Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Invasão da Ucrânia revela esquerda brasileira

(Foto: ArtTower/Pixabay)

Vladimir Putin queria uma invasão relâmpago da Ucrânia, baseado na superioridade bélica russa. Seria um passeio com seus modernos tanques, protegidos por helicópteros lançando bombas e aterrorizando a população. Errou feio. Hoje, quarta-feira, já no sétimo dia, a capital ucraniana se prepara para resistir a um cerco por veículos russos blindados, tanques, artilharia rebocada e um importante contingente de soldados.

Segundo especialistas europeus, a entrada dos modernos tanques no território ucraniano sem proteção de soldados foi temerária. Armas pesadas, mas sem grande mobilidade, foram alvos fáceis e imobilizados, atravancaram as estradas. Esse atraso pode ter comprometido todo o plano de invasão, pois o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky conseguiu mobilizar a população para uma resistência, mesmo com coquetéis molotov.

Por sua vez, os países europeus, passado o choque da invasão russa à Ucrânia, decidiam enviar armamentos e equipamentos militares, enquanto seus bancos e organismos financeiros decidiam bloquear contas, capitais e transações, provocando uma desvalorização do rublo. A reação contra a invasão russa foi ainda mais ampla, pois inclui a expulsão da Rússia pela FIFA e dos clubes russos nas competições europeias.

Maestros russos tiveram seus contratos anulados e as diversas modalidades de festivais não receberão nenhuma manifestação artística vinda da Rússia. Se em 1938, o mundo tivesse assim reagido contra a anexação da Áustria por Hitler, teria abortado a guerra mundial.

A própria Suíça, depois de uma ligeira hesitação, não quis manter sua malvista neutralidade do passado e decidiu se alinhar conforme as sanções decididas pela União Europeia. A advertência foi feita pelo dirigente das relações exteriores da UE: “a Suíça, berço da Cruz Vermelha, que se orgulha de ser vanguardista na promoção da paz, não pode se manter inativa diante da agressão russa”.

Resultado, as fortunas dos dirigentes russos e pessoas a eles ligadas foram congeladas e, desde segunda-feira, o espaço aéreo suíço foi fechado aos aviões e companhias aéreas russas assim como jatos privados russos. Transferir importantes somas de dinheiro em urgência não é simples; quem conseguiu, já havia transferido há mais tempo e enviou para Hong-Kong. Mesmo assim, quem possuía sua fortuna em rublos sofreu a retração provocada pela desvalorização da moeda russa.

O risco nuclear

De uma maneira geral, ninguém acredita numa utilização do arsenal nuclear russo para retomar a Ucrânia, considerada por ele como parte do território russo. A invasão decidida por Putin teria sido também para evitar a entrada da Ucrânia na OTAN, embora nada de concreto exista a esse respeito. Isso equivaleria, se fosse o caso, ao projeto soviético do passado de instalar ogivas nucleares em Cuba.

O jornal L´Humanité, antes porta-voz do partido comunista, mas hoje um órgão de esquerda, num artigo sobre o desafio feito ao mundo por Putin, no qual comenta a guerra contra um país soberano, cita um debate promovido na Alemanha pela revista Der Spiegel, no qual se revelou a existência de um documento assinado em 1991, pelos EUA, França, Inglaterra e Alemanha, de que a OTAN não iria além do rio Elba, ou seja, não passaria da Tchecoslováquia. Bastaria isso para justificar a invasão?

Todos os candidatos da esquerda francesa à presidência condenam a invasão da Ucrania pela Rússia, inclusive Jean-Luc Melenchon, que é contra a OTAN, e que é sempre acusado de ser próximo do Kremlin. “Condeno a guerra da Rússia na Ucrânia”, declarou. “Trata-se de uma iniciativa de pura violência manifestando uma vontade de poder sem medida…” Mas não passou despercebida a frase “guerra da Rússia na Ucrânia” em lugar de “invasão russa da Ucrânia”. O candidato do partido comunista, Fabien Roussel, se opõe à entrega de armas ao governo ucraniano, embora utilize um vocabulário um tanto genérico quando fala que o PC “é solidário com todas as forças de paz na Ucrânia, na Rússia e na Europa que se levantam contra essa guerra… e que a segurança da Europa, Ucrânia e da Rússia são inseparáveis”.

Roussel condena a atitude do presidente russo que “se lança no ultranacionalismo e fica com a responsabilidade militar dessa guerra”, mas não deixa de criticar também os Estados Unidos: “a responsabilidade coletiva é de todos quantos alimentaram a possibilidade de confrontação às portas da Rússia, dando a entender que a Ucrânia poderia entrar na OTAN”.

Até agora a Rússia, cujo arsenal de ogivas nucleares é maior que o dos EUA, sempre se referiu a essa força como elemento de dissuasão ou de resposta a um ataque. Nos últimos anos, certas inovações nas forças nucleares permitiram modular a potência de suas explosões, podendo levar alguns líderes a imaginar ou desejar fazer uma experiência real nos campos de batalha.

A resistência dos ucranianos com a utilização de armas entregues pelos países europeus, mais uma crise econômica dentro da Rússia, provocando perda do apoio popular a Putin, poderá criar um clima de derrota russa. Porém, é difícil imaginar Putin retirando suas tropas. Putin, embora tenha falado em armas nucleares, só poderá utilizá-las (em princípio) com o acordo do ministro da Defesa e do chefe do Estado-maior das forças armadas russas.

Bolsonaro, Lula e Malafaia evitam criticar Putin

O presidente Bolsonaro, mesmo se foi a Moscou às vésperas da invasão, parece ignorar a decisão de Putin. Chegou mesmo criticar os ucranianos por terem eleito presidente um ator comediante da TV. Na sua ignorância, Bolsonaro desconhece a formação universitária de Zelensky e sua coragem na defesa de seu país, se comportando como um herói, ao resistir ao ataque russo.

Não bastasse seu comentário ofensivo aos ucranianos, aos atores e comediantes, Bolsonaro mentiu para a imprensa, nas suas novas férias no Guarujá, ao afirmar ter falado duas horas com Putin. Conversa houve, porém não foi, no domingo, por telefone, mas há duas semanas em Moscou, ao que parece sem se falar na Ucrânia.

Quem esperava uma declaração clara do ex-presidente Lula sobre a invasão da Ucrânia se decepcionou. Lula fez uma declaração anódina contra a guerra, sem falar em invasão e, numa outra declaração, desviou responsabilidade para a ONU, sempre sem se referir ao autor da invasão, o presidente Vladimir Putin. Esse cuidado seria para não decepcionar a esquerda brasileira.

A situação acaba ficando entre dramática e grotesca. Bolsonaro e Lula não se definem quanto à Rússia e Putin, e nisso estão próximos do pastor Silas Malafaia, que berra ser contra a guerra, compara a crise das ogivas russas em Cuba com a entrada da Ucrânia na OTAN, mas não fala em Putin! Para ele, crime maior são os 200 milhões de “bebês” assassinados em cinco anos pelo aborto. A ignorância misturada com fanatismo não permite a Malafaia perceber não haver bebês nos abortos e muito menos entender a importância da legalização do aborto para as mulheres.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.