Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Imprensa oficial é imprensa?

Do alto de minha ignorância, refaço a questão: imprensa oficial e imprensa? Não estou me referindo a edições de livros por órgãos do governo, tampouco às questionáveis edições da editora do Senado, por exemplo.

O foco e outro: são os Diários Oficiais. Será que o Observatório da Imprensa não deveria manter severos e constantes olhares sobre os mesmos? Afinal de contas, salvo alguma firula jurídica, creio ser patente que uma lei, aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, sancionada pelo presidente da Republica, à guisa de exemplo, só entra em vigor após a publicação no Diário Oficial. E ainda há aqueles dos estados e dos municípios, além do da Justiça.

A pergunta não é só retórica, apenas devida a alguma elucubração de parte de meu cérebro adormecido que resolveu mostrar algum tipo de serviço. Houve um fato anos atrás que muito me marcou – e parece que a maioria das pessoas que dele tiveram notícia não se impressionaram muito – e que registro aqui para as pertinentes opiniões de quem se dispuser.

Pois bem, lá estava eu como conselheiro do Cremesp (desculpem se volta e meio faço esse retorno ao passado, mas o período que lá passei coincidiu com uma série impressionante de eventos). As presidentes dos Conselhos Regionais de Enfermagem e Fisioterapia telefonam alarmadas para seu congênere da Medicina, relatando algo estranho por variados aspectos.

Resolução não tinha valor

O Diário Oficial da União de determinado dia de 1997, creio eu, na seção destinada às publicações das autarquias federais, exibia uma de um completamente desconhecido ‘Conselho Federal de Terapia’, ou CFT. O CFT publicava sua Resolução de número um, em que brevemente fazia uma exposição sobre para que servia: regulamentar e fiscalizar a profissão de ‘terapeuta’, inexistente, e que agiria com rigor para exigir a inscrição no órgão de todos os que exercessem ‘terapia’ (pagando uma salgada anuidade, claro), fiscalizando e aplicando multas. Seguia-se uma monumental relação de atividades que se enquadravam, no dizer da resolução, no âmbito daquelas a serem atributos do CFT apenas e, portanto, sujeitas ao pagamento de emolumentos e, caso constatadas irregularidades, de multa.

Nos conselheiros e nossos assessores jurídicos consideramos, claro, aquilo próximo às raias do absurdo, até porque uma mesma atividade não pode ser regulamentada por dois conselhos: no passado houve atritos, como o Crefito querendo punir clínica de fisioterapia dirigida por médicos, por exemplo. Mas isso já estava pacificado e definido.

Dentre as múltiplas ‘terapias’, havia psicanálise, hipnose, acupuntura, fisioterapia, fonoaudiologia, homeopatia, reiki, shiatsu, runas, tarô e por aí afora, além da inacreditável inclusão na categoria terapêutica da dança do ventre! Bom, consideramos à época que talvez essa última até pudesse ser mantida…

Brincadeiras à parte, entramos em contato com o Conselho Federal de Medicina, que ainda não tinha atentado para esse fato, e juntamente com ele apresentamos firme representação ao Ministério da Justiça, responsável pela edição do Diário Oficial da União e naqueles tempos tendo como ministro Nelson Jobim, exigindo esclarecimentos e providências.

Após alguns dias de silêncio, o Ministério apenas fez publicar no próprio Diário Oficial uma espécie de errata, alertando que a tal resolução do CFT não tinha valor e deveria ser desconsiderada. E nos avisaram que fora aberta sindicância para apurar os fatos, que obviamente não deu em nada.

Haja disposição e lobby

Alguns meses depois, numa bela casa em região nobre de São Paulo e reformada, é colocada placa com o anúncio de que ali ficava o Conselho Federal de Terapia, com o brasão da República e tudo. E estacionado na frente da casa estava um veículo, no qual estava inscrito que pertencia ao CFT e era da ‘fiscalização’. Nós, do CRM, procuramos o Ministério Público Federal: em uma reunião com uma procuradora, a mesma ficou horrorizada, a ponto de mover ação civil pública com pedido de liminar solicitando à Justiça Federal o fechamento imediato daquela sede e o sumiço de seu veículo de fiscalização, assim como a proibição do uso do brasão, sob pena de, se não cumprida, pagar multa de nem lembro quantos mil reais ao dia. O juiz que analisou o pedido também deve ter se impressionado, pois deu total provimento à ação: em poucos dias a casa foi abandonada, o carro sumiu e a coisa pareceu desaparecer. Apenas uma curiosidade: a procuradora utilizou na sua ação uma lei que deveria fazer parte do antigo entulho autoritário, criada na época do regime militar, que orientava quem podia ou não usar o brasão da República – o mesmo era limitado praticamente só a Ministérios e órgãos militares – havia até pena de prisão prevista e, pelo jeito, esqueceram-se de revogar esse dispositivo, que apesar de tudo se mostrou útil nesse episódio.

Mais alguns meses e nova e inacreditável ressurreição acontece: a Câmara dos Vereadores de pequena cidade do interior paulista resolve criar uma autarquia municipal para oferecer ‘terapia’ aos munícipes – incrivelmente, apesar de ser coisa de uma cidade pequena, o nome da autarquia era ‘Conselho Federal de Terapia’ da cidade tal, cujo nome nem lembro mais! E os responsáveis, além dos vereadores, os assim autodenominados terapeutas, eram os mesmos da publicação no Diário Oficial e da criação da sede do CFT. Aliás, quando a Justiça mandou fechar o CFT, eles criaram um órgão sindical, o Sindicato Nacional dos Terapeutas, ou SINTE, que obedece a outras normas legais, autorizado pelo Ministério do Trabalho. Haja disposição e lobby!

Burocracia para fins benéficos

A grande questão, então, é a seguinte: todos cansamos de ouvir que o Congresso, Assembléias Legislativas ou Câmaras de Vereadores, além do Executivo, criam as mais diferentes leis, assim como os acórdãos dos tribunais e mesmo dos conselhos profissionais. Mas esses só passam a ter valor após a publicação no Diário Oficial competente.

Conselhos e ordens, como o Cremesp, Crea, OAB, Coren e companhia foram criados por leis federais ordinárias, apreciadas pelo Legislativo e sancionadas pela presidência – depois disso, passaram a existir de fato quando publicadas no Diário Oficial. A pergunta lógica, então, é: será que alguém chegou ao balcão do Diário Oficial e apresentou a tal resolução primeira do CFT como real e, por inércia, os funcionários a publicaram? Não há mecanismos de controle? Ou será que houve corrupção?

Nada disso foi esclarecido pela sindicância do Ministério da Justiça. Mas desde então passei a ter uma paranóia a mais: será que todo o cipoal de leis que temos que cumprir foram efetivamente publicadas nos respectivos diários oficiais? Será que existem leis sem efetividade praticamente por, ao contrário, não terem sido publicadas nos mesmos? E, pior ainda, como no caso do finado CFT, será que qualquer um pode apresentar no balcão alguma lei ou resolução, por mais absurda que seja, que automaticamente passa a vigorar após sua publicação? Seria a ditadura burocrática, mais que a inépcia, ineficiência ou mesmo locupletação? Ainda não perdi o sono por conta disso, mas a pulga continua atrás da orelha.

Além de ainda esperar maiores esclarecimentos do Ministério da Justiça ou demais órgãos relacionados, sugiro que se crie o sub-Observatório da Imprensa Oficial! Já que é para burocratizar, ao menos que seja para fins benéficos.

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Médico, mestre em neurologia pela Unifesp, ex-conselheiro do Cremesp, São Paulo, SP