Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Café com um presidente “absolutamente à vontade”

É uma questão bizantina estabelecer se o café da manhã de hora e meia do presidente Lula com 11 jornalistas de primeiro time da imprensa e da televisão, na quinta-feira (1/3), foi uma ‘conversa informal’, na definição palaciana, ou uma entrevista coletiva, o que de fato foi, embora com participação restrita e sem que os entrevistadores pudessem gravar perguntas e respostas.


Café ou coletiva, o fato é que os convidados podiam perguntar o que quisessem, o anfitrião respondeu a tudo, os jornais deram amplo espaço ao pingue-pongue – e, ainda assim, ficou um problema.


Partindo do princípio de que jornalista não vai a palácio para fazer desjejum, mas para confrontar o inquilino de turno com os assuntos de interesse público mais difíceis do momento, o fato é que o café-entrevista estava fadado a ser, como de fato foi, o que os gringos chamam uma ‘no win-situation’, um embate que uma das partes não tem como ganhar.


Em primeiro lugar, por mais que os jornalistas queiramos ter todas as oportunidades do mundo de sabatinar os poderosos para deles tentar extrair o que houver de podre nos seus poderes – pela confissão a que não se possam furtar ou pela descoversa tão ou mais reveladora de que as coisas não são exatamente o que eles tentam impingir ao distinto público –, a dura realidade é que o(a) sabatinado(a) precisa ser muito, mas muito perna-de-pau, para sair batido do jogo.


Descontruam-se, com perdão pelo palavrão, tantas conferências de imprensa de presidentes e primeiros-ministros quantas se queiram, pelo mundo afora, e se verá que a própria estrutura do acontecimento, além das circunstâncias que o precedem, favorece o conferencista.


Eles contam com alguns dos melhores consultores de comunicação que o dinheiro pode comprar para saber, com margem mínima de erro, não só o que lhe perguntarão os entrevistadores – o que, aliás, não costuma ser mistério nenhum – mas quais tenderão a ser as suas réplicas às respostas que os consultores os treinaram para dar.


Letra e música


Segundo, os entrevistados sabem mais sobre os entrevistadores – geralmente o pessoal credenciado na sede do governo – e os órgãos para os quais trabalham, do que estes sobre aqueles. A menos que a autoridade tenha o hábito de comer criancinhas no café da manhã, ela saberá cultivar uma relação de cordial para mais com a turma.


Chama-os pelo primeiro nome, trata-os por você, quando não pelo apelido (se não for pejorativo) e não perde ocasião de mostrar interesse, geralmente fingido, sobre coisas de suas vidas pessoais de que a assessoria palaciana o mantém informado. Dá no seguinte, por exemplo: ‘E aí, Toninho, quando vai ser o casório?’ Ou, ‘como é, quando nasce o netinho?’ – e infindáveis variedades do gênero.


O mais íntegro e desconfiado jornalista não seria humano se, apesar desses agrados e dos eventuais tapinhas nas costas, pulasse na jugular do político na primeira ocasião em que ele baixasse a guarda. Bem pensadas as coisas, o que surpreende nos resultados das coletivas é não serem ainda mais favoráveis ao entrevistado do que em regra são.


E tem os ‘pequenos detalhes’: conquanto coletiva seja a entrevista e os perguntadores sejam escolhidos por sorteio – o que não é o caso, por exemplo, nos Estados Unidos – contraria a lei das probabilidades que as perguntas mais pontiagudas dos jornalistas mais azedos sejam feitas naquele momento do espetáculo quando a tigrada está com a adrenalina a toda.


Que dizer então – e aí, desculpem a demora, se começa a visitar o café de Lula com a imprensa – quando o charme do entrevistado, ou como se queiram chamar os seus atributos de convivialidade e simpatia, é tamanho que ele é capaz de ‘encantar uma serpente’?


Foi o que disse um dos seis comandantes militares (os três substituídos e os três substitutos) que jantaram com Lula na semana passada. A frase e a fonte genérica saíram na coluna de Ancelmo Gois, no Globo.


E que dizer quando o encantador de serpentes, nas suas próprias palavras, se sente ‘absolutamente à vontade’? Lula assim se declarou num contexto específico – ao responder a uma pergunta sobre a condução da reforma ministerial.


Mas, sabem todos quantos o freqüentam e todos quantos ouvem ou lêem o que ele tem falado em público, com a preocupação de registrar não só a letra, mas também com a música das palavras, por assim dizer, que o homem está, sim, ‘absolutamente à vontade’.


Café pelando


Aliados (de perto) e adversários (à distância) concordam que, ‘nunca antes na história deste país’, Lula esteve tão leve, livre e solto. Isso – e cada qual julgue como queira –, apesar do PIBinho e do banditismão.


O Lula que os seletos comensais do Planalto – os ‘meninos’ e ‘meninas’, como o presidente os chamou – encontraram na manhã de 1º de março foi descrito em editorial do Estado de S.Paulo desse mesmo dia com as seguintes palavras:




‘Isso [a sua imensa popularidade e a não menor aprovação ao PAC, registrada em pesquisas] o credencia a recorrer com incontida desenvoltura ao seu baú sem fundo de meias-verdades e embromações que formam o que já se chamou a sua ‘quase-lógica’. […] A mágica não funcionaria se lhe faltasse a capacidade de persuasão que soube tornar indissociável de sua própria figura e que se realimenta do próprio palavreado da sua esperta retórica. A mensagem do presidente, a rigor, é ele mesmo – com a vantagem de ninguém lhe fazer sombra no palco.’


Pode-se concordar ou discordar das acusações do editorial sobre as meias-verdades e embromações. Mas tudo mais parece uma avaliação plausível.


Em tempo: Lula não está, ou pelo menos aparenta não estar nem aí para os seus críticos.


Mesmo se estivesse ou se aparentasse estar aí para eles, isso não o impediria de falar aos jornalistas um monte de coisas passíveis de crítica ou contestação – mas, por se tratarem de conceitos genéricos, não se prestam para pegar no pé do presidente durante uma coletiva.


Quando ele diz, por exemplo, que ‘violência, muitas vezes, é uma questão de sobrevivência’, ou que, em outras décadas, a relação do Brasil com os Estados Unidos foi de ‘subserviência’, nenhum repórter irá querer cortar o fluxo da entrevista para discutir com o presidente a sociologia da violência ou a história do relacionamento entre o Brasil e os EUA.


Mas os colegas estiveram à altura do ofício no único momento realmente quente da entrevista.


Não, não é aquele que renderia manchetes em todos os jornais no dia seguinte, exatamente como Lula decerto desejava e previa, quando disse que ‘a equipe econômica está blindada por seu próprio sucesso’ – como se alguém minimamente informado imaginasse que o presidente estaria para defenestrar o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles.


[Quem pagou o pato pelos juros altos foi o diretor de Política Econômica do BC, Afonso Bevilaqua, cuja demissão, consumada na mesma quinta-feira, era, há tempos, pule de 10.]


O momento em que o café ficou pelando foi quando se perguntou a Lula se estaria a fim de um terceiro mandato.


Modalidade e circunstância


A sua primeira reação levou a entrevista ao ponto de ebulição, mantidos o respeito e a civilidade do encontro.


Quando os jornalistas ouviram-no dizer que tal hipótese era ‘muito improvável e inexequível’, fizeram como que um coro para atalhar que isso não é sinônimo de impossível.


Mereceriam ser demitidos se deixassem as coisas por isso mesmo e mudassem de assunto. Tendo feito o que lhes competia, no entanto, o Brasil ficou sabendo que o presidente, embora ache que ‘nada é impossível’, acha também que ‘não tem hipótese’, porque seria ‘brincar com a democracia’.


Uma das ‘meninas’ presentes à entrevista, Eliane Cantanhêde, escreveu na sua coluna da Folha de S.Paulo, no dia seguinte, sob o título ‘Palavra de presidente’:




‘Palavras têm força e costumam ser cobradas. O presidente, ontem, assinou um atestado antiterceiro mandato que vale como documento. E não é daqueles de Palocci e Serra, que assinaram e depois rasgaram o compromisso de não largarem suas prefeituras em Ribeirão Preto e em São Paulo para assumir ou disputar novos cargos. Desta vez, Lula deixou muito claro que foi eleito e reeleito de acordo com a Constituição e classificou de antidemocrático disputar o terceiro mandato […] Lula está moralmente impedido de fazê-lo.’


‘Conversa informal’ ou ‘entrevista coletiva’, como se queira, foi o que seria realista esperar, dentro das limitações da modalidade e na circunstância de que Lula, além dos seus atributos pessoais e biográficos, tem ‘a vantagem de ninguém lhe fazer sombra no palco’, como até o Estadão reconhece.