Thursday, 02 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Menos culpa, mais responsabilidade

Uma das principais acusações que rondam o jornalismo científico é a de que os profissionais que se dedicam à área têm o péssimo hábito de distorcer resultados de pesquisas – em função de uma incapacidade interpretativa crônica, por pura ignorância ou intencionalmente, para atrair a atenção do leitor.

Mediante numerosas alegações dessa natureza, especialistas do setor de saúde franceses decidiram comparar artigos científicos, comunicados de imprensa (produzidos pelas instituições responsáveis pelas pesquisas) e matérias jornalísticas para identificar a origem de distorções do tipo e avaliar se resultados de estudos na área são de fato vítimas de má interpretação.

Em artigo publicado recentemente na PLoS Medicine, os autores da pesquisa mostram que a extrapolação de resultados de estudos clínicos na imprensa existe, sim, e deve-se principalmente à ênfase exagerada dada, nos próprios artigos científicos, aos potenciais benefícios dessas pesquisas.

Para não superestimar nem distorcer os resultados da pesquisa em questão, expliquemos melhor o seu desenho e escopo.

Os pesquisadores – a maioria vinculada ao Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica(Inserm, na sigla em francês) – fizeram uma busca por todos os comunicados de imprensa indexados no portal EurekAlertentre dezembro de 2009 e março de 2010. O EurekAlert é repositório de notícias, comunicados de imprensa e artigos de diversos periódicos relevantes, tais como Science e PNAS.

Dos 498 itens identificados, os autores do artigo selecionaram 70 que divulgavam resultados de ensaios clínicos randomizados – considerados padrão-ouro na clínica médica, esses estudos consistem na comparação entre uma ou mais intervenções, as quais são aplicadas aleatoriamente em um grupo de participantes. Depois, foram atrás dos artigos científicos que lhes deram origem. Por fim, buscaram matérias jornalísticas relacionadas aos estudos na base de dados Lexis Nexis, encontrando 41 itens.

O segundo passo foi vasculhar todo esse material em busca de distorções e estratégias específicas de reportagem – intencionais ou não – que ressaltassem os benefícios dos tratamentos experimentados nos estudos, as quais os autores chamam de ‘spins’. Exemplos de spins: foco em resultados estatisticamente significativos, relato equivocado sobre a segurança de tratamentos e ênfase em seus efeitos positivos.

Os resultados dos estudos clínicos foram extrapolados em cerca de metade de cada amostra. Os pesquisadores detectaram spin em 40% dos artigos científicos – mais precisamente em seus resumos –, 47% dos comunicados de imprensa e 51% das matérias jornalísticas.

O tipo de spin identificado nas notícias era o mesmo do detectado nos comunicados de imprensa e nos resumos dos artigos. Ou seja, as distorções apontadas na cobertura de saúde estão provavelmente relacionadas a deslizes cometidos por assessores de imprensa, editores de revistas científicas e até mesmo por pesquisadores.

Novas exigências

É natural que o primeiro contato com os resultados dessa pesquisa gere certo grau de satisfação no jornalista estigmatizado e impulsione uma reação defensiva do tipo: “viu como a culpa não é (só) dos jornalistas?” No entanto, uma reflexão mais ponderada sobre os dados apresentados gera sobretudo preocupação.

Se não se pode mais confiar integralmente nos artigos científicos – ao menos em seus resumos – e nem nos comunicados de imprensa – dos quais os jornalistas têm se tornado, infelizmente, cada vez mais dependentes –, a quem iremos recorrer?

Em meio a um turbilhão de dados de novos estudos publicados e divulgados diariamente, como identificar o que é de fato relevante para a ciência e a sociedade? Mais: como evitar dar falsas esperanças àqueles que esperam ansiosamente por novos tratamentos e curas para diferentes males? Eis aqui um dos principais desafios enfrentados atualmente pelos jornalistas que cobrem ciência e saúde. 

Quebrar a cabeça para compreender detalhes de estudos em áreas tão diversas quanto antropologia, paleontologia, física e neurociência; recorrer a malabarismos linguísticos de toda sorte para driblar jargões científicos e adaptar a informação científica ao contexto de seu público; aprender a lidar de forma ponderada com as grandes controvérsias do momento são algumas das tarefas ‘básicas’ da profissão.

Mas o jornalista de ciência precisa agora ir além. Ele deve se preparar melhor para saber separar o joio do trigo e apresentar a seus leitores, de forma honesta e embasada, o que acontece de mais importante no mundo da ciência.

Continuaremos nos esforçando para isso.

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[Carla Almeida, do Ciência Hoje On-line]