Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Papai Noel existe

De uns tempos para cá, nos últimos Natais, tenho encontrado imagens de um novo Papai Noel. Um Papai Noel reformulado. Papai Noel pós-cristão. Papai Noel século 21.

Já encontrei, nas vitrines por aí ou em cartões virtuais que invadem meu computador, um Papai Noel dentro da banheira espumante em companhia de uma simpática velhinha (deve ser a Mamãe Noel), ou mesmo nu (de costas), somente de gorro, as nádegas balançando sensualmente: ‘Ho! Ho! Ho!’

Há também um Papai Noel malvado, um vovô sem escrúpulos. Numa dessas imagens que a internet vulgariza, vejo-o sentado na chaminé como se estivesse numa privada, perguntando: ‘Você não se comportou bem durante esse ano?’. Encontrei recentemente um outro Papai Noel, agressivo, fazendo-me gesto obsceno a troco de nada. Pois nem cartinha tenho mandado mais, e há muito tempo sou eu mesmo quem compra os presentes!

Sequer as roupas do Papai Noel lhe pertencem. Em lanchonetes, lojas e supermercados, funcionários se fantasiam com a vestimenta típica, incluindo a barba branca. Tudo pelas vendas! E as meninas que posam para as revistas do mês de dezembro, tiram a saia mas precisam ostentar o gorro do bom velhinho.

Comprar, comprar, comprar

Mudei eu ou mudou o Papai Noel? Em Portugal, fala-se ‘Pai Natal’. Herdamos, traduzindo pela metade, o Père Noël francês. Em inglês, podemos esperar pelo Father Christmas, se estivermos na Inglaterra, e por Santa Claus, se morarmos nos EUA ou no Canadá. Santa Claus, por seu turno, proveio do holandês Sinterklaas, adaptação do nome ‘São Nicolau’, bispo do oriente cristão no século 4, figura que, afinal, deu origem a essa história toda.

A descristianização do Natal descanonizou o santo e santificou o shopping. Papai Noel deixou de ser referência de generosidade. Sua imagem pertence definitivamente a contextos marcados pelo consumismo ou pelo deboche. Sinto-me um sociólogo pós-moderno constatando com tranqüilidade um fenômeno sociocultural. Papai Noel desnudado, manipulado, reinterpretado, coisificado. Vendedor de prazeres, menino-propaganda que difunde a fé no cartão de crédito.

Afirmava Roland Barthes que o fascismo não está em nos impedir de dizer, mas em nos obrigar a dizer. Papai Noel representa um novo fascismo. Ele me obriga a fazer aquilo que mais critico: comprar por comprar.

Quando pequeno, chorei ao descobrir que Papai Noel não existia. Estava enganado. Ele existe, sim, e todos os anos me força a desejar, mesmo com atraso… um vazio Feliz Natal!

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Doutor em Educação pela USP e escritor