Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Repórteres proscritos

Sai a reportagem, entra a pesquisa. Alguém estabeleceu algo assim, por decreto, uns 20 anos atrás, e a cobertura da mídia às campanhas políticas virou esse ramerrão aí que todos vemos, entediados e sonolentos. Saiu a reportagem e junto com ela foram embora a emoção e aquelas previsões do jornalismo muito mais precisas porque baseadas nos eventos de bastidores e na opinião mais compenetrada de quem vota.

A reportagem – todo tipo de reportagem – tem de ser um dos grandes diferenciais dos impressos na competição com os meios digitais e eletrônicos, mas quanto mais a competição se acelera, menos reportagens os impressos publicam. Um bom texto de um repórter experiente pode valer mais que meia dúzia de pesquisas, do Ibope ou do Datafolha, e traz para reflexão dos eleitores muitas outras dimensões e conexões da política.

Em 1988, trabalhei como coordenador da cobertura da campanha política pela Agência Estado, que na época administrava a rede de sucursais e correspondentes do Grupo Estado de S.Paulo. O diretório nacional do Partido dos Trabalhadores era comandado por políticos do Rio Grande do Sul – Olívio Dutra, Tarso Genro – e todas as lideranças do partido entregavam-se ao esforço de eleger Luiza Erundina à prefeitura de São Paulo.

Tive a ideia de deslocar para São Paulo o chefe da sucursal do Estado em Porto Alegre: era Elmar Bones, um dos mais talentosos e experientes repórteres do país. Pedi-lhe: “Entreviste aí o comando do PT e depois venha a São Paulo, passe uma semana acompanhando os candidatos e depois escreva um texto tentando apontar quem vencerá as eleições”.

Repórteres substituídos pelo Ibope

Erundina travava uma guerra com Paulo Maluf, o grande favorito. A 30 dias do pleito, quem ousasse prever que Erundina venceria as eleições em São Paulo tinha tudo para ser internado num manicômio. Pois foi exatamente a um mês das eleições que Elmar Bones concluiu sua reportagem. Começava com uma frase de alerta de José Dirceu: “Sinto cheiro de Maria Luiza em São Paulo”. Maria Luiza Fontenele fora o azarão do PT nas eleições de 1985: chegou à prefeitura de Fortaleza, no Ceará, contrariando todas as expectativas.

Elmar Bones acompanhou por um dia cada candidato à prefeitura de São Paulo. Ouviu dezenas de eleitores e todas as lideranças partidárias. Percebeu, apurou, observou. Escreveu um texto carregado de emoção que falava principalmente da empolgação popular que cercava o líder metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva em passeatas pelas ruas de São Paulo. Quem lesse sua reportagem se convencia de que Luiza Erundina venceria as eleições, o que de fato aconteceu. Augusto Nunes comandava a redação do Estadão na época. Torceu o nariz para a previsão de Elmar Bones e providenciou para que o Estado aproveitasse quando muito dez linhas da reportagem. O texto de Elmar Bones foi salvo pelo Jornal da Tarde, que o publicou na íntegra.

Foi talvez a última iniciativa do gênero na imprensa brasileira. Os repórteres foram proscritos da cobertura das campanhas. Servem, quando muito, para fazer o registro diário de eventos banais, que não influenciam os resultados. Foram substituídos pelo Ibope, pela frieza dos números, pela assepsia das estatísticas. Uma pena.

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[Dirceu Martins Pio é ex-diretor da Agência Estado e da Gazeta Mercantil, atual consultor em comunicação corporativa]