Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Dalmo Dallari e o espetáculo da CPI


Alberto Dines – Hoje [26/7/05] nós tivemos o depoimento de Renilda de Souza na CPI, mulher de Marcos Valério. Como o senhor vê esse depoimento? Ele era realmente necessário? A CPI não está virando um show inquisitorial? Porque na verdade ela estava lá apenas porque é cônjuge, tem conta-conjunta e comunhão parcial de bens. Ela realmente não tinha nada a ver com o interrogatório, inclusive não sabia, e o pouco que ela disse a respeito do ex-ministro José Dirceu fatalmente já apareceu e vai aparecer. Não está havendo um certo excesso inquisitorial nessa CPI?


Dalmo Dallari – Eu diria que há realmente um excesso inquisitorial. Alguns dos membros da CPI não escondem que são partidários, que são parciais. São verdadeiros inquisidores. Foram lá para agredir e às vezes agredir grosseiramente quem está depondo. Hoje, ainda, ocorreu um fato desse tipo, mas além disso verifica-se também ou um despreparo muito grande ou uma despreocupação com a responsabilidade, porque muitas das perguntas já haviam sido feitas antes. Muitas delas tinham respostas mais do que óbvias. Como você disse, ela participa nominalmente de uma série de empresas, mas não participa da administração e nem freqüenta as empresas, mas isso já tinha sido deixado claro talvez meia hora depois de iniciados os depoimentos, e no entanto ficou-se lá durante muitas horas repetindo perguntas, perguntando coisas que nada tinham a ver com o objetivo da CPI, de maneira que de fato não há nenhuma justificativa para um interrogatório ou uma inquisição desse tipo.


A. D. – Parece que está havendo uma evolução da própria CPI. Ela está ganhando poderes de polícia, quase, de repente ela pode dar voz de prisão, de repente entram advogados em cena quando um inquérito deveria ser uma coisa mais espontânea; o STF dá uma sentença que permite não dizer a verdade ou abster-se; em suma, eu queria que o senhor analisasse essa transformação da CPI sob a ótica de um grande jurista.


D. D. – Em primeiro lugar, eu acho que há uma compreensão incorreta em relação ao que seja uma CPI e seus objetivos. Talvez até a imprensa tenha uma certa responsabilidade nisto quando usa a expressão ‘a CPI termina em pizza’. Quer dizer, a idéia é essa, a CPI tem que terminar com a prisão de alguém – e não é isto. A CPI é uma comissão de inquérito, e como diz a própria Constituição, inquérito sobre fato determinado, sobre um fato isolado ou um conjunto de fatos. Por exemplo, uma CPI sobre a situação dos presídios brasileiros. Isso seria perfeitamente possível, está dentro dos objetivos constitucionais e tem evidente utilidade. Neste caso, essa CPI foi criada para apurar o fato de corrupção nos Correios, então ela deveria concentrar-se em fatos, em como ocorrem os fatos, ou no levantamento dos fatos e suas práticas, para no final oferecer soluções para dizer o que está errado, o que pode ser corrigido, o que é uma distorção decorrente da desonestidade de servidores, funcionários ou dirigentes, ou o que é falha institucional, falha de organização.


Então, a CPI deveria procurar mais objetividade, e o que nós estamos vendo é a CPI como um jogo de acusações e de defesas, de exibicionismo, mas presa sempre a pessoas. Eu acho que essa é uma distorção e daí aquele temor da prisão que levou inclusive a pedidos de hábeas-corpus. De fato aqui também eu vejo um equívoco e uma distorção grave. A Constituição prevê a criação de uma CPI para apuração de fato determinado. Então em uma CPI não há réu, em uma CPI não há acusado, todos os que comparecem lá são testemunhas que vão depor para a apuração dos fatos. Então não haveria razão para que se fizesse, como se fez, essa distinção ‘eu quero depor como acusado para ficar livre da acusação de crime de falso testemunho’.


Na verdade, o Código Penal prevê expressamente o direito de calar e isso já foi feito muitas vezes, decidido pelo Supremo Tribunal, e agora o ministro Jobim [Nelson Jobim, presidente do STF] reafirmou que qualquer pessoa que vá prestar depoimento tem o direito de calar, e no caso da testemunha há uma previsão expressa desse direito de calar no Código de Processo Penal. A testemunha não é obrigada a falar sobre fato que possa lhe causar algum dano. Então, de fato, este problema de risco de prisão é uma distorção. Eu acho que se a CPI fosse objetiva, se ela se concentrasse na apuração de fatos para oferecer soluções, ela seria muito mais produtiva e útil, não haveria tamanho desvio e não haveria evidentemente tanto espetáculo.