Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Não é apenas em 8 de março

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Todos os anos é a mesma coisa: no mês de março somos inundadas e inundados de matérias, programas especiais e formas de “homenagem” nos medias por conta da passagem do Dia Internacional da Mulher (8 de março). A factualidade da data instiga a factualidade que move o jornalismo e justifica, então, falar de gênero e de questões voltadas às mulheres.

É, de fato, uma conquista a criação da data, que surge das lutas das mulheres operárias na Europa e nos Estados Unidos, e, atualmente, é um espaço das diversas demandas ligadas às questões de gênero e aos movimentos feministas (isso mesmo, no plural!). Essa marca no calendário pauta os meios de comunicação — mesmo aqueles menos sensíveis à temática — a abrirem espaços para que as mulheres se tornem, de alguma forma, centro de suas produções.

Mas, o lamentável é perceber que a mesma atenção dispensada no período se dispersa nas abordagens jornalísticas e no cotidiano das redações ao longo do ano. Um jornalismo que se intitula guardião e baluarte de uma sociedade mais justa, ou mesmo que se pauta por valores como pluralidade, defesa dos direitos, igualdade, entre outras coisas, esquece-se de que as desigualdades de gênero e raça estão aí, vivas, profundas, no metrô, na lavoura, na escola, nas periferias, nas redações. E, mais do que tornar o assunto lugar comum, a manutenção das desigualdades o reatualiza.

E nem é necessário fazer malabarismos noticiosos para que as questões de igualdade de gênero e raça sejam cotidianas no fazer jornalístico. Mudanças simples já ajudam, como ter mais fontes femininas nas matérias e em posições de autoridade (não apenas como personagens ou vítimas); tratar dos crimes de feminicídio para além de “mais uma matéria de polícia”, denunciando o machismo estrutural que legitima ainda esse tipo de violência; pautar as questões de desigualdade de gênero a partir de diferentes nuances, como sexualidade, raça, classe, território porque, afinal, as mulheres não sofrem e sentem as violências da mesma forma. A intelectual e ativista Lélia Gonzalez já nos ensina que é preciso estarmos alertas às generalidades que ocultam opressões, que silenciam a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam um preço muito caro pelo fato de não serem brancas.

Mas também, enquanto as relações de produção jornalística ainda reproduzirem as desigualdades de gênero — como diferenças salariais entre homens e mulheres, ocupação de cargos de chefia de forma não paritária, assédio moral e sexual de jornalistas por colegas e fontes, constrangimento de contratação e dificuldades de carreira para mulheres em idade fértil, que pensem em ter filhos ou que sejam mães de crianças —, acreditamos que a pauta da “igualdade de gênero” sempre será tratada nas exceções. E a insistência em mais abordagens neste sentido será algo enfadonho e sem valor notícia.

Por fim, pode-se argumentar que nos últimos tempos, a situação até melhorou e a questão de gênero tem se tornado mais visível. Se comparado a alguns anos atrás, a quantidade de pautas sobre o assunto cresceu e o tema está na “moda”. Mas é exatamente esse o ponto: não pode ser apenas moda! Como pesquisadoras das temáticas de gênero, mídia e política, mas também como mulheres e jornalistas, nos incomoda ver veículos de comunicação e empresas de modo geral — e porque não dizer, algumas personalidades midiáticas também — pegando carona nas discussões, como se falar sobre gênero e feminismos fosse item “de estação”, como um estilo de bolsa, um corte de cabelo ou uma técnica de maquiagem.

Se nós duas estamos aqui hoje, com este espaço de expressão, assinando nossos nomes verdadeiros, é porque muitas mulheres antes de nós desafiaram convenções, foram mortas em fábricas, questionaram normas impostas, mostraram que era possível pensar e agir de outra maneira e criaram espaços de visibilidade. Por isso mesmo não entendemos que o debate sobre as desigualdades entre homens e mulheres e, principalmente, entre as próprias mulheres, deva se restringir a uma data do calendário.

Não queremos ser ouvidas apenas quando falar de nossos dilemas cotidianos for uma “onda de ativismo politicamente correto” ou um valor que “agrega” mais lucro ao negócio. A estrutura patriarcal que nos silencia, nos estupra, nos subalterniza e nos mata não é moda. É perene, é histórica, é de longa duração. E enquanto o jornalismo tratar desses assuntos apenas seguindo uma tendência, não estaremos nem mais seguras, nem mais contempladas.

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Lucy Oliveira é jornalista e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tem estágio de pós-doutorado pela FAPESP no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e, atualmente, desenvolve pesquisa e trabalhos nas áreas de mídia, política, discurso, gênero e representatividade. É vice-coordenadora do GT Mídia, Gênero e Raça da Compolítica. Instagram: @lucy_olivr

Viviane Gonçalves Freitas é jornalista e doutora em Ciência Política (UnB). Pesquisadora associada à Rede de Pesquisas em Feminismos e Política e ao Margem – Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça (UFMG). É coordenadora do GT Mídia, Gênero e Raça da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica). Tem pesquisas e publicações nas áreas de mídia, política, feminismos e raça. Instagram: @vivianegf14