Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Do besteirol dos feriados às suspeições sobre o UFC

Prestes a esgotar a sua capacidade de fazer estardalhaço, nossos mediadores entregaram-se nos últimos dias ao desvario do superlativo: tapetaço,toplessaço,beijaço.Com o aumento do calor e as tentações de praia logo virá o cangaço (abuso de cangas no lugar de vestidos), a volta às aulas trará o engarrafamentaço,buzinaços e, certamente, o quebra-quebraço.

Viciados na contrafação do jornalismo – o desbunde, o exagero, a promoção de modas e manias – os valentes defensores do interesse público não sabem o que oferecer em troca. No Natal dos anos anteriores não se importavam em estimular o consumismo, agora, com a carestia, amainadas as vocações de camelô, o besteirol busca novos formatos.

Como monumento ao jornalismo varejista caiu do céu o noticiário sobre a última exibição da abjeta palhaçada que atende pela sigla MMA-UFC. É possível que a dupla fratura sofrida pelo histriônico Anderson Silva não seja uma empulhação como a maioria dos eventos neste gênero de espetáculo. Mas a invenção deste “fenômeno” desportivo é pura tapeação. Jogada comercial no qual os principais veículos do país engajaram-se com entusiasmo, esquecidos da sua missão, históricas rivalidades e identidades.

Urgência e clareza

Chama a atenção do observador minimamente atento que as fotos publicadas na segunda-feira (30/12) nas primeiras páginas dos jornalões brasileiros, mostrando o suposto momento em que o pugilista brasileiro teria partido a tíbia e a fíbula, sejam TODAS assinadas por Janie Kamin-Oncea, do USA Today, jornal americano de quinta categoria sem a menor credibilidade.

Aquele foi mesmo o momento da fratura? Não houve colaboração do mágico Photoshop? E por que Anderson não está urrando de dor se o seu pé já está aparentemente partido? A dor só veio depois?

Por que esconderam na página interna a foto – mais dramática e mais veraz – de David Becker, da Associated Press, secular e respeitável agência de notícias internacional? A AP estava ali apenas para salvar as aparências e por isso não pode aparecer nas primeiras páginas?

A cobertura em pool não lança suspeições por todo lado? E se a suspeição envolve as principais empresas jornalísticas do país pode-se confiar no senso de responsabilidade da nossa imprensa?

Alguém precisa desfazer essas dúvidas. Com urgência e muita clareza. Em bom português ou em inglês. Em Las Vegas, Miami ou São Paulo. Caso contrário o negócio do UFC desaba e com ele uma das mais importantes instituições republicanas.

Distanciamento crítico

O debate ensaiado pela Folha de S.Paulo na edição de segunda-feira (30) não satisfaz. O veemente texto de Ricardo Melo na seção política (pag. A-6, ver aqui) colocando em dúvida o caráter esportivo do espetáculo não questiona a Folha. Este Observatório vem questionando TODOS os parceiros do negócio há mais de um ano (ver “A indústria decidiu naufragar”, “O espetáculo da violência” e o vídeo do programa de TV do OI dedicado ao assunto).

O pretenso contraditório publicado na seção esportiva da Folha (pag. B-7) e assinado pelo enviado especial a Las Vegas comprova os interesses do jornal: “Mesmo sem Anderson Silva, UFC monta calendário cheio no Brasil… País terá no mínimo sete eventos em 2014” (ver aqui).

Como foi montado este calendário sem Anderson Silva se ele foi ferido horas antes?

Como se não bastassem tantos indícios de parceria empresarial, o jornal acrescentou um texto assinado pelo ex-boxeador olímpico brasileiro, Servílio de Oliveira, que se confessa próximo do esporte. “Hoje tem muita gente aplaudindo o MMA. Há quem não goste. Mas se as pessoas contra fossem maioria, o esporte não atingiria tamanha popularidade” (ver aqui, grifo do OI).

Esta popularidade, nobre atleta e desportista, é que precisa ser investigada. Ela foi montada artificialmente, num conluio empresarial com a participação de alguns astros do nosso jornalismo e liderado pela fabulosa Rede Globo, uma das maiores especialistas do mundo em armação de popularidades.

A Folha, cuja independência subentende um mínimo de distanciamento do Grupo Globo, não pode participar deste negócio de forma tão ingênua. Dá na vista.

No último fim semana de 2013, no auge da temporada do jornalismo de feriado, nosso Quarto Poder atrapalha-se com o mesmo pontapé que tirou Anderson Silva do octógono.

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EM TEMPO (2/1, às 18h50)

Da arte de forçar a barra

Quanto mais se tenta apresentar com naturalidade o noticiário sobre Anderson Silva mais avultam as suspeitas sobre a convergência de interesses da grande mídia com os promotores americanos do espetáculo UFC-MMA.

Na quinta-feira (2/1) foi a vez do Globo, em página inteira disfarçada na seção de “Ciência” (pág. 25) sob o verbete “Natureza Humana” e uma enorme manchete em seis colunas: “Prazer na desgraça alheia”. Laranjada autêntica. Dominando a página, a imensa foto de Anderson Silva urrando de dor com o pé em primeiro plano evidentemente fraturado (clicada por David Becker, da AP, e não pela fotógrafa “oficial” do certame, do quadro de profissionais do parceiro USA Today).

O maciço e elaborado texto assinado por Christie Ashwanden do prestigioso New York Times não fala uma única vez em Anderson Silva! Quando menciona nomes, relembra o dramático tombo moral do ex-campeão de golfe Tiger Woods (cuja foto aparece secundariamente). Um pequeno texto complementar, anônimo, menciona no título “Anderson Silva, o otimismo e memes” para justificar o uso da sua foto. Na página seguinte, de Esportes, também anônima, notícia otimista tentando mostrar que está tudo bem com o lutador brasileiro.

Com ele pode estar tudo bem, o que não está bem é a imagem da indústria jornalística do Brasil hoje transformada ostensivamente em indústria do entretenimento. (Alberto Dines)