Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

‘Garganta Profunda’ e gogós engasgados

Os caprichos do destino e da política oferecem ao cidadão brasileiro uma extraordinária e instrutiva coincidência. Enquanto o ‘vídeo da propina’ cria a maior crise política do atual governo, nos EUA descobre-se quem foi o informante dos jornalistas cujas reportagens levaram à renúncia do presidente Nixon em 1974.

Mark Felt, hoje com 91 anos, o nº 2 do FBI à época, confessou na última terça feira que ele era ‘o cara que chamavam de Garganta Profunda’. Desfazia-se um mistério que durou 33 anos e, ao mesmo tempo, revelava-se a história de um alto-funcionário do governo que, indignado com a atuação da Casa Branca no abafamento do escândalo Watergate, esqueceu os códigos disciplinares e começou a passar dicas a dois repórteres do Washington Post.

Diante dos desdobramentos dos dois casos impossível não compará-los. São demais semelhantes e, ao mesmo tempo, dessemelhantes para não serem cotejados. A identificação da fonte secreta que mudou os rumos da política americana coincide aqui nestas paragens com um gigantesco empenho de diversos setores para abafar as revelações sobre a corrupção nos Correios.

A analogia é obrigatória: Watergate foi um caso clássico de jornalismo investigativo, os repórteres receberam indicações de uma fonte altamente bem situada e, a partir delas, desenvolveram um impecável trabalho investigativo. Já o vídeo da corrupção foi produzido por empresários corruptos que corrompiam um alto funcionário dos Correios.

Num episódio temos um servidor público que abriu o bico em nome das suas convicções, no outro temos um servidor com o bico fechado pela propina. Num caso rompeu-se o sigilo funcional em nome de compromissos morais. No outro, por módicos três mil reais embolsados na hora, desvenda-se o tamanho da roubalheira.

Nestes últimos dias Mark Felt tem sido chamado nos EUA de traidor, criminoso, invejoso. Mas todos reconhecem que jamais beneficiou-se materialmente com o vazamento de informações. Indignou-se com o que testemunhava e foi às últimas conseqüências – livrou o seu país de um perigoso grupo de políticos que se abancaram no poder.

Duas realidades

O que espanta no caso dos Correios é total ausência naquela gigantesca estrutura de um único ‘Garganta Profunda’ capaz de revoltar-se com as fraudes nas compras e licitações. Não apareceram até agora indícios de que o quadro permanente de funcionários-técnicos estivesse empenhado em fiscalizar as trapaças armadas pelos fisiológicos e aliados políticos.

Pergunta-se: não há Ouvidorias e Corregedorias no serviço público federal? A Controladoria Geral da União ainda não conseguiu criar algo equivalente a um Disque-Denúncia onde funcionários probos e responsáveis tenham condição de desvendar as improbidades e irresponsabilidades que testemunham?

Mark Felt não agiu como delator ou dedo-duro. Não cometeu crime de lesa-pátria como pretendem os velhos conservadores, tipo Henry Kissinger. Ao contrário, uma grande parcela da sociedade americana o considera como herói anônimo, paradigma da consciência crítica da nação. Felt tinha amor à profissão e à instituição e, em nome delas, recusou a cumplicidade passiva. Correu riscos – a CIA ou o próprio FBI poderiam liquidá-lo – não se intimidou.

Por onde andam os nossos ‘Garganta Profunda’ – optaram pelo silêncio para não prejudicar os governos ou não querem perder as benesses que gozam? Porventura tornou-se politicamente incorreto por a boca no trombone (ou mesmo na flauta)? Denunciar irregularidades é de mau-gosto, impatriótico, reacionário e neoliberal? Onde enfiaram-se nossos Émile Zola que não ousam escrever uma carta-aberta igual ao ‘Eu Acuso’?

A triste comparação entre o ‘Garganta Porfunda’ e os nossos gogós engasgados desvenda duas enormes realidades: a corrupção endêmica e a resignação renitente. No fundo, é a mesma coisa.