Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O tribunal da imprensa

A imprensa noticiou com destaque a prisão do cidadão Adauto Gonçalves, no Rio. O Globo (29/4) o colocou na primeira página, junto com o crachá que o identifica como funcionário contratado para trabalhar numa obra do Plano de Aceleração do Crescimento, o PAC.


Depois de devidamente carimbado como traficante, o acusado demonstrou que havia cumprido pena, afirmou que tinha deixado o tráfico e apresentou prova de que estava realmente empregado numa empreiteira que toca uma das obras do PAC no Rio.


A empreiteira também emitiu nota dizendo que o considerava em condições de realizar o trabalho para o qual estava contratado, observando que uma das exigências da licitação era a contratação de trabalhadores nas comunidades próximas das obras.


O Estado de S.Paulo fez o reparo, relatando o episódio da prisão, mas não arrisca afirmar que o suspeito é o que diz dele a polícia ou se é vítima de uma injustiça.


Fica agora o leitor sem saber se, de fato, o tráfico tomou conta até mesmo das empreitadas públicas no Brasil ou se os jornais se precipitaram, e o cidadão Adauto Gonçalves foi condenado pela imprensa depois de haver cumprido pena.


Sem argumentos


A rigor, ele só poderia ter sido preso com um mandado judicial, mas isso é considerado uma firula jurídica nas circunstâncias em que ocorrem as ações policiais nas favelas. Mas também usando um mínimo de rigor, a imprensa não pode chamar de traficante alguém que, tendo cumprido pena, não voltou a sofrer nova condenação.


Não se sabe se e quando, além do Estadão, os outros jornais que aceitaram a versão da polícia vão fazer alguma correção na notícia. Também não se pode prever que efeito teria uma possível retratação, mesmo porque o preconceito da sociedade contra os moradores das favelas induz parte do público a acreditar que, em princípio, são todos bandidos.


Fica, assim, o sr. Adauto fichado publicamente como gerente do tráfico, mesmo que venha a provar que, tendo cumprido sua sentença, tornou-se um cidadão como todos os outros. A menos que se torne uma celebridade, como o ex-traficante de classe média conhecido como Johnny, que inspirou um filme de sucesso, Adauto terá poucas chances de reverter os registros a seu respeito.


A imprensa às vezes funciona como uma espécie de tribunal da inquisição, contra o qual não há argumento.