Wednesday, 08 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Paulo Machado

‘Nas últimas semanas, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi palco de uma disputa político-partidária, judicial, ética e civilizatória. Distinguir uma coisa de outra foi o desafio da imprensa para levar ao cidadão informações isentas, impessoais, objetivas e apartidárias sobre o que estava em discussão na mais alta corte. Quando tantos e tão importantes interesses estão em jogo, é muito fácil deixar pender a cobertura a favor de algo ou de alguém. Manter a necessária isenção e equilíbrio se torna uma tarefa quase sobre-humana para o jornalista, mas fundamental para que prevaleçam os valores éticos, morais e republicanos de nossa sociedade ou que eles sejam esquecidos ou ainda sobrepujados.

À imprensa coube a tarefa de reproduzir para a sociedade os debates dos magistrados em torno da aceitação ou não de 1.627 denúncias contra 40 acusados. Para o leitor Frei Alamiro: ‘A mídia criou um clima de julgamento em torno do assunto. Passou a impressão de que o simples fato do STF aceitar a denúncia já é uma condenação. A palavra ‘réu’ ganhou o significado de ‘condenado’’. ‘É certo, é ético a mídia fazer isso?’, perguntou ele.

A esta Ouvidoria não cabe analisar a ‘mídia’ de maneira geral, como sugere o leitor, mas, especificamente, a cobertura que os veículos da Radiobrás dispensaram ao assunto.

No caso, a Agência Brasil publicou 120 matérias entre 14 e 30 de agosto. Uma das primeiras questões que o leitor levanta é se ficou claro na cobertura que não se tratava ainda de um julgamento, mas sim uma fase anterior, em que os juízes decidem se aceitam ou não as denúncias apresentadas pelo procurador-geral da República. No dia 22 de agosto, a Agência publicou a matéria ‘Julgamento do mensalão será feito em cinco etapas’, em que isso ficou claro.

Em cada momento desse processo que pode ou não transformar acusados em réus, há sempre pelo menos dois lados a serem reportados – o da acusação e o da defesa. A maneira como o jornalismo faz isso pode ser um dos fatores a indicar o equilíbrio ou não da cobertura. No caso, as matérias da Agência dão voz a ambos os lados de maneira razoavelmente equilibrada.

A Ouvidoria examinou as 120 matérias para ver se houve uma definição clara da distinção entre os critérios adotados para aceitar/rejeitar denúncias e aqueles que são aplicados quando se julga culpa/inocência num processo. Embora essa distinção tenha aparecido, em linhas gerais, em algumas matérias, ela não foi o enfoque central de nenhuma delas. As regras que determinam o que é admissível como evidência de que houve crime nas duas situações foram apenas citadas de passagem em algumas declarações feitas pelos ministros, sem uma apuração mais aprofundada sobre os critérios legais nesse tipo de processo.

Explicitar esses critérios nesse caso pode ser muito mais do que reportar um mero detalhe jurídico na medida em que isso reflete diretamente o conceito utilizado pelos juízes. Isso é didático para o cidadão saber se um ato é considerado um indício de crime, assim como é didático saber que não basta os juízes admitirem que haja evidências de um crime sem que essas evidências se somem em determinado número e importância para constituírem os chamados ‘indícios mínimos’, necessários para que a denúncia seja acatada.

Entender os critérios utilizados pelos ministros do STF para admitirem o que é evidência ou não de um crime ultrapassa a questão da técnica jurídica e se torna fundamental para o cidadão julgar a conduta dos juízes e suas decisões. Assim, para o cidadão, a informação sobre o que os juízes consideram indícios de um crime pode ser muito mais útil do que o placar final de uma votação, na medida em que eles apontam para os limites éticos de nossa sociedade.

Sobre divergências nas votações

Faltam nas matérias explicações das razões das divergências nos votos dos ministros do STF nos casos em que não havia unanimidade na aceitação ou rejeição das denúncias. Há uma tendência de tratar as votações como um placar. Na matéria ‘Em votação apertada, STF inclui Gushiken na acusação por peculato’, publicada em 24 de agosto, essa tendência de tratar os julgamentos em termos de placar se manifesta claramente. Isso também pode ser observado em muitas outras matérias em que aparece a contagem de quantos dos 40 acusados ‘já’ constavam na lista dos que tinham denúncias aceitas contra eles.

Separar o que foi dito de quem disse

Ao ler as matérias, cabe ao leitor separar o que foi dito pelos membros da corte no calor dos debates, daquilo que é interpretação da imprensa. Na cobertura da Agência não há afirmações que ‘passam a impressão de que o simples fato de o STF aceitar a denúncia já é uma condenação’, como o leitor reclama, mas se trata de reprodução dos termos utilizados pelos debatedores.

A contundência das expressões utilizadas nesse caso indica o estado de ânimo das discussões e não necessariamente uma cobertura tendenciosa. Um exemplo disso é a matéria ‘Denúncia mostra ‘crimes em quantidades enlouquecidas’, diz ministro do STF’, publicada em 28 de agosto, que reproduz a fala do ministro e não uma interpretação da reportagem sobre a fala dele.

Sobre a caracterização de ‘formação de quadrilha’

Existe ainda a questão de quantas quadrilhas havia: uma com três ‘núcleos’: o político-partidário, o publicitário-financeira e o financeiro; ou três? As matérias não esclarecem isso nem explicam o que é a ‘formação de quadrilha’ ou os motivos da rejeição deste tipo de denúncia pelo ministro Lewandowski no caso de José Dirceu e José Genoino.

Julgamento do PT

Uma outra afirmação do leitor foi de que a cobertura da mídia refletiu um julgamento do PT. Na cobertura da Agência Brasil o número de matérias que contêm a expressão ‘mensalão’ , em que aparecem os nomes dos acusados do PT é, em ordem decrescente: José Dirceu, 34; Delúbio Soares, 29; Silvio Pereira, 24; João Paulo Cunha, 12; José Genoino, 11; Luiz Gushiken, 9; Paulo Rocha, 9; João Magno, 7; Professor Luizinho, 7; Anita Leocádia, 5.

Salvo os casos dos três primeiros na lista, essas freqüências são semelhantes às dos demais políticos e ex-políticos entre os 40 acusados, freqüências estas que variam entre 6 e 12, à única exceção de Roberto Jefferson, com 24 citações.

As freqüências das citações dos três petistas que lideram a lista entre seus correligionários e são acusados de integrar o chamado ‘núcleo político-partidário’ da quadrilha perdem para o recordista entre os 40 acusados: Marcos Valério de Souza, o suposto chefe do ‘núcleo publicitário-financeiro’ da quadrilha, com 54 citações. Mesmo assim, as freqüências das citações dos acusados ligados aos chamados ‘núcleos publicitário-financeiro e financeiro’, que variam entre 10 e 20 vezes, tendem a ser maiores que as dos políticos e ex-políticos sem tais ligações.

Isso permite concluir que, embora alguns dos petistas ocupassem um espaço desproporcional na cobertura em comparação aos outros acusados, salvo Marcos Valério, sobretudo em relação ao número de crimes dos quais foram acusados, isto foi mais em função da sua ligação com ‘o núcleo político-partidário’ da suposta quadrilha do que de sua afiliação partidária em si.

Infográficos

Na cobertura da Agência aparecem dois infográficos produzidos pelas assessorias do PSDB e do PT resgatados da matéria ‘PT e PSDB reuniram dados contra e pró tese do ‘‘mensalão’’, publicada em 29 de março de 2006. Naquela oportunidade, esses gráficos acompanhavam o texto que contextualizava sua existência a partir de interpretações de deputados dos dois partidos.

Pelo lado do PSDB, o deputado Júlio Redecker utilizava a informação para justificar a tese de que o PT comprava deputados para aprovar medidas polêmicas em votação no Congresso, apesar de a matéria apontar que a maior parte dos saques foi feita durante as eleições municipais de 2004 ou no início de 2003, após as eleições do ano anterior.

Pelo lado do PT, a interpretação do deputado Odair Cunha era a de que os saques eram para pagamento de dívidas de campanha e não compra de votos.

Ao reeditar esses gráficos sem essa contextualização, a Agência parece ficar refém exclusivamente de uma das teses partidárias, esquecendo-se de informar ao cidadão sobre as demais teses aventadas anteriormente para justificar a movimentação financeira atribuída ao suposto esquema de mensalão.

Concluindo, há que ressaltar que a cobertura, no dia seguinte à decisão do STF que transformou os acusados em réus, os membros do núcleo político do PT, os mais citados nas matérias, foram ouvidos pela reportagem para expressarem suas impressões sobre o julgamento.

Respondendo ao leitor se existe algum órgão que fiscalize a imprensa, digo que não. Todavia, existe a Lei de Imprensa (nº 5.250), de 9 de fevereiro de 1967, que prevê em seu capitulo 3º, artigo 12: ‘aqueles que, através dos meios de informação e divulgação, praticarem abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e informação, ficarão sujeitos às penas desta lei e responderão pelos prejuízos que causarem’.

A mesma lei, em seu artigo 27, diz: ‘Não constituem abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação:

IV – a reprodução integral, parcial ou abreviada, a notícia, crônica ou resenha dos debates escritos ou orais, perante juízes e tribunais, bem como a divulgação de despachos e sentenças e de tudo quanto for ordenado ou comunicado por autoridades judiciais;

V – a divulgação de articulados, quotas ou alegações produzidas em juízo pelas partes ou seus procuradores’.

Até a próxima semana.’