Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A mídia reagiu à altura à baixaria do governo

O porta-voz do Planalto, jornalista André Singer, escreveu na Folha de S.Paulo da quinta-feira passada que o governo reagiu ‘à altura’ da reportagem do agora afamado Larry Rohter, ao exumar uma lei da ditadura para expulsá-lo do país.

Em defesa da baixaria, que ele próprio estimulou o governo a perpetrar, no papel de segundo violino do ministro da Comunicação do Governo, Luiz ‘Publiquem o lado positivo das coisas’ Gushiken, o porta-voz exumou por sua vez o mantra da ‘liberdade com responsabilidade’, tão caro aos gorilas fardados e paisanos do regime militar.

(Entre esses últimos, o ministro Armando ‘Nada a declarar’ Falcão, a quem em boa hora O Estado de S.Paulo foi perguntar se apoiava o arreganho autoritário do governo Lula; claro que apoiava.)

Tendo se mostrado de alma inteira ao país, Singer e Gushiken agora se entendam com as suas biografias. Disso estão dispensados, por tudo que se soube do vergonhoso episódio, o ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos e, com alguma boa vontade, o assessor de imprensa do presidente, Ricardo Kotscho.

Mas o que este leitor registra com satisfação é que, salvo um ou outro caso de stalinismo tardio, a mídia brasileira, esta sim, reagiu à altura do que Otavio Frias Filho chamou na Folha ‘decisão cretina’, e o Estado, ‘monumental estupidez’, transpondo para um editorial o comentário de um ministro do Supremo que não quis se identificar, ouvido pela Folha. (A expressão foi também reproduzida por Warren Hoge no New York Times).

‘Primeira dose’

O leitor, principalmente o da Folha, teve tudo a que tem direito: extensas e bem apuradas matérias sobre os bastidores do vexame e as movimentações para levar o governo a reparar o estrago, além de análises e juízos de valor manifestados de peito aberto por jornalistas respeitáveis (e responsáveis, agora no bom sentido).

À sacada do Estadão ouvindo Armando Falcão, por exemplo, a Folha replicou com uma entrevista com o único jornalista estrangeiro já expulso do país – François Pelou, da agência France Presse, banido pela ditadura em 1970.

E este Observatório, com a agilidade dos jornalistas escolados, tratou da expulsão no seu programa semanal de TV, na própria terça-feira em que foi decretada. No ar, o assessor Ricardo Kotscho confessou que se opusera à violência, mas, como membro do governo, cabia sustentá-la.

Do presidente, em especial, a mídia divulgou palavras que – a serem verdadeiras, como parecem ser – escancaram o seu despreparo para a função. A saber:

** por trás da matéria de Rohter estava uma ‘trama’ urdida pelo PSDB;

** a origem das críticas ao governo, no Brasil e no exterior, é o ‘corporativismo’ da imprensa;

** ‘f…-se a Constituição’ (que impede a expulsão de estrangeiros casados com brasileiros).

A imprecação foi divulgada na quinta-feira pelo jornalista Ricardo Noblat em seu blog. Ao acrescentar, pouco depois, ter recebido telefonema do Planalto desmentindo o fato, Noblat assegurou que duas fontes o confirmaram – uma delas, na condição de testemunha.

Dos homens do presidente, o colunista Clóvis Rossi, da Folha, fez o epitáfio perfeito:

‘Se foi alguém do círculo íntimo de Lula [quem instigou a decisão], é rezar para que peça demissão, porque visivelmente não serve nem para passar pela calçada de um palácio de governo. Vale idêntico raciocínio para todos os que não se opuseram. Que horror’.

O texto de Rossi saiu na sexta-feira, abaixo de um cartum de Angeli que mostra um Lula gorilesco e invocado, entre as palavras ‘Poder’, ‘Aprecie com moderação’. Coisa de prêmio.

No dia seguinte, o jornal colocou na primeira página (embora abaixo da dobra) a foto de uma faixa contra o governo Lula com um recorte. A legenda informa que o pedaço foi tirado pela segurança do presidente. Nele estava escrita a palavra ‘autoritarismo’.

E, no domingo, ainda na Folha, Josias de Souza, numa coluna intitulada ‘Alcoolismo marca três gerações dos Silva’, transcreve numerosos trechos sobre o problema do livro Lula – o filho do Brasil, a biografia do então presidente eleito, de autoria da jornalista Denise Paraná, publicado pela editora Fundação Perseu Abramo, do PT, em dezembro de 2002.

Lula dissera a Denise o que Josias usou para fechar o texto:

‘A verdade é o seguinte: política é como uma boa cachaça. Você toma a primeira dose e não tem mais como parar, só quando termina a garrafa’.

Comentário do colunista: ‘Tintim.’

Sal nas feridas

Por fim, os jornais não compactuaram com a versão oficial para o recuo do governo de que Rohter se retratara. Destacaram que o requerimento dos seus advogados não desmente a reportagem, apenas consigna que ele não teve intenção de ‘ofender a honra’ do presidente.

E destacaram que a nota em que o NYT se manifesta ‘muito satisfeito’ com o desfecho do caso considerou ‘correta’ a reportagem, como o editor-chefe Bill Keller havia dito no começo da semana ao embaixador brasileiro em Washington, Roberto Abdenur, e deixou explícito que de nada tinha a se desculpar ou a retratar.

Ironicamente, ou para não esfregar sal nas feridas do Planalto, a matéria final sobre o episódio, publicada domingo e assinada por Warren Hoge (antigo correspondente do jornal no Brasil), omite a não retratação do NYT. [Fechado às 12h50 de 17/5]