Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A imprensa, entre o iluminismo e o pós-modernismo

Faz pouca ou essencial diferença, para os destinos da imprensa tradicional, a colheita de bons indicadores anunciada recentemente pela Associação Mundial de Jornais, dando conta de que a circulação de diários impressos cresceu 9,95% no mundo entre 2001 e 2005, e, especificamente entre nós, o anúncio da Associação Nacional de Jornais, de que a circulação cresceu 6,5% no Brasil, em 2006.

A análise dos números, embora auspiciosa, não circunscreve todo o espectro da crise que, na primeira década da internet, provocou intensos terremotos no setor. O crescimento da circulação se deve a fatores pontuais, como o período de crescimento econômico estável sobre um painel de crises agudas e sucessivas nas áreas política, social e ambiental. Eventos de grande repercussão, amplificados pelos novos meios eletrônicos, ajudam a aumentar o interesse pela mídia em geral – o atentado, ou o escândalo, noticiado o dia inteiro na televisão, induz à busca da informação consolidada e da imagem estática impressa em papel.

Nesse período, em países como o Brasil, Índia, China, África do Sul, Rússia e antigos satélites soviéticos houve uma ampliação das classes médias, embora num padrão de renda um pouco inferior ao da década anterior. Essa classe emergente de antigos bolsões de pobreza passou a se interessar por algo mais do que a própria sobrevivência. E as informações que ajudam a consolidar seu novo status social, apesar de tudo, ainda são encontradas nos jornais diários.

Onde a coisa pega

Esses indicadores podem fazer pouca ou nenhuma diferença se, como parece estar acontecendo, a imprensa simplesmente partir para as comemorações mantendo as mesmas estratégias dos últimos anos. Essas estratégias, como regra geral, se limitam aos aspectos mercadológicos do produto jornal. Só muito raramente, por exemplo, os diários lançam mão de algo mais do que os fóruns online como atrativo complementar para preservar o interesse dos leitores. As ações de marketing são tímidas e conservadoras, comparando-se, por exemplo, com o que faz a indústria de entretenimento, para não sair do ambiente midiático.

Mas os mesmos indicadores podem se revelar cruciais para a geração de estratégias sustentáveis, capazes de oferecer suporte para uma retomada de posicionamento da imprensa na disputa pelo tempo e pelo interesse dos cidadãos. Em primeiro lugar, é preciso devolver às redações a importância que historicamente tiveram nos melhores momentos dos jornais. Sem investir em talentos, e mantendo as redações à beira do colapso, nenhum jornal terá fôlego no longo prazo para aproveitar a boa maré e nadar até a margem.

Há uma enorme variedade de oportunidades de melhoria em todos os campos da gestão das empresas de comunicação. E, de todos os sub-setores, o dos jornais é claramente aquele que mais carece de um choque de inovação.

Mas não é apenas na gestão que a coisa pega. A linguagem, o desenho, a relação com os meios eletrônicos, a captação da evolução de interesses e necessidades do leitor, o relacionamento institucional e a geração interna e externa de conhecimento são outros elementos essenciais nessa busca da sustentabilidade.

Mudar a visão

No entanto, creio que a mudança mais visceral e mais necessária está na alma dos jornais. Trata-se do desenvolvimento de uma visão de mundo mais abrangente, compatível com os tempos que vivemos e que se tornam cada vez mais claramente um período de rupturas.
Os jornais – a mídia em geral, mas os jornais mais evidentemente – estão emparedados entre duas visões de mundo obsoletas e incapazes de oferecer instrumentos para a interpretação adequada do mundo em que vivemos. Os jornais estão limitados, de um lado, pelo iluminismo, e de outro, pelo pós-modernismo.

De um lado, em geral nos níveis mais elevados de decisão, os jornais são dominados pelo espírito ‘iluminista’ que, transposto do ambiente acadêmico, encontra na mídia a atmosfera de poder que conduz àquilo que alguns estudiosos chamam de ‘fundamentalismo racionalista’. De outro lado, em geral nos domínios de repórteres, editores e críticos, predomina o viés pós-modernista, típica construção cultural que representa a mais pobre interpretação do mundo globalizado.

O ‘iluminismo’ é que define a tentação manipuladora e reducionista da mídia. O pós-modernismo é a causa da evidente falta de compromisso com a História e com a responsabilidade social – no sentido do engajamento do indivíduo no complexo de relações com a diversidade cultural e política na qual está (mas nem sempre se sente) imerso.

Ambas as visões de mundo são conservadoras e inadequadas para uma interpretação aceitável do mundo em transição em que vivemos. Elas representam empecilhos para que os jornais, aproveitando o bom momento de mercado, venham a se consolidar como instituições relevantes e a se beneficiar, por longo prazo, da confiança da sociedade. Manifestações recentes de freqüentadores deste Observatório sugerem que muitas pessoas esperam da imprensa uma visão de mundo mais abrangente, mais desafiadora e inovadora.

Que falem os leitores.

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Jornalista