Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A herança gráfica do JT

O réquiem do Jornal da Tarde, que deixou de circular em dia 31/10, foi entoado por diversas vozes brilhantes do jornalismo brasileiro de tal forma que dispensaria acréscimos. Nada mais poderia ser dito para relembrar o jornal, sobretudo em sua fase de ouro, ou lamentar seu desaparecimento, algo triste em qualquer fase de um jornal. Porém, num ponto, a insistência em dizer alguma coisa se faz útil, qual seja o design do jornal, especialmente no que concerne às suas primeiras páginas. Fruto dos anos 1960, com suas diversas revoluções e novidades, as páginas do JT refletiam esse contexto histórico na influência que sofreram das transformações ocorridas no terreno do jornalismo daquele período. Lá estava um pouco do Herald Tribune, como afirma Alberto Dines; ou do New Journalism – de Tom Wolfe, Gay Talese, Norman Mailer e Truman Capote –, que deu ao jornalismo ares de literatura, como prefere Mino Carta, este, ao lado de Murilo Felisberto, um dos mentores do JT.

Seria injusto não mencionar que o Jornal da Tarde representou para o campo do design de jornais no Brasil o mesmo que as referidas transformações fizeram para a prática do jornalismo. Ao lado da reforma do Jornal do Brasil (entre 1956-1962), o JT aparece como o ponto alto desse tipo de design no Brasil de meados do século 20. Brilhantemente descrita em livro por Washington Dias Lessa, a reforma do JB representou a organização do vocabulário gráfico (fios, tipografias, espaços, pontos, grisês, fotos e desenhos) dos jornais segundo uma nova sintaxe, que estabeleceu padrões para expressar os diversos níveis de importância dos textos, assim como os distintos gêneros jornalísticos. Sob a inteligência gráfica de Amílcar de Castro, o jornal experimentou com sucesso os princípios de composição do neoconcretismo na diagramação das páginas e praticamente reinventou o fotojornalismo ao abrir generosos espaços para as fotos que até então não tinham destaque nas primeiras páginas do jornal. A reforma do Jornal do Brasil criou a forma (visual) do jornal de referência no país.

A forma visual da notícia

Talvez, a maior herança que o Jornal da Tarde recebeu do Jornal do Brasil tenha sido a aceitação da imagem como discurso jornalístico de primeiro nível. Apesar de já publicarem imagens, os jornais de meados do século 20 ainda mantinham-se como terreno da palavra. Ao destacá-la em suas páginas, o JB revisou esse modelo, ampliando as possibilidades da cobertura jornalística. O Jornal da Tarde, entretanto, foi além ao construir páginas nas quais imagem e palavra estavam de tal modo interligadas que formavam um único texto, híbrido, uma forma mais próxima do cartaz que de uma página de jornal, embora com propósitos jornalísticos. Tal forma representava a notícia, devidamente apurada, processada e apresentada aos leitores. É possível enumerar algumas dessas páginas, cuja lembrança já remete às matérias e que se tornaram clássicos do jornalismo e do design: a vitória sobre a Inglaterra na Copa de 70 (8/6/1970); a derrota da emenda Dante de Oliveira (26/4/1984); a eleição de Jânio Quadros em São Paulo (16/11/1985); as páginas com a série “Paulinóquio” (25/3/1983 a 18/3/1983); o obituário de Tom Jobim (9/12/1994); ou ainda a antológica página com a tragédia do Sarriá (5/7/1982). Fossem publicadas hoje, essas páginas seriam difundidas de tal modo que se tornariam memes, tal sua concisão e efetividade.

Por razões internas e também pelos rumos que o mercado jornalístico tomou a partir do final do século passado, o Jornal da Tarde acabou perdendo o prumo e afastando-se da escola que fundou, até deixar de ser publicado. De sua fase áurea ficou a forma da notícia que ajudou a modificar – um texto único, híbrido, multimodal, formado por palavras e imagens que mantêm entre si uma relação que é a própria representação ou a narração do fato. O jornal, se não inaugurou, lançou as sementes do que se pode chamar a forma visual da notícia, forma que encontraria sua plenitude no Correio Braziliense do final dos anos 1990 e que também ecoaria na fase contemporânea de O Dia. Para se ter uma ideia da importância desse legado, a forma adotada pelo JT apareceu em 90% das páginas inscritas na categoria Criação Gráfica Primeira Página da edição 2012 do Prêmio Esso de Jornalismo e está presente em três dos cinco trabalhos finalistas na categoria.

Nos 46 anos em que o JT circulou, o jornalismo se modificou em função do novo cenário econômico e das novas mídias e sistemas de comunicação que surgiram, principalmente dos anos 1990 para cá. O modelo de qualidade que se estabeleceu foi a forma adotada pelo Jornal da Tarde em suas capas, padrão que se impôs menos por conta de um triunfo do jornal e mais em razão das novas tecnologias que vingaram no período, predominantemente orientadas para a troca de símbolos visuais. Se hoje tais tecnologias oferecem ao público a possibilidade de produzir e editar seus próprios textos híbridos e compartilhá-los – como o fazem as pessoas com seus smartphones com câmeras etc. –, a forma da notícia difundida pelo Jornal da Tarde pode vir a se tornar um discurso dominante nesse contexto de trocas instantâneas, modificando mais uma vez o Jornalismo.

Diante dessa possibilidade, a saga do Jornal da Tarde desperta uma reflexão também importante no cenário atual. Curiosamente, a fase mais emblemática do jornal – na qual sua forma visual se estabeleceu – aconteceu antes da onda de reformulações gráficas e editoriais dos jornais embaladas pelo desembarque das consultorias jornalísticas por aqui, enquanto sua derrocada ocorreu exatamente depois dessa fase, a partir do final dos anos 1980, período que se caracterizou pela adoção pelo mercado de modelos jornalísticos trazidos por elas. Seria injusto imputar-lhes a responsabilidade pelo declínio do JT, uma vez que sabemos que fatores estruturais (quadros, orçamento, distribuição etc.) e conjunturais (crise econômica, mudanças de comportamento etc.) interferiram nesse processo. Apesar dessa coincidência histórica, vale lembrar que algumas das estratégias adotadas para o jornal e que foram malsucedidas também tiveram as bênçãos dessas consultorias.

A questão que se coloca é mais profunda do que especulações e tem a ver com a consciência da qualidade de nossa produção. O fato de a nossa ser uma cultura transplantada, nos moldes como defende Nelson Werneck Sodré em sua Síntese da História da Cultura Brasileira, não restringe nosso lugar no mundo ao de meros compradores da produção alheia. Existe uma produção brasileira que é legítima e resulta da apropriação e das releituras que fazemos dessas produções estrangeiras, como o são as páginas do JT: nascidas do cruzamento de influências importantes de seu tempo, mas que se ofereceram como uma voz original em seu contexto histórico, de tal modo que o identificaram. Agora, diante da crise que assombra as formas estabelecidas de Jornalismo e quando novamente corremos o risco de importar soluções e modelos que podem não ser os mais adequados para nossa realidade, as páginas do Jornal da Tarde que ficaram para a História, reverenciadas como a imagem de um ente que se foi, parecem nos mostrar que podemos entender mais de jornalismo e design do que supomos.

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[Ary Moraes é jornalista e designer, doutor em Design e professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA/UFRJ)]