Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Emocionante, mas
nada esclarecedor

O Jornal Nacional de quinta-feira (31/3) trouxe pela enésima vez a miséria da exploração do trabalho infantil em localidades miseráveis do Nordeste. Com a chamada ‘A perda da infância – o sofrimento das crianças onde não chegam os programas sociais do governo’, como anuncia o site do telejornal, a reportagem mostrou novamente crianças de até três anos de idade sendo obrigadas a trabalhar pesado para ajudar a família. No caso, foi apresentado o drama do município pernambucano de Santa Maria do Cambucá, onde menores de idade descascam castanhas-de-caju que rendem R$ 0,35 por litro, o que soma R$ 120 por mês para toda a família.


Sem ser preciso quanto ao número de pessoas da família que participam do trabalho – de acordo com as imagens, seriam de oito a dez –, o texto acompanha cenas pungentes, enfatiza o descumprimento do Estatuto da Criança e sela o fracasso de mais um programa social do governo federal. Dessa forma, no contraponto entre dados gerais e o drama local, resume uma das vergonhas nacionais a mais uma barreira burocrática entre o Ministério do Desenvolvimento Social e a prefeitura do município de menos de 12 mil habitantes – informação que a reportagem também não apresentou.


‘Todos os dias a jornada recomeça nas casas de farinha e nos ranchos de castanha’, diz a repórter Beatriz Castro, da Rede Globo Nordeste. ‘Em Pernambuco, cerca de 4 mil crianças esperam a ajuda para estudar.’


Com voz grave, a apresentadora Fátima Bernardes dá o desfecho à reportagem dizendo que ‘o Ministério do Desenvolvimento Social informou que a prefeitura de Santa Maria do Cambucá nunca solicitou oficialmente a inclusão no programa de erradicação do trabalho infantil. A prefeitura declarou que, desde o início do ano, tem mantido contato com o governo de Pernambuco para cumprir as exigências burocráticas do programa’. E parte para outro assunto.


Oportunidade perdida


O resultado para o telespectador é desolador, não exatamente por causa da reexposição do estado de miséria, mas sim porque, mais uma vez, o jornalismo apegado a fontes oficiais deixou sem resposta a pergunta fundamental do drama: quem paga R$ 0,35 por litro de castanha descascada?


Se a investigação trouxesse a público o primeiro elo da exploração do trabalho infantil, por certo descobriria a cadeia de intermediários que faz com que uma embalagem de 100g da mesma castanha-de-caju custe mais do que R$ 9 na maior rede de supermercados do país.


Essa diferença de valor entre o drama da miséria secular e o salgadinho que acompanha o chope seria mais contundente se a reportagem explicasse quantos gramas de castanha-de-caju cabem em um litro. Se tivesse havido reportagem, certamente a escala de responsabilidades pelo preço miserável ao trabalho dos descascadores chegaria ao sindicato patronal do setor. Por um caminho simples: o mesmo percorrido por produtores de suco de laranja dos EUA para forçar os produtores brasileiros a não mais contratar crianças. Mas nada, nem uma pergunta, jogou luz sobre a rede de interesses que colabora com a perpetuação da miséria no local.


Na noite seguinte, sexta-feira (1º/4), o Jornal Nacional voltou ao tema, desta vez conferindo importância à ‘denúncia’ do dia anterior. Mostra a chegada da equipe de fiscais do Ministério do Trabalho à cidade, dá nova camada de tinta no sentimentalismo do dia anterior, e – mais uma vez – nada informa sobre quem paga R$ 0,35 por litro de castanha-de-caju.


O apresentador William Bonner espelha a frustração, e encerra, dizendo: ‘Os fiscais foram embora e as crianças continuaram a trabalhar. O Ministério do Desenvolvimento Social anunciou que o município de Santa Maria do Cambucá será incluído no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. No mês que vem’.


Faltou apenas anunciar que, em breve, outra reportagem tocante será apresentada , em outra pequena localidade, possivelmente na região Norte ou Nordeste, com imagens igualmente tocantes e revoltantes. Assim, a imprensa perde nova oportunidade de recuperar o poder transformador que um dia exerceu.