Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Uma questão de coerência

Uma das características que se costuma cobrar de um grande jornal é a coerência editorial através dos tempos, independentemente do perfil e da ideologia de quem esteja no poder. Pelo menos este é o discurso apregoado por nós, defensores de uma imprensa livre e democrática. Mudanças editoriais podem ter muitas razões: transferência de controle acionário, subordinação a interesses conjunturais ou mesmo mudança de visão dos proprietários quanto à conjuntura política. Pode-se falar tudo sobre O Globo, menos que ele não tenha mantido a coerência política nos últimos 40 anos.

Um passeio pelas edições do jornal da família Marinho – a partir de uma montagem comparativa que circulou pelas redes sociais, assinada por Alexandre Mandarino – remete a uma manchete de 1968 peculiar, que simboliza os tempos da ditadura: “Exército adverte: trataremos arruaceiros como inimigos da pátria” (ver aqui).

 

paginas do Globo

 

O marechal presidente Costa e Silva ainda não assinara o Ato Institucional nº 5, o que só ocorreria em dezembro, mas o noticiário – não apenas do Globo, mas de diversos jornais conservadores – clamava por providências do governo militar. A expressão “arruaceiro” serve para desqualificar as manifestações de rua no centro do Rio, no percurso Candelária-Cinelândia, contra a ditadura civil-militar, que ignorava direitos constitucionais, detinha e sequestrava militantes da oposição e mergulhava o país em duas décadas de trevas. O verbete do dicionárioAurélio define arruaceiro como “aquele que faz arruaças, que arruaça, arruador”. A etimologia do vocábulo remete ao conceito de rua, o logradouro público onde se praticam arruaças.

Ainda na primeira página, abaixo da dobra, a referência às circunstâncias da morte do estudante paraense Edson Luiz de Lima Souto, 18 anos, no restaurante Calabouço, suavizava a versão do tiro proposital. O jovem secundarista, que trabalhava na faxina do restaurante estudantil, morreu vítima de um tiro a queima-roupa desferido pelo comandante da tropa da Polícia Militar durante invasão do Calabouço – em março de 1968 –, que ficava em frente ao aeroporto Santos Dumont. Pouco antes da invasão, os estudantes organizavam manifestação contra o aumento do preço das refeições.

“Foi de ricochete a bala que abateu Edson Luís”, anunciava O Globo, como se tentasse atenuar a intenção do oficial da PM.

Novos termos

Não são apenas quatro décadas que separam as mortes do estudante Edson e do pedreiro Amarildo. As circunstâncias e os locais diferem, assim como o contexto político. De semelhante, somente a sensação de que se trataria de algo casual e, portanto, corriqueiro.

Ao contrário, o assassinato de empresários ganha relevância. Em abril de 1971, a descrição da morte, por militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), do dinamarquês naturalizado brasileiro Henning Boilesen, em São Paulo, exalta a figura nacionalista do dono do grupo Ultragás, que cultivava o estranho hobby de assistir pessoalmente às sessões de tortura perpetradas pela Operação Bandeirantes (Oban), da qual ele era um dos principais financiadores.

O Globo Boilesen 001

 

“Foi, para São Paulo, um terrível pesadelo: quando rádios e televisões começaram a divulgar a notícia, toda a cidade foi tomada pelo espanto, o horror, a incredulidade. Henning Albert Boilesen, 54 anos, presidente da Ultragás, caíra nas ruas, vítima de selvagem atentado terrorista. Seu único crime, um profundo amor pelo Brasil, em cujo futuro confiava e para cujo progresso trabalhava com uma dedicação exemplar. (…) Metralhado covardemente pelas costas, caiu morto junto ao meio fio. Os terroristas aproximaram-se, para confirmar a morte e fizeram mais disparos em sua cabeça. A ação durou dez minutos e causou ferimentos de bala em outras duas pessoas: uma empregada doméstica e uma feirante que vendia maçãs”.

Nada sobre o envolvimento do empresário com grupos paramilitares de tortura no texto do jornal que, vale lembrar, nunca esteve sob censura prévia. O editorial cunhava expressões como “bandidos marxistas” e “cangaceiros marxistas-leninistas”, numa linguagem que deixa patente a associação entre desvio e ideologia.

A postura do Globo costuma ser a de apoio aos grupos no poder, não necessariamente ao governo, mas aos segmentos econômicos que controlam o capital e financiam a publicidade. Esta é a lógica capitalista que predomina desde os tempos de Randolph Hearst e Joseph Pulitzer, no final do século 19, nos Estados Unidos. Não existiria nada de escuso se o jornal não tentasse passar a versão de uma verdade absoluta e inquestionável. Mas é preciso admitir que praticamente todos os grandes jornais agem dessa maneira.

Quarenta e cinco anos depois da morte do estudante Edson Luiz e das manifestações estudantis que incendiaram o Ocidente, a partir de Paris, O Globo preserva uma coerência invejável no que diz respeito à condenação a manifestações que visam denunciar ações, omissões e desmandos das autoridades. A passeata – termo dos anos 1960 – que reuniu milhares de pessoas, entre elas professores da rede pública do estado do Rio, mereceu na edição de quarta-feira (16/10), uma foto de primeira página abaixo da dobra. Os atos de depredação ganharam mais destaque do que a manifestação dos professores. A direção de Redação optou pela condenação aos atos radicais que geraram conflitos entre manifestantes e a Polícia Militar. Os anunciantes e boa parte dos assinantes se sentem ameaçados com a atitude dos black blocs de quebrar lixeiras, orelhões e pontos de ônibus, e por isso se identificam com a decisão editorial.

Seria ingenuidade supor que os leitores tradicionais do Globo simpatizam com os black blocs. Não faz sentido um jornal que teceu loas a um empresário que financiava a tortura sob o manto do Estado apoiar manifestações de rua, muitas vezes violentas, contra as autoridades estaduais e municipais. Saem os “arruaceiros” e “cangaceiros marxistas”, entram os “vândalos” e “anarquistas”, mas O Globo continua o mesmo.

Educação de qualidade

O linguista russo Mikhail Bakhtin diz que a compreensão de qualquer enunciado é marcada por dois parâmetros: o tempo e o espaço. Também se poderia dizer: o lugar e a História. Muitos tendem a transformar a leitura de um jornal em um processo de catarse. Querem ler aquilo que gostariam de escrever. Sentem-se confortados e inteligentes quando se identificam com o que estampam a manchete e a foto principal.

Esquecem-se de que os meios de comunicação expressam uma visão parcial de mundo e esta visão é marcada pela luta de classes. As redes sociais, acessadas em grande maioria por leitores jovens, têm atuado como importante contraponto dessa visão de mundo conservadora. O conflito é saudável porque oferece uma nova versão dos fatos e, ao mesmo tempo, expõe ao público as eventuais imperfeições da narrativa da mídia tradicional. No entanto, é preciso reconhecer que os mesmos jornais que adotam um pensamento conservador trazem denúncias de arbitrariedades da polícia e de suspeita de corrupção do Estado, sem as quais a população seria incapaz de se insurgir. O cardápio de conteúdo oferecido na edição de qualquer grande jornal admite as mais variadas interpretações.

Análises apressadas e baseadas em juízos de valor que deixam de lado os diversos tons de cinza entre o branco e o negro tendem a provocar injustiças, como a sofrida pela pesquisadora e jornalista Sylvia Moretzsohn, minha colega de Universidade, nas redes sociais. Talvez seja eu o próximo.

Enquanto não vivermos numa sociedade em que todas as ideologias tenham espaço para expressar suas visões de mundo, os jornais darão margem a indignações. Uma das condições indispensáveis para que haja mais leitores, seja de impressos ou de qualquer outra plataforma, é uma educação de qualidade para a população, sobretudo a de baixa renda, justamente uma das reivindicações dos professores em greve. Enquanto isso não acontecer, a tendência é que sejamos mais tolerantes com o que a mídia informa, e menos com o que omite.

A página de O Globo sobre a morte de Henning Boilesen foi extraída do livro As manobras da informação – análise da cobertura jornalística da luta armada no Brasil (Eduff/ Mauad), 2000, do próprio autor.

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  João Batista de Abreu é jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense