Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Quando a discriminação vira notícia

Uma vez por ano a mídia discute discriminação e violência contra mulheres. E o dia chegou: 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Nesta época, pauteiros de jornais têm um ataque feminista e, em vez de mostrar mulheres-objeto, musas do carnaval ou musas de qualquer espécie, falam das mulheres que não conseguem ter voz na política, das mulheres que sofrem violência sexual, das mulheres que têm salários menores que os dos homens e das mulheres que ainda hoje são mortas por seus antigos – ou atuais – companheiros.

Enquanto o Dia da Mulher não se transformar em mais uma data de consumo (embora já tenha começado o hábito de se dar flores, ainda não existem presentes específicos para o evento), a imprensa se conforma em falar de opressão e violência. Gastam-se, em uma semana, matérias que deveriam fazer parte do dia-a-dia da imprensa que ignora, sistematicamente, o fato de as mulheres ainda serem tratadas como seres de segunda classe. Mesmo nos países mais desenvolvidos, como mostra matéria da BBC Brasil:

‘O Brasil ficou em 107º lugar em um ranking, divulgado nesta semana, sobre a percentagem de mulheres nas câmaras de deputados de 187 países até o fim do ano passado. A lista foi elaborada a partir dos dados das últimas eleições em cada país (no Brasil, as de 2002) pela União Inter-Parlamentar (UIP), uma organização de fomento à cooperação entre as câmaras nacionais de mais de 140 países. Ruanda aparece em primeiro lugar. Os países nórdicos, reconhecidos pela igualdade entre os sexos, ocupam as posições seguintes: em segundo, a Suécia (45,3%); em terceiro, a Noruega (37,9%); em quarto, a Finlândia (37,5%); em quinto, a Dinamarca (36,9%), Holanda (36,7%), Cuba (36%), Espanha (36%), Costa Rica (35,1%), Argentina (35%) e Moçambique (34,8%) completam os dez países com maior número de legisladoras. O Brasil, assim como os Estados Unidos, ficaram abaixo da média mundial de 16,6% de mulheres na composição da câmara dos representantes, com apenas 8,6% de brasileiras e 15,2% de americanas.’

Ao divulgar essa notícia a imprensa, de certa forma, até se justifica por dar pouco destaque à atuação das políticas brasileiras. Mas não justifica o fato de, em plena era das CPIs, em vez de destacar a atuação de deputadas e senadoras prefira falar das mulheres bonitas, imediatamente elevadas à condição de musas exclusivamente por seus atributos físicos.

É tempo também de falar da violência sexual, como fez o jornal catalão La Vanguardia, de Barcelona, que divulgou relatório da ONG Médicos sem Fronteiras:

‘A violência sexual não é um fenômeno exclusivo de países em conflito ou instáveis, nem de negros ou latinos selvagens. Os números registrados pelos países do Norte demonstram que também na Europa é uma prática recorrente.’

Na pauta diária

De violência doméstica, por aqui, só ficamos sabendo quando a história tem fim trágico. Um bom exemplo é matéria do jornal O Estado de S. Paulo (5/3/2006): ‘Mortas a tiros – e culpadas: assassinato de irmãs em Piracicaba vira mais uma história em que o delito está nas vítimas’.

A história é até banal: a separação vai em bons termos até o marido se negar a pagar a pensão dos filhos (depois de ter passado seus bens para o nome de um irmão). Obrigado pela Justiça a pagar, enfurecido começa a ameaçar a mulher e os filhos até o dia em que, um ano e meio depois da separação, mata a ex-mulher e a irmã dela, na casa de quem ela tentava escapar da perseguição. O advogado do criminoso alega que o marido matou porque amava, usando o famoso recurso da defesa da honra, tão batido e que ainda serve para livrar assassinos de mulheres.

O crime, que aconteceu em dezembro, mobilizou a cidade e rendeu até editorial do Jornal de Piracicaba (11/2/2006):

‘O combate à violência contra a mulher deve permear o pensamento de todas as pessoas, erradicar da cultura brasileira que a mulher é inferior e que deve obediência, portanto ser subserviente, submissa às decisões do homem. Infelizmente, essa mentalidade sobreviveu durante muitos anos em nossa comunidade, influenciada por costumes introduzidos em nosso cotidiano por colonizadores e imigrantes que formaram a nossa sociedade. Mudar esse comportamento é nossa responsabilidade, pois temos que eliminar de nossas vidas quaisquer gestos ou palavras que representem uma agressão, que possam machucar.’

Editoriais desse tipo deveriam ser norma, e não exceção. Os direitos femininos, lembrados uma vez por ano, deveriam estar na pauta diária da imprensa que, com suas denúncias, poderia ajudar a criar uma consciência coletiva de que as mulheres têm direitos iguais, merecem as mesmas oportunidades e não podem ser vistas apenas como destaque porque são bonitas ou aparecem nuas nas avenidas durante o carnaval.

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Jornalista