Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A história de um delito

Antes da abordagem pretendida para o tema oferecido, cabe uma explicação para o fato de, na condição de colaborador habitual do OI, não haver, na edição anterior, comparecido com um artigo que se posicionasse criticamente a respeito da demissão de Alberto Dines, ato patrocinado pela direção do Jornal do Brasil.

Na verdade, foi uma escolha motivada pela junção estranha entre a prudência e a credulidade. A primeira atinava com a expectativa de possíveis desdobramentos que trouxessem à luz atos outros, capazes de afirmar a grandeza do vitimado e a pequenez dos executores. A segunda, talvez originada de um momentâneo estado de ingenuidade, alimentava a idéia da reversibilidade da decisão por parte dos atuais responsáveis pelo tradicional jornal. Infelizmente, nada aconteceu. Mais uma cabeça cortada num país que se sustenta em tronco e membros.

Afora as manifestações de solidariedade daqueles que preservam a dignidade, nada de especial decorreu do fato que, pelas suas características, atesta a prática de um delito. Demissões fazem parte da lógica que motiva as relações entre capital e trabalho. Sobre esse ponto, não há nada a destacar. Todavia, demissões outras existem que transcendem as estreitas vinculações entre as partes envolvidas para se tornarem reveladoras de algo bem mais amplo.

A demissão do Dines se inscreve nesse quadro, se compreendermos que foi executada uma sentença não exatamente contra alguém e sim contra um sistema de pensamento. A direção do Jornal do Brasil praticou um delito porque condenou o pensamento crítico. Partindo esta medida de um dos mais (ou não mais) históricos jornais do país, seu significado se torna emblematicamente revelador da gravidade de um modelo no qual estão em jogo nossas vidas.

No fundo, o episódio desnuda o simulacro da democracia vigente na realidade brasileira. Saibam os leitores que a penalidade da qual se reveste a demissão de Alberto Dines está disseminada em inúmeros outros setores da vida profissional: em universidades, colégios, hospitais e outros mais. Cada vez mais são raros os locais em que o exercício da crítica é encarado como prática de efeito depurador.

Ditadura dos benefícios e democracia dos interesses

Em sua expressiva maioria, a elite econômica do país, habituada a promover sua fortuna por processos desviantes, historicamente manteve a inteligência sob severo controle, exatamente porque nunca, de modo efetivo, precisou de cérebros dotados. A esperteza sempre deu conta dos lucros imediatos.

A cultura da esperteza, para continuar reinando, precisa conspirar sempre contra a lucidez crítica, que é da ordem da inteligência. Assim, a realidade brasileira é perpetuada como uma vasta senzala na qual habita, em regime de confinamento, a inteligência. Para tanto, independe a forma de poder constituído.

Colônia, Império, República e variantes significam a mesma coisa, no tocante a práticas estratégicas de controle e vigilância. O capital da ‘casa-grande’ comanda a ‘senzala’. O modelo desliza pelos diferentes modelos políticos.A ‘casa-grande’ sabe como se adaptar às diferenças. Seja na ditadura dos benefícios, seja na democracia dos interesses, a ‘casa-grande’ continua gerindo e controlando as pulsações da ‘senzala’.

O imaginário da elite econômica brasileira nunca deixou de ser escravocrata. Este perfil não se fortalece nem se enfraquece com ditadura ou democracia. Sua erradicação só é viável pela inversão dos papéis, isto é, a libertação da inteligência que inclui a capacidade inventiva, a criticidade ativa e o aprimoramento intelectual. Nenhum desses atributos, porém, vinga, a não ser por aventuras individuais, enquanto o Brasil não passar pela experiência da ‘rebelião da senzala’.

O dado preocupante é que cada vez menos se percebe no horizonte a sinalização dessa querência. A propósito do fato específico da demissão – pelas razões que a geraram – que ato de desagravo, salvo qualquer desconhecimento meu, mereceu da parte da ABI? Será que o mencionado órgão não vê no fato nenhuma necessidade para manifestar-se? Por outra, será que a ABI entende não se tratar de uma questão de sua competência por reconhecer que o Jornal do Brasil não é mais um jornal? É uma leitura possível.

Enfim, na lógica da ‘casa-grande’, a democracia dos interesses vai fazendo sua parceria com os métodos cultivados pela ditadura dos benefícios e herdados do imaginário escravocrata. Triste Brasil…

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro