramos num cinema, pois é fácil ir de dia. Não há muita gente e podemos nos sentar. Ainda é um prazer para mim.’


 


TELEVISÃO
Thaís Pinheiro e Patrícia Villalba


Mais do mesmo


‘Não teve transmissão em HD que transformasse o carnaval na TV em grande novidade. Enquanto as emissoras levantavam a bandeira da alta definição, só quem tem o conversor digital é que pôde conferir o tal ‘show de imagens’. Fora isso, nenhuma grande inovação.


A cobertura da Globo foi a de sempre. Entre os que tentavam mostrar intimidade com a comunidade do samba, só mesmo Leci Brandão para dar legitimidade aos comentários. Fora ela, o deslumbramento reinou, num tal de ‘samba-enredo empolgante’ e ‘passistas de tirar o fôlego’ a granel.


No desfile do Rio, anunciado como o ‘maior espetáculo da Terra’, a emissora pôs mais comentaristas e repórteres a postos, com destaque para Maria Augusta que, como Leci, consegue equilibrar a fogueira de vaidades da transmissão.


Pelas beiradas, a RedeTV! levou suas estrelas para os bastidores de SP, Rio e Salvador. A empolgada ex-BBB Íris Stefanelli não poupou gritinhos e pulinhos, numa estratégia para compensar a falta de conteúdo de suas perguntas, destinadas às passistas seminuas e semifamosas pouco antes dos desfiles.’


 


CARNAVAL
Arnaldo Jabor


O carnaval é nossa loucura sadia


‘Não é a primeira vez que digo que o carnaval virou um tema para o mercado, para as empresas, para os pacotes turísticos; o carnaval virou um produto. Eu tenho saudades da inocência perdida do passado. Lembro das marchinhas toscas que começavam a tocar nos rádios por volta de dezembro, lembro das fantasias bobas – legionários, piratas, caubóis – influenciadas pelos filmes americanos, lembro das escolas de samba a pé na Avenida Presidente Vargas, um bando de índios de bigode e penas de espanador, pintados de preto, seguidos pelas gordas baianas cobertas de balangandãs, a multidão olhando, apanhando dos cassetetes da PE, a temida Polícia Especial de boinas vermelhas e Harley-Davidsons. Os PEs baixavam o cacete nos populares, mas mesmo assim eram amados pelos espancados, que neles viam leais e heróicos homens da lei. Dói-me ver a virtualização do carnaval de hoje, no Rio. O carnaval oficial virou uma festa para voyeurs, turistas inclusive brasileiros na TV e arquibancadas, turistas de si mesmos. Hoje o carnaval chega pronto. Antes, era uma revelação; hoje ele esconde qualquer coisa. Falta um minimalismo poético nos desfiles de luxo. O carnaval foi deixando de ser dos foliões para ser um espetáculo para os outros; deixou de ser vivido para ser olhado. O carnaval virou uma ostensiva competição de euforia, uma horda de exibicionismos sexuais, uma suruba iminente sem o sensual perfume do passado.


Carnaval sempre foi sexo – tudo bem – mas, antes, havia uma doce inibição no ar, havia a suave caretice, uma moralidade mínima, havia cortesia, havia clima de amor nos bailes e não a desbragada orgia sem limites. Hoje, há algo de decadência, de compulsivo, uma alegria obrigatória. Hoje há os corpos malhados, excessivamente nus, montanhas de bundas competindo em falsa liberdade, pois ninguém tem tanta tesão assim, ninguém é tão livre assim. Falta a celulite, falta o maljeito, falta o medo, a ingenuidade, o romantismo, falta Braguinha, falta Lamartine Babo, falta Mário Lago.


O carnaval de hoje parece uma calamidade pública musicada por uma euforia desesperada e disputada pelo narcisismo de burgueses e burguesas se despindo para aparecer na TV. Para descobrir um carnaval mais puro, há que ir à Mangueira, às velhas-guardas, aos blocos-de-sujo das ruas pobres, aos clowns de Santa Cruz (ainda os há?); em suma, há que ir aos detritos que sobraram dos anos 40 e 50, assim como olhamos velhas fachadas entre prédios modernosos.


Quando passam as baterias das escolas, quando uns garotos sambam no pé, ainda vislumbramos alguns traços de beleza autêntica. Por isso, acho que a grande tradição do carnaval está mais presente nos blocos dos foliões anônimos. Nas ruas, estão os blocos dos anjos de cara suja, os blocos das escrotas, dos vagabundos, dos bêbados ornamentais, da crioulada pobre. Podemos ver nas ruas a preciosa origem do carnaval profundo. Lá estão os famintos de amor, os malucos, os excluídos da festa oficial. Só os sujos são santos. Ali vemos as fantasias de surda revolta contra o trabalho desumano, o exorcismo da miséria, o prazer de escrachar a beleza óbvia dos ricos. No carnaval de rua existe uma coisa mais além da ‘imoralidade’; há uma santidade nessa explosão de carne que não se explica. Pela crítica a essa beleza limpa, vemos uma poesia grotesca que atravessa os séculos desde Brueghel, Bosch, Rabelais até desaguar no barroco brasileiro. Ali, nas ruas sujas estão as três raças brasileiras entrelaçadas na esperança de um casamento grupal doido: negros, brancos e índios dando à luz um grande bebê mestiço e gargalhante.


Mas, mesmo com sua modernização careta, é melhor entender o Brasil através do carnaval, do que ver o carnaval como um desvio da razão. Como pode o mundo achar o carnaval uma loucura, este mundo irracional de George W. Bush, Dick Cheney, Osama bin Laden, Mahmoud Ahmadinejed, de Halliburton, Abu Ghraib e de guerras sem-fim? O carnaval mostra que o Brasil tem outra forma de ‘seriedade’, mais alta que a gravidade do mundo anglo-saxão. O carnaval mostra a matéria de que somos feitos, por baixo dessa mímica de ‘Ocidente’ que o Brasil tenta há quatro séculos. Há uma ‘orientalidade africana’ em nossa vida. A África e os índios nos salvaram, assim como salvaram os USA. Que seria da América sem o jazz? Um país branco-azedo, cheio de ‘wasps’ tristes. Nosso carnaval mostra que o Inconsciente brasileiro está à flor da carne. Já imaginaram um carnaval na Suíça? E no Paquistão? Talvez o carnaval seja uma doença salvadora, uma epidemia de delírio de que o mundo precisa.


Brasileiro pode não ter espírito público, consciência social; mas, certamente, tem um Inconsciente à flor da pele, ao contrário dos países que pagam um alto preço pela Razão triste, por uma felicidade comedida. Existe uma clara diferença de sexualidade entre nós e os turistas que contemplam de boca aberta o descaramento de nossos rebolados. Nós só pensamos em ficar nus, como se quiséssemos voltar para trás, para uma grande tribo vermelha ou mulata. Há uma pureza nessa explosão de carne que não se explica, há um desejo de indianização, há um desejo de fundar um outro país, avesso à tragédia da pobreza; inconscientemente, queremos uma sociedade organizada, mas pelo desregramento; justa, mas alegre.’


 


 


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