Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Jornalismo feudal

Em 15/05/2008, a Folha de S.Paulo publicou uma matéria que revela uma tragédia bem maior do que a morte da menina Isabella e a cobertura sensacionalista da mesma.

Segundo o jornalão, uma pesquisa do IPEA revelou que:

‘…os 10% mais ricos concentram 75,4% da riqueza do país’

(http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u402034.shtml).

Um pouco mais adiante, sugere uma comparação realmente interessante:

‘Apenas para efeito de comparação, ao final do século 18, os 10% mais ricos concentravam 68% da riqueza no Rio de Janeiro – único dado disponível’ (idem).

As virtudes da pesquisa do IPEA são grandes. O meticuloso trabalho efetuado pelo instituto revela um padrão histórico. Levando em conta os dados apresentados na matéria da Folha, em dois séculos ocorreu um aumento da concentração de renda.

Explicações rudimentares

Mesmo assim, o fenômeno parece não ter preocupado muito o autor do texto. Nenhuma novidade. O texto citado padece do vício referido por Leão Serva em seu livro Jornalismo e desinformação. Para fins didáticos, reproduzo aqui parcialmente a resenha que fiz do livro:

‘No capítulo 2, o jornalista trata das limitações impostas ao jornalismo. ‘O jornalismo tem como matéria-prima o fato novo, desconhecido, que pode causar surpresa. E que por isso é confuso, incompreensível, caótico.’ Desta definição podemos inferir que, em razão de sua própria finalidade e característica, o jornalismo está fadado a mutilar a realidade e a história. Leão Serva deixa bem claro que ao invés de procurar proporcionar ao leitor uma compreensão profunda dos fatos que enuncia, o jornalismo se preocupa apenas com a novidade. A novidade é a alma do negócio da imprensa. Nessa busca pela novidade, mesmo velhos fatos devem aparecer vestidos de novos, maquiados para voltar a surpreender.’

(http://www.revistacriacao.net/jornalismo_desinformacao.htm)

O texto da Folha dá a entender que o aumento da concentração de renda é uma verdade histórica. Entretanto, as explicações rudimentares que foram dadas para o fenômeno não são convincentes. Como não ocorreu ao jornalista da Folha meditar sobre história, procurarei fazer isto.

Realidade não é homogênea

A Revolução Francesa sepultou o feudalismo. Em razão da mesma os privilégios dos nobres franceses foram abolidos, a jurisdição regional e feudal substituída por uma nacional, as alfândegas dentro da França foram extintas e os grãos produzidos passaram a circular livremente no país, a servidão deixou de existir e o acesso à propriedade da terra se tornou possível a um número maior de pessoas. Consolidado o novo regime em solo francês, Napoleão exportou as estruturas revolucionárias para vários outros países.

Infelizmente, as baterias dos canhões napoleônicos não despedaçaram a família real portuguesa, nem chegaram ao Brasil. O resultado não poderia ser mais devastador. Aqui, as estruturas feudais foram reforçadas em razão da vinda da família real. Os estigmas do antigo regime se mantiveram estáveis após a proclamação da República. Tanto que nossa primeira guerra republicana foi justamente contra Canudos, que pode ser descrito como um aldeamento de camponeses sem terras que pretendiam fugir da servidão imposta pelo latifúndio nordestino.

Em pleno século 21, ainda temos uma estrutura fundiária feudal e sobrevivências aristocráticas no edifício estatal. No Brasil, existem nobres que se dizem burgueses e burgueses com pretensões nobiliárquicas. Mas a realidade nacional não é homogênea. Aqui e ali existem nichos de capitalismo eficiente e a convivência pacífica entre interesses potencialmente contraditórios, entre feudalistas e capitalistas modernos, começa a sofrer alguns abalos.

Na superfície das notícias

A sobrevivência da concentração de renda detectada pela Folha é prova de nossa incapacidade de superar definitivamente o passado. A Folha sugere que uma reforma tributária pode resolver o problema. Penso que esta é uma excepcional ‘não solução’. Afinal, nenhuma reforma tributária será capaz de impedir que alguns dos donos do Estado brasileiro continuem olhando o século 21 como se estivéssemos em pleno século 18. Soluções negociadas não resolveram os dilemas do feudalismo francês, nem modernizarão nosso antigo regime.

A Revolução Francesa foi extremamente violenta. A nossa revolução burguesa sequer começou ou tem sido constantemente interrompida. A falta de ousadia jornalística é sintoma e causa de nosso atraso. A matéria da Folha sobre a persistência da concentração de renda é exemplar.

O texto da Folha omite a história, oferece uma solução quase mágica e faz uma comparação extremamente ingênua. Comparar os dados do Rio de Janeiro do final século 18 aos do Brasil do início do século 21 é uma excelente maneira de escamotear a verdade. O Rio de Janeiro era a cidade mais rica do Brasil e os níveis de concentração de renda no restante do país certamente eram maiores. Portanto, seria preciso saber qual a proporção da concentração de renda no Brasil no final do século 18 para sabermos se houve aumento ou diminuição da concentração de renda nas mãos dos 10% mais ricos.

Enquanto o jornalismo tupiniquim apenas navegar na superfície das notícias o Brasil continuará o mesmo. Mas quem disse que os jornalões querem mudar o país?

Fábio de Oliveira Ribeiro

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Advogado, Osasco, SP