Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A hora e a vez dos quadrinhos nacionais

Nós que fazemos histórias em quadrinhos vivemos um momento importante na história. Enquanto você lê o texto, nesse exato momento, em algum lugar de Brasília, circula o Projeto de Lei 6.581/06, que estabelece mecanismos de incentivo para produção, publicação e distribuição de revistas em quadrinhos nacionais. Ainda que existam pessoas contrárias à presença do Estado na indústria de entretenimento – como as HQs – a idéia pode dar o empurrão que faltava a muitos artistas independentes. Vejamos por quê.

Eu não conhecia o projeto, nem tampouco seu autor, o deputado Simplício Mário, do PT do Piauí. Até que, por curiosidade, encontrei sua página no site www.camara.gov.br e fiz download do projeto. Se o senhor em questão ama quadrinhos ou não, o importante está no documento que já passou por algumas etapas e agora, now, in this moment, aguarda parecer das comissões de Educação e Cultura, Finanças e Tributação e Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Ou seja, se não avançar por alguma fase da burocracia, game over.

Quem faz quadrinhos e gostaria de viver de sua arte precisa conhecer alguns pontos do projeto. O artigo 2º prevê que ‘as editoras deverão publicar um percentual mínimo de 20% de HQs de origem nacional’. Uma parte da classe acredita que, da mesma forma como acontece com outras artes, o investimento das empresas será feito nos grandes nomes já estabelecidos e com retorno financeiro garantido, em vez de apostar no novo talento. Pode ser, pode não ser. Mas cabe a nós sugerirmos esta mudança no projeto antes que vire lei.

Por um lado mais otimista, já que os lançamentos serão graduais – apenas 5% no primeiro ano de vigência da lei, 10% no segundo e assim sucessivamente –, levará quatro anos para atingir-se a cota de 20%. Uma analogia com a chamada ‘cota de tela’ (art. 55 da Medida Provisória 2.228-1 de 6/9/2001), que abre mais espaço aos filmes nacionais nas salas de cinema. Entretanto, a partir da promulgação da ‘lei dos quadrinhos’, os autores terão álibi para apresentarem seus trabalhos aos grandes editores que, se forem espertos, poderão perceber a grandeza e o potencial comercial de uma revista em quadrinhos.

Sigamos em frente. O artigo 4º é bacana: ‘Em se tratando de veículos impressos de circulação diária, semanal ou mensal, deverá ser observada a relação de uma tira nacional para cada tira estrangeira publicada’. Alguns veículos já fazem isso, outros não. Mas além da proporcionalidade são necessários mais incentivos para que os jornais cheguem a ter uma página (ou mais) de quadrinhos, como um dia foi O Globo, por exemplo. Antes de reformular seu projeto gráfico, o JB tinha mais de metade de página com artistas nacionais. Porém, perdeu a oportunidade de fazer uma seleção pública, como a Folha de SP, para novos ilustradores, quadrinistas e cartunistas. Porém, o Caderno B pode dar uma bola dentro se começar a debater o assunto em suas matérias de capa, como faz com o cinema e a indústria fonográfica.

Sonho

Outro artigo legal é o 5º, pelo qual o poder público implementará medidas de apoio para estimular a leitura em sala de aula, promover eventos e encontros de difusão do mercado editorial (imagine ter de novo a Bienal de Quadrinhos, como a do Livro), e a inserção de disciplinas práticas – como roteiro e desenho – no currículo de escolas e universidades públicas.

Como alguém ainda não se tocou de usar mais quadrinhos no material didático que o MEC compra aos montes todos os anos? Quanto mais cedo a criança conhecer uma HQ, recortar, folhear, rabiscar mais gostará de quadrinhos. Além de educar, que é uma das mais nobres tarefas do mundo, o país estará formando um novo público-leitor. Isso é importantíssimo se levarmos em conta que, nos últimos anos, a HQ perdeu espaço para TV, cinema, internet e videogame.

O artigo 6º é, do ponto de vista prático, um dos melhores. Diz assim: ‘Os bancos e as agências de fomento federais estabelecerão programas específicos para apoio e financiamento à produção de publicações em quadrinhos de origem nacional, por empresa brasileira, na forma de regulamentação’. Ou seja, será possível chegar, por exemplo, ao Banco do Brasil, ao BNDES ou à Caixa Econômica e se inscrever num Programa Pró-HQ para conseguir empréstimos e, por que não, apoio jurídico e institucional, para realizar seu sonho e lançar suas revistas.

Do hobby profissão

Viaje nisso. O mais difícil no lançamento de uma HQ é imprimir, distribuir e, principalmente, manter boa tiragem e periodicidade. A partir do momento em se tiver um plano de viabilidade do negócio (para não pôr dinheiro em algo fadado a dar errado) e algumas ‘bonecas’ do gibi comprovando que já existe roteiro, personagens e páginas já rascunhadas, é só mandar para a gráfica, distribuir em variados pontos de venda e tentar viver do que se gosta. Existe algum mal nisso? Se o músico também adoraria se sustentar da sua própria criação, por que o quadrinista tem que viver de trabalho free lancer desenhando apenas as idéias dos outros?

Ainda nesse artigo, o 2º parágrafo está OK (‘os projetos financiados com recursos públicos deverão destinar percentual de, no mínimo, 10% da tiragem a bibliotecas públicas’), porque é um prazer ter HQs ao lado de livros. O 1º parágrafo, porém, propõe: ‘Será dada preferência àqueles de temática relacionada à cultura brasileira’. O grande problema disso é cair no nacionalismo que rege os editais do Ministério da Cultura. Ou seja, a prioridade será para HQs de folclore, samba etc. e tal. Nada contra. Mas precisamos discorrer com o o deputado Simplício sobre o que chamaremos de cultura brasileira.

Basicamente é isso. Li o projeto do deputado piauiense. Para quem gosta e/ou faz quadrinhos, é melhor uma lei que nos proteja do que nada. É possível ser íntegro e independente, mas sem dinheiro não se publicam revistas. Em papel, claro, antes que apareça um entusiasta da web dizendo que a rede é a salvação. Para que ela seja aprovada é necessário que a própria classe esteja unida em prol dela, e não contra. Sem pressão externa, é bem possível que o projeto tenha sua votação adiada por muito tempo. Ou quem sabe até esquecido numa gaveta de arquivo da capital federal? A hora é agora, vamos discutir o que pretendemos para fazer do hobby profissão, e conquistar um futuro com final feliz.

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Desenhista, professor e organizador de eventos (Niterói, RJ)