Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O Sr. Mercado não esperava por essa

Jérôme Kerviel, o autor da megafraude no banco Société Générale, não é apenas um caso de polícia. Não protagoniza somente um escândalo político. O modesto e discreto operador na mesa de futuros liquidou a credibilidade do Senhor Mercado, escancarou a vulnerabilidade de um sistema que comanda a vida econômica do planeta e desafiou o mais poderoso lobby contemporâneo – o capitalismo especulativo.


Qualquer que tenha sido a motivação – embolsar os ganhos com a fraude, contestar o ‘sistema’, ganhar um polpudo bônus ou simplesmente divertir-se – este JK às avessas é um autêntico cracker, machadeiro, devastador.


Os crackers informáticos são empurrados pela obsessão de afirmar-se, vencer qualquer defesa, narcisistas que eventualmente podem passar para o outro lado quando cessa o surto kamikaze. O procurador da República de Paris, Jean-Claude Marin, trouxe alguma luz na segunda-feira ao afirmar que o benefício que Jérôme esperava obter era o bônus pelas façanhas. ‘Para 2007, esperava receber 300 mil euros’, disse Marin.


Novamente em evidência, o prêmio por desempenhos delirantes – o bônus. Na semana passada, um professor de economia da Universidade de Columbia e ex-executivo do Citigroup denunciou os bônus e a atração que exercem sobre jovens executivos do mercado financeiro americano como responsáveis diretos pela crise no mercado hipotecário (ver ‘A mídia contempla a crise‘)


Central de escândalos


Agora, surgem os primeiros indícios sobre as razões que produziram o maior rombo na história das finanças – e a coisa fica ainda mais complicada porque uma instituição deste porte (a segunda da França) deveria dispor de mecanismos de controle para evitar operações perigosas. Caso não disponha, é o caos. É justamente o caos que a mídia tenta esconder debaixo do tapete.


A mídia vem tratando o megafraudador como um excêntrico, serial killer sem sangue, mão limpas. O Valor Econômico de segunda-feira (28/1, pág. A-10) avançou ao procurar uma dimensão maior para o episódio na excelente reportagem reproduzida do Wall Street Journal. O repórter John Miller não apenas desenhou um preciso perfil biográfico de Jérôme colhido na pequena Pont-Abbé (7.800 habitantes) como encontrou num dos romances que compõem a Comédia Humana de Honoré de Balzac (1799-1850) uma epígrafe que combina muito bem com esta fábula do nosso tempo: ‘Por trás de toda grande fortuna há um crime’.


Balzac foi um crítico da burguesia francesa, mas ele próprio encarnava o burguês clássico: bon-vivant, acossado por dívidas, seu sonho era passar uma temporada no Brasil, fazer fortuna e retornar à França (cf. Paulo Ronai em Balzac e a Comédia Humana, Editora Globo, Porto Alegre).


A mídia brasileira não consegue alçar-se acima do caso policial porque depende das informações da mídia internacional que, por sua vez, só pode abastecer-se nas cautelosas declarações das autoridades francesas. Se o Procurador da República em Paris soprar um off descuidado, o pânico duplicará o estrago da fraude.


A França não é propriamente a pátria do capitalismo, mas é candidata a concorrer ao título de central de escândalos financeiros. Em 1889, a liquidação da Companhia do Canal do Panamá comeu a poupança de 800 mil poupadores, uma calamidade sem precedentes – e criou a maior crise política da recém-criada 3ª República. Ninguém ousou levar aos tribunais figuras como Ferdinand de Lesseps (1805-1894) e Gustav Eiffel (1832-1923), mas o nome do istmo da América Central (depois transformado em país) converteu-se em sinônimo de corrupção e fraude.


Desfile de moda


A mídia hoje é cada vez mais um negócio e cada vez menos serviço público. A bola de neve do noticiário, geralmente incontrolável, em situações de perigo institucional estanca suavemente, comandada pelo instinto de sobrevivência.


Esta megafraude vai levar tempo para ser explicada e somente será esclarecida quando cessar a intranqüilidade dos mercados financeiros. Até lá, a mídia deverá contentar-se com o dispara-e-despenca das cotações bolsistas. Ou as declarações obtidas em convescotes como o de Davos.


O Fórum Econômico Mundial encerrado no último fim de semana em Davos, Suíça, teve a mesma palpitação das discussões travadas entre os personagens tuberculosos internados num sanatório da famosa estação de inverno e retratados na Montanha Mágica, de Thomas Mann (1875-1955). O romance ganhou o Nobel de Literatura em 1929 porque espelhava as angústias da elite européia antes da Primeira Guerra Mundial. Datada, aquela retórica consegue ser mais atual do que o rescaldo do Senado dos Ricos que lá se reúne há 37 anos, em janeiro.


A edição de 2007 do Fórum Econômico não conseguiu pressentir que a bonança dos últimos anos chegava ao fim; e a de 2008, surpreendida pelos desdobramentos do tufão que derrubou o mercado hipotecário americano em meados do ano passado, não conseguiu produzir qualquer indicação mais consistente sobre o que nos aguarda.


Davos é um evento em processo de extinção, a mídia vai lá porque é chique. Chique e caro. Serve para atualizar a agenda de endereços, serve para que empresários emergentes imaginem-se donos do mundo, serve para produzir declarações nas páginas de negócios e, principalmente, para que a mídia impressa sinta-se integrada ao processo de transformação. Davos lembra os desfiles de moda onde jamais aparecem as roupas que as mulheres efetivamente vestirão na próxima estação.