Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Quem precisa de guru quando a Lei de Murphy é tão óbvia?

Em momentos como este – em que soam os alarmes de uma crise financeira –, gurus do mundo encontram brechas para ‘comercializar’ suas análises de futurologia. Os que o fazem sabem que a medida é de 50% de chance de acerto e 50% de chance de erro. De fato, eles bem sabem que tão arriscado quanto apostar na Bolsa em tempos de crise é o exercício de projetar os rumos dos acontecimentos. Na outra ponta, nem sempre os receptores das mensagens emitidas pela ‘gurulândia’ mundial têm ciência do alto risco da aposta. Simplesmente, ‘compram-nas’ e fazem delas o seu norte de investimentos.

Outra evidência em tempos de crise – como esta – é que gurus não existiriam se não houvesse quem os seguisse ou que em suas previsões acreditasse; sabendo disso é que alguns com má fé se aproveitam, inclusive da boa-fé de seus seguidores, para literalmente manipular o mercado. Sem qualquer escrúpulo, objetivam unicamente faturar com a inocência alheia; outros, por sorte, jogam com e no mercado de forma lícita, ou seja, fundamentando suas orientações em sua real experiência profissional, e não no mero sofisma dos ‘espertos’.

Venda ilusória

Diante das constatações, com o nexo causal – o que, aqui, significa relacionar fatos e atos aos efeitos posteriores – e ainda sem qualquer intenção de entrar para a ala dos gurus ou de fazer previsões, é que nesta reflexão transcrevo nada mais do que minha opinião e espero contribuir com algumas orientações. De início, aduzo quatro assertivas relacionadas às vertentes da atual crise:

1. Algumas falácias nos foram vendidas. Entre elas, embora anunciem que o dinheiro ‘evaporou’ na crise, ele de fato mudou foi de mãos. A especulação desenfreada e oportunista é o que está fazendo a Bolsa variar entre drástica alta e baixa. Neste momento muitos perdem com papéis e outros poucos ganham, enquanto tiram proveito da crise e faturam milhões na Bolsa. Todo e qualquer investidor de papéis está, contudo, com medo de um crash parecido com o de 1929. Saem, então, da comodidade do dinheiro virtual e estão no mercado farejando bons projetos para investimento nos meios de produção, pois há uma grande possibilidade de que de dentro da cartola da Bolsa de Valores não saia nada de mágico.

Para os que acompanham o mercado, não seria necessário saber que retirar o dinheiro dos meios de produção para apostar no ‘pôquer’ da economia volátil seria o mesmo que provocar o inchaço da bolha – e que esta iria cedo ou tarde estourar. Ainda que soubessem das conseqüências, assim o fizeram e hoje insistem em nos empurrar algumas inverdades, como a de que ‘o dinheiro sumiu do mercado’.

Outra falácia é divulgar que X carros e/ou Y imóveis foram vendidos!, vendidos, vendidos!. Ora, por venda se entende consumação de ato, ou seja, adquirir um produto e quitar a dívida do produto adquirido. Se alguém adquire algo, mas não consegue pagar, não houve venda de fato. Pode ter havido venda ilusória, mas não venda concretizada.

O dinheiro mudou de mãos

Haverá quem diga que a venda é, sim, consumada na assinatura do contrato, ou seja, a partir do fato de que se o cliente pagar as primeiras parcelas, já terá pago o valor total e que as demais ‘77568669770080800’ parcelas posteriores são acrescidas de juros embutidos, os quais, diga-se de passagem, são exorbitantes. Tudo isso é verdade. Ou seja, o indivíduo é seduzido pelo marketing de vendas e na ânsia de desfilar por aí de carrinho ou carrão novo, ou mesmo de ter o teto dos sonhos, compra o ‘produto’ em 36 meses ou ‘Z’ anos mas, ao final, se conseguir pagar tudo, acabará por ter pago o valor de dois, talvez três, bens equivalentes.

Perfeito, todo mundo quer um carrinho novo ou uma casa própria – e alguns nem fazem contas de quanto vão ao final pagar pelo ‘pesadelo do sonho’. E o problema está justamente nessa parcela da população que compra o bem por impulso e não consegue quitá-lo. Assim sendo, aquele carrinho dos sonhos pode levar o ‘impulsivo’ a ter, cedo ou tarde, de pôr os pés no chão e/ou o carrinho no pátio do banco. Em outras palavras, seria cômico se não fosse trágico o fato de que esse tipo de negócio por impulso só é bom para um dos lados; sendo assim, meus caros, não ‘é negócio’.

Em resumo, aqui temos dois exemplos de especulação, sendo a primeira por marketing de vendas e a segunda pela especulação na Bolsa de Valores. Adentremos na análise da Bolsa.

O mundo capitalista desenvolveu o sistema de bolsas para financiar a produção; pois bem, assim deveria ser, mas não tem sido. Neste momento de crise, mais uma vez os conhecedores do mercado financeiro estão fazendo fortunas em operações de day trade e, sendo assim, o dinheiro não sumiu, ele apenas mudou de mãos.

Por que auxiliar recordistas de lucros?

Mas o que isso tem a ver com o grosso da população ou com investimento? A chave para o questionamento está na pura especulação, a qual é feita com o meu, o seu, o dinheiro do mundo que é posto à disposição de operadores financeiros. E enquanto isso ocorre, repetimos os mesmos erros que nos trouxeram até esta crise, pois os patrimônios das empresas vão se dissolvendo, os empregos vão sumindo e a crise vai se instalando mais e mais na mente de cada um.

2. Os bancos continuam recebendo depósitos em dinheiro, porém, ao invés de o colocarem na praça, estão acumulando reservas. Sem crédito na praça, não há consumo e, portanto, o sistema de meios de produção trava e, como conseqüência, demissões estão a caminho. O governo brasileiro, então, deverá baixar os juros. Mas, na contrapartida, aumentará os tributos – ou seja, uma questão de ilusão de ótica financeira.

Qualquer iniciante em economia sabe que, nos momentos em que o risco é alto, concentrar o dinheiro no topo da pirâmide é o mesmo que correr um risco menor. Exemplo disso é que na medida em que os governos de todo o mundo socorrem acertadamente os bancos, as montadoras, as financeiras, as empresas de seguro etc. fazem esta ação com o meu dinheiro, com o seu dinheiro, com o nosso dinheiro; pois as reservas do país são do Estado e, portanto, do povo. Nesse diapasão, contudo, estamos (eu, você e qualquer cidadão) perdendo as reservas, perdendo obras de infra-estrutura, perdendo dinheiro de obras públicas, da saúde etc.

Ainda que sob minha miopia econômica eu ache acertado que os governos intervenham com auxílio aos grandes, questionável é a forma como está sendo feita essa intervenção e sua falta de balanceamento. Afinal, não foram os bancos os recordistas de lucros dos últimos meses e anos? Não foram as montadoras e seguradoras e financeiras as recordistas de crescimento dos últimos anos? E por que, então, haveriam os governos de aplicar o dinheiro do povo naqueles que já muito têm, em detrimento da aplicação de recursos em obras para a população de baixa e média renda? O mais adequado seria, pois, destinar a injeção de crédito à base da pirâmide. Ou seja, de baixo para cima, e não de cima para baixo.

Maiores anunciantes são bancos

Junto aos meus botões, questiono ainda: custamos tanto a receber o reconhecimento do mundo como país integrado na ordem econômica mundial, custamos tanto para receber o reconhecimento das agências de rating como nação democrática, segura e ordeira, respeitosa e digna de receber os investimentos financeiros do mundo e agora vamos pôr tudo a perder? E meus botões, um tanto quanto revoltados, seguem e questionam se não é ainda mais irônico que o cidadão perca sua casa, emprego e estabilidade porque o governo optou por sustentar os já bastante lucrativos bancos.

O mais lógico seria reduzir a carga tributária e incentivar o consumo, o que, por conseqüência, faria com que a economia girasse e o dinheiro circulasse no mercado. Em outras palavras, a melhor estratégia seria usar o dinheiro da população e destiná-lo à própria a população, liberando o crédito de forma direta e, assim, aquecendo a produção e o consumo na base.

3. Quando a onda – que os meios de comunicação estão formando – quebrar na praia brasileira, a primeira coisa que a população vai cortar do orçamento é o supérfluo. É natural que a população dê prioridade para a base da pirâmide administrativa, a qual consiste em itens de primeira necessidade e sobrevivência.

A imprensa, neste cenário, é, por certo, um mal necessário para a constância e manutenção da democracia. No entanto, é sabido que a comunicação de massa é um negócio e, como tal, a fonte de renda desse negócio está na disseminação de escândalos, manchetes catastróficas e outras mazelas do pessimismo que, comprovadamente, por meio de pesquisas, é o que atrai e leva o consumidor dos produtos de comunicação a se interessar pela informação. Ou seja, se há demanda, a imprensa simplesmente a supre.

Além disso, fora alguns valores quase invisíveis ao consumidor de notícias – como a influência nos ‘negócios políticos’ de uma nação –, a segunda fonte de renda dos veículos de comunicação de massa é a dos anúncios. Curiosamente, basta folhear as revistas e jornais para ver que entre os maiores anunciantes da comunicação de massa estão os bancos e as construtoras. Seria uma coincidência?, questionam, ironicamente, os meus botões. Ainda assim, sejamos justos, temos ótimos profissionais trabalhando na imprensa nacional. Geralmente, esses podem ser reconhecidos quando estão em pé de guerra com a demanda do departamento comercial das empresas para as quais trabalham.

As benesses do crescimento

Não se trata, entretanto, de pedir aos bons profissionais da imprensa que em momentos como este mascararem a verdade, mas o fato é que, sem projeto a longo prazo, a própria imprensa, ao não equilibrar o noticiário, dá um tiro no pé, pois se considerarmos que a informação é uma das incentivadoras da retidão do poder de consumo da população, será ela a primeira a sofrer com os abalos de uma crise. Ou seja, é natural que a população, alarmada com o noticiário desbalanceado, dê prioridade para produtos de primeira necessidade, cortando assim os produtos de comunicação que, em horas de aperto, são gêneros supérfluos.

Concordamos todos que a imprensa tem obrigação de apresentar os fatos como são, mas, por outro lado, a própria imprensa é a principal força de desestímulo da auto-estima de um país. Em suma, neste momento a imprensa pode e deve apresentar os fatos, mas deveria por outro lado fomentar a retomada de confiança por meio do equilíbrio do noticiário, sob pena de vender muito agora, mas não ter quem possa pagar no futuro.

4. Se assim seguirmos, a lógica é a de que foram anos para levantar este país e que a população na base da pirâmide é que vai ‘comer’ a casa, a poupança, o carrinho e até o cofrinho para sobreviver aos efeitos da crise.

Interessante é perceber que o Brasil caminhou positivamente nos últimos anos. Até poucos meses atrás, pecuaristas e agricultores, industriais, exportadores ou não, trabalhadores empregados ou não, vinham se servindo das benesses do crescimento. O acesso às classes mais altas – da classe D para a C, da C para B e da B para A – vinha proporcionando à maioria da população acesso à educação, à moradia, à qualidade de vida, ao conforto emocional, entre outros.

Mundo de sonhadores utópicos

No atual cenário, só há uma forma de manter o status quo de meses atrás, sendo essa traduzível como ‘a união da base é que faz a força de pressão no topo’. Ou seja, cabe à população mundial confiar e resgatar o crescimento econômico, porém exigindo que os governantes sejam mais sensatos. Acima de tudo, devemos exigir das nações a completa regulamentação do mercado financeiro, exigir o fim dos bônus excessivos, cobrar as responsabilidades dos agressivos irresponsáveis que colocaram o mundo na berlinda; exigir a retomada de investimentos em obras estruturais, na educação, na saúde, na melhoria da qualidade de vida da população mundial como um todo.

Caso contrário, perdemos, na medida em que usam nosso dinheiro para financiar o topo da pirâmide e quando as reservas acabarem, mais fiscalização, mais taxação, mais impostos para sustentar tanto a ineficiência do Estado, como a formação de nova poupança para suprir a necessidade de novos investimentos. Perdemos, ainda, na medida em que os bilhões usados para fomentar consumo não chegam às mãos das classes mais baixas. E assim perdemos como os americanos, que entregam suas casas, como os europeus a perderem seus empregos…

Em síntese, somente quando a massa da população mundial estiver unida, usando toda sua força a exigir dos dirigentes mundiais, nossos representantes, o correto uso do meu, do seu, do nosso dinheiro para resolver a questão ambiental, a questão da fome, para melhorar o acesso ao conhecimento, para o desenvolvimento de pesquisas, é que poderemos mudar nossa própria realidade.

Quando tivermos compreendido que cada um faz o seu destino e, conseqüentemente, afetará o destino dos outros é que então não precisaremos delegar aos gurus o crédito ou a insatisfação sobre nossas próprias vitórias ou fracassos e muito menos passaremos o resto de nossas vidas sendo tachados como mundo dos sonhadores e utópicos.

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Jornalista e acadêmica de Direito