Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A mediação indispensável

Quando as grandes empresas jornalísticas brasileiras começaram a manifestar publicamente sua preocupação quanto ao futuro do jornal impresso, diante das possibilidades oferecidas pela internet, o então chefe de redação do New York Times, Warren Hoge, convidado para o I Fórum Folha de Jornalismo, sintetizou numa frase a importância do trabalho da imprensa: dar ao público aquilo que ele não sabe que precisa.

“No futuro, o leitor, em vez de comprar o New York Times ou a Folha, liga o computador de manhã e pede a informação que ele quer. O preço das ações que tem, o placar de algum jogo, alguma informação sobre a profissão dele. E chega. Se isso acontecer, vão roubar de nós, editores, o direito, o poder e o desejo de levar ao leitor o que chamo de accidental encounter, ‘eu ofereço a você notícias que você não sabe que quer’” (Folha de S.Paulo, 22/10/1993).

Isso foi há 19 anos. Na época, a preocupação, que persiste, era com a sobrevivência do meio impresso, mas a frase tem um sentido transcendente que aponta a relevância do jornalismo, de modo geral e independentemente do meio ou suporte em que seja realizado, como mediador e referência de credibilidade para o público.

Reafirmar esse papel é essencial agora que a notícia sobre o rompimento dos grandes jornais brasileiros com o agregador de notícias Google News fizeram retornar comentários sobre a perda de importância da imprensa tradicional (ver, neste Observatório, “O ambiente das leituras instantâneas“ e “Quem é o leitor?“): a expansão da internet teria reduzido a necessidade da mediação jornalística porque os indivíduos, familiarizados com a tecnologia e “imersos em informação”, poderiam decidir por si próprios o que vale a pena saber.

Ora, é exatamente por estarem imersos em informação – ou, talvez melhor dizendo, em apelos da mais variada índole nessa Babel virtual – que a mediação se torna ainda mais necessária.

Em torno do próprio umbigo

Há pelo menos duas décadas, a promessa da nova mídia acenava com a possibilidade de informação personalizada, de modo que o leitor montasse seu próprio jornal. Partia-se, portanto, da ideia de que as pessoas já sabiam o que queriam, e sabiam onde encontrar. Isso significava na prática o estabelecimento de um círculo vicioso que se revelava o contrário da diversidade anunciada: o público, cada vez mais segmentado, tenderia a formar guetos fechados em torno de seus próprios interesses.

Paralelamente, a possibilidade de qualquer um publicar qualquer coisa, desde que tivesse acesso à tecnologia digital, fez surgir a hipótese do fim do jornalismo tal como o conhecemos, elaborada por uma série de autores – especialmente norte-americanos – apressados em alardear o maravilhoso reino do indivíduo-repórter, que constituiria ele mesmo a sua própria mídia. Bem de acordo, aliás, com a cultura do do it yourself própria da sociedade norte-americana, e que se dissemina fortemente em tempos de globalização, a despeito de toda a crise.

Num de seus inúmeros livros críticos a esse processo despolitizador (Em busca da política, Jorge Zahar, 2000), Zygmunt Bauman falava da perda do lugar clássico dos intelectuais, esses “guias espirituais que pretendem tornar as pessoas diferentes do que são ensinando-lhes coisas que elas não aprenderiam por si mesmas e antes de mais nada ensinando-lhes que é útil para elas aprender essas coisas”. A aparente perda de relevância dos jornais se encaixa perfeitamente nesse raciocínio.

Não é casual, aliás, que nesse quadro ressurja a valorização da notícia de proximidade (ver “O ‘buraco de rua’ ganha nova perspectiva na internet“) em detrimento daquela que pode alargar a compreensão do leitor sobre seu lugar no mundo: o buraco de rua na esquina é mais importante que a crise na Grécia, porque afeta mais quem mora nas imediações. Nada simboliza melhor a lógica estrita do senso comum, que se preocupa exclusivamente com o imediato e ignora as engrenagens que fazem o mundo ser tal qual é.

Mas, afinal, sobre o quê poderia informar o indivíduo-jornalista, senão sobre a constatação da existência do buraco de rua?

Credibilidade como referência

Entretanto, talvez a perda de relevância dos jornais não seja tão intensa quanto parece. Pesquisa recente do Pew Research Centermostra que, depois dos jornais impressos e do rádio, também a TV está decaindo na preferência do público, que vem progressivamente optando por se informar por intermédio de redes sociais. Porém, pelo menos aparentemente, não se trata de buscar outras fontes, mas de acessar as mesmas fontes por outros meios. O que não surpreende, porque é corriqueira, nessas redes, a reprodução de notícias ou mesmo apenas títulos que conduzam a elas, a partir da fonte comum do jornalismo tradicional.

Outra pesquisa, divulgada pelo Instituto Poynter, aponta que 60% dos consultados preferem se informar por meio de jornalistas. Associando os dois levantamentos, é possível supor que o que ocorre é uma mudança – aliás, previsível – na preferência do público em relação aos suportes e mesmo ao ambiente que proporciona o acesso à informação, cuja origem continua a ser a mesma. O que significa reiterar, implicitamente, o reconhecimento do valor de credibilidade referido à atividade jornalística, ainda que a maioria, guiada por essa ilusão de que a internet é capaz de operar o milagre da distribuição de almoços grátis, não pretenda pagar pela informação que consome – o que é o principal problema, não só para as empresas tradicionais, como para todo e qualquer profissional, que precisa viver de seu trabalho.

Não se trata, evidentemente, de conferir credibilidade automática ao que a imprensa publica, mas de considerar que o jornalismo só existe e conquista relevância social e política porque se compromete com esse valor. Por isso precisa zelar por ele, independentemente da linha ideológica adotada. E por isso a crítica aos processos de produção da notícia é sempre tão necessária.

Um dos aspectos básicos dessa crítica é o da solidariedade de interesses entre as grandes empresas jornalísticas e as assessorias de imprensa, que se adaptam às rotinas das redações e são responsáveis por boa parte da pauta cotidiana. Outro é o do açodamento em validar informações que surgem na algaravia da internet, sem a preocupação elementar da confirmação da fonte. O caso mais recente foi a divulgação, logo desmentida, da notícia da morte de Fidel Castro, pelo twitter de um jornalista italiano conhecido por disseminar mentiras como forma de testar a credibilidade da mídia. Mas os exemplos se sucedem (ver, neste OI, “Twitter mata Fidel“).

Ao jornalismo cabe a tarefa de apresentar o mundo aos homens, afirmou, há alguns anos, o professor Pedro Luiz Osório, num debate comemorativo do aniversário de O segredo da pirâmide, a obra clássica de Adelmo Genro Filho. Nesses tempos mal classificados como sendo de “avalanche informativa” – pois informação é o que menos há nesse turbilhão –, essa tarefa se torna ainda mais complexa, considerando a necessidade de discernir entre fato e boato e de selecionar o que é socialmente relevante, para oferecer a quem deseje se situar no tempo em que vive.

***

[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]