Wednesday, 01 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O tom que perdemos

A psicóloga Roseli Goffman condenou o comportamento dos jornalistas em Santa Maria (RS) depois da tragédia. “É uma exploração do luto público. Você vê pessoas em choque sendo entrevistadas. O luto precisa de silêncio”.

Depois de assistir ao último documentário de Nelson Pereira dos Santos que estreia terça-feira (5/2), A Luz do Tom, dá para perceber o quanto, diante das telinhas e das telonas, estamos contaminados por ruídos, tramas exageradas, perguntas óbvias, berros costumeiros de pseudo-repórteres utilizandos até no SP TV, da Rede Globo, a pergunta antimanual de jornalismo “e como a senhora está se sentindo?” depois que a entrevistada foi transpassada por uma bala perdida, coisas no gênero. Estamos carentes de silêncio.

Sem falar nos cortes, as edições cada vez mais sincopadas com o pretexto de acompanhar o suposto olho do público envenenado pela internet e incapaz de se concentrar em mais nada. Estão abusando da última palavra da senha mestra das filmagens, “ação”.

Não se sabe como nem quando esses defeitos foram transportados do cinema, das novelas e da ficção para o jornalismo na televisão, porque o mundo gira e a Lusitana roda, o diploma tornou-se “desnecessário”, mas as regras não mudaram. Da mesma forma que passou a ser adotada no jornalismo a ditadura da beleza e da juventude, que virou uma cansativa hegemonia nas novelas – cabelo liso virado para cá e para lá em meninas que parecem ser sempre as mesmas de tão fiéis ao modelito.

Marcas do tempo

Se é que os brasileiros abandonam o circuito das compras para ver um jornal de televisão quando viajam para a Europa, à Escandinávia por exemplo, ficarão chocados ao ver repórteres mulheres de cabelos compridos e brancos. Profissionais de longa data que não foram demitidas do vídeo nas primeiras rugas. Ou em casa mesmo, basta zapear da novela para um canal europeu da TV paga.

Ivo Pitanguy, que fornece a fórmula adotada pelos profissionais que reivindicam um espaço visual, sempre defendeu o direito à beleza. Mas ele próprio revelou que nunca se submeteu a uma operação plástica. “Devo ter uma autoestima muito alta”, o mago sem querer definiu o que se apreende no jornalismo de TV e nas novelas ou reality shows, já que esses módulos agora passaram a ficar muito parecidos. Há superfície mas falta substância e espinha dorsal. Falta verdade.

Chamou a atenção da plateia o depoimento de Liv Ullmann no documentário de 83 minutos apresentado pela primeira vez na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo no ano passado, depois em curta temporada comercial. Em Liv & Ingmar – Uma história de amor, o indiano Dheeraj Akolkar capta Liv com todas as rugas e marcas de expressão que adquiriu em 74 anos de vida, a tumultuada relação com Ingmar Bergman pelo meio. O rosto de Liv era a expressão da verdade.

Aqui como nos Estados Unidos está difícil encontrar a mulher de mais de 50 que nunca se submeteu a uma cirurgia. Há 10 anos Nancy Meyers procurou como agulha no palheiro uma atriz nessas condições para contracenar com Jack Nicholson em Something’s Gotta Give (Alguém tem de ceder) até achar Diane Keaton, na época com 57 anos, que levou com esse filme o Globo de Ouro e o prêmio de melhor atriz do National Board Review.

No Brasil, o símbolo seria Fernanda Montenegro. Na América Latina, a uruguaia China Zorrilla, que tinha 83 anos quando protagonizou Elsa em Elsa & Fred, do argentino Marcos Canevalle.

Pura contemplação

É bom que se saiba disso tudo antes de estar diante do documentário de Nelson Pereira dos Santos. O diretor paulista de 83 anos, que vive no Rio e tem o cinema brasileiro e a criação do Cinema Novo entrelaçado na sua própria história, encontrou o tom que perdemos.

São duas horas com três mulheres, duas delas com mais de 80 anos: a primeira mulher de Tom, Thereza Hermanny, com quem se casou em 1949, e a irmã Helena Jobim, autora do livro Antônio Carlos Jobim, um homem iluminado, que deu origem ao documentário A Luz do Tom. A terceira mulher é a última com quem se casou, em 1986, e ficou até morrer, em 1994 – Ana Lontra, então com 29 anos, hoje beirando os 60 (Tom teria feito 86 em janeiro).

Não há cortes rápidos, flashbacks, superposições, animações, depoimentos, legendas. Helena caminha na beira de uma praia na Floranópolis que parece a Ipanema de Tom dos anos 1950. Thereza faz a mesma coisa no entorno da serra cercada de mata atlântica, e Ana fotografa no Rio naquele que ela e Tom diziam ser o quintal da casa deles, o Jardim Botânico. E contam histórias, falam no pio do inhambu, na pescaria na pedra do Arpoador, no Bar Lagoa que se chamava Bar Berlim antes da guerra, no Velloso que hoje leva o nome da música criada por Tom e Vinícius, “Garota de Ipanema”.

Tom, Helena conta, disse que nunca colocava o nome de alguma namorada nas suas músicas. Ela fala no pai que morreu aos 47 anos (suicídio?, overdose de morfina no hospital?, Helena não fala), nas parcerias, no processo de criação, no amor à natureza e ao urubu voando, na prima que só queria ver as coisas lindas que o Tom via. Dão tempo para a memória divagar, imaginar as cenas como se lessem um livro e criassem os personagens a seu gosto – coisa rara quando tudo hoje é tão óbvio. Só a música entrecorta as palavras e a visão feminina sobre Tom.

É o segundo documentário de Nelson sobre ele. A música segundo Tomsaiu no ano passado com imagens raras como Maysa cantando “Por causa de você”, Judy Garland interpretando “Insensatez”, João Gilberto ausente porque não autorizou sua imagem – embora o elegante Nelson, numa entrevista, tenha desconversado a razão de o melhor intérprete do Tom não estar no documentário. Assim mesmo João foi fisgado num deslize, tocando violão para Elizeth Cardoso em “Eu não existo sem você”(“era ele?”, Nelson brincou na entrevista, “eu nem tinha percebido…”).Neste segundo filme, Thereza conta como Tom era apaixonado pela batida de João Gilberto.

Como há 10 anos João Moreira Salles permitiu em Nelson Freire,aqui há silêncio. Nelson Pereira dos Santos explicou numa entrevista: “Qualquer coisa além do que mostramos, mesmo uma legenda, corta a relação do público com a imagem e a música. Não fizemos um filme para informar. Fizemos um filme para ser contemplado, como os de ficção”.

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[Norma Couri é jornalista]