Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O vale-tudo contra o jornalismo

As teorias conspiratórias têm duas origens: ou nascem da cabeça dos loucos varridos ou dos mal intencionados. As sucessivas cantilenas, neste Observatório, do professor Gilson Caroni Filho (a última é ‘O jornalismo vale-tudo‘) contra o que ele chama de mídia ‘desde a origem golpista e conservadora’, com o espantoso apoio de 90 e tantos comentários de leitores, pertencem à segunda espécie. Ao contrabandear lixo ideológico em nome do ‘debate’ e da ‘reflexão’, tem a má intenção de desmoralizar a imprensa não por publicar mentiras, mas por publicar notícias.

O professor parte de um título banal, factualmente correto, publicado pelo site do UOL num sábado à tarde, para dançar em torno dele uma dança da chuva cheia de um ranço ideológico mais obsoleto que estátua de Ceausescu em Bucareste.

** Máfia dos caça-níqueis. Vavá usou nome de Lula; 13 presos são liberados

Esse é o titulo anatemizado pelo professor.

‘Uma mistura deliberada de opinião com informação’, denuncia ele. Onde? O que há nesse título que não seja informação factual? Não existe máfia dos caça-níqueis ? Vavá não usou o nome de Lula? Treze presos não foram liberados naquele dia? Então, cadê o erro? Onde está a opinião?

‘A técnica empregada induz o leitor a pensar, em um primeiro momento, que o irmão do presidente, valendo-se de tráfico de influência, obteve a soltura de 13 presos’, diz o professor, que nunca deve ter passado por uma redação. Quem, além dele, poderia tirar uma conclusão dessas?

O gato e a lebre

O título, redigido em forma de highlight separando os blocos de informação com ponto-e-virgula e dando autonomia a cada uma das unidades informativas, usa uma técnica consagrada em jornalismo, de sentenças curtas e objetivas, resumindo no título as informações mais importantes sobre um determinado tema.

Cadê a manipulação? Cadê a mentira? Esse ‘tráfico de influência’ que ele infere é apenas má consciência. Não é isso que está escrito, nem sequer insinuado. No entanto, por contra própria, ele tira a conclusão e atribui a intenção à conspiração da ‘mídia golpista’. Freud explica? Vavá explica?

O professor então cria a sua própria fantasia e começa a usá-la como montaria para expandir a sua cavalgada ideológica.

As 13 famílias que dominam a mídia (quais serão as 13, hein?), conclui ele, estão executando uma ação conjugada para ‘manter o governo dentro do metro de seus interesses’. Devemos deduzir, por certo, que algum representante das tais 13 famílias foi escalado para cobrir o plantão do UOL naquele sábado à tarde para ‘maquiavelar’ o tal título, assoprando ao sonolento redator, entorpecido pela feijoada de sábado, a pérfida armação do título conspiratório.

‘Não se trata de colonização de imaginário ou moldagem de consciência, mas da formatação textual de uma visão de mundo anterior à leitura’, sentencia o professor, com ininteligível sabedoria acadêmica, dissertando sobre a conspiração do contra-revolucionário título.

‘Nesse quadro, todos os procedimentos são válidos. Reportagens condicionadas à orientação editorial da publicação ou emissora’ (provavelmente ele acha que as reportagens devem ser condicionadas à orientação editorial não da publicação ou da emissora, mas do governo que tanto admira – o que é direito seu, mas que não lhe dá licença para falsear) ‘seleção e organização de informações com vistas a criar crises que nada mais são que simulações produzidas por recortes de mídia’ (a informação sobre as travessuras lobísticas de Vavá, o irmão bobão, não é produzida por investigações da Polícia Federal, no entender do professor Caroni, mas pelas simulações produzidas por recortes de mídia, seja lá o que ele pretenda dizer com isso).

A mistificação ideológica é servida num estilo que pretende vender o gato do pernosticismo pela lebre da profundidade (‘sem qualquer receio de se deslegitimar como práxis ética, aposta no esquecimento como fonte de validação de seus enunciados’, escreve Caroni, para que os parvos aplaudam – como escreve bem!). E é usada para defender a tese de que a imprensa persegue o governo por malévolas razões políticas quando está simplesmente exercendo o seu ofício de informar.

Espécie em extinção

O artigo se encerra, claro, com a defesa do cancelamento da concessão do canal venezuelano RTCV, ‘feita dentro de preceitos constitucionais’, esquecendo, por exemplo, que o extermínio de 6 milhões de judeus pelo legítimo e eleito governo de Adolf Hitler foi feita dentro dos preceitos constitucionais que vigoravam na Alemanha de então. E sem considerar que em regimes como o de Hitler, como o de Franco, de Pinochet, de Salazar, Mussolini, Stalin ou o de Fidel ou de Chávez, os ditadores é que criam e legitimam os seus próprios ‘preceitos constitucionais’.

O mais espantoso é das quase 100 manifestações de leitores, uma só voz se levantou para discordar do articulista. O solitário dissidente, um jornalista chamado Ivan Berger, quase foi linchado como nojento ogro direitista e reacionário.

Nenhum dos comentários – nem sequer um – contesta factualmente ou desmente qualquer notícia que tenha sido publicada pela ‘mídia golpista’. Nenhum dos comentários – nem sequer um – apresenta qualquer indício, ou pista, ou evidência, de que algum órgão da ‘mídia golpista’ esteja, nem remotamente, pedindo a destituição do presidente da República ou defendendo qualquer desvio constitucional que possa ser interpretado como golpismo.

Todo o raciocínio – por assim dizer – do articulista foi montado a partir de um título inofensivo, neutro, anódino, sem brilho mas também sem nódoa. Portanto, a grita não é contra uma possível publicação de falsidades ou deturpações da verdade ou incitações à ilegalidade. A grita é contra a publicação das notícias que lhes são incômodas.

A estratégia é desmoralizar a liberdade de imprensa para poder golpeá-la quando for possível. Como o escorpião da fábula, eles acabarão dando a ferroada mais cedo ou mais tarde. O que podem fazer? É a natureza deles.

Um mundo de Pravdas e Granmmas, eis o sonho secreto do professor Caroni e seu deslumbrado séqüito.

PS – Aviso aos navegantes: não percam tempo tentando me chamar de direitista; esse truque já ficou velho; sou apenas um pobre e minoritário democrata, uma espécie em franca extinção.

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Jornalista, Jundiaí, SP