Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Jornalismo sem contexto é ideologia

Há muita coisa envolvida no caso New York Times: como se percebe a auto-estima do país, relações entre superpotências – como o NYT e os EUA –, históricos problemas de identidade etc.: mais do que uma crônica de bom-dia pode abarcar.

Acho que o presidente daria uma mostra de sua conhecida flexibilidade revendo o visto desse palhaço. Esse não é o ponto; me espanta como um país tenta fazer o NYT publicar sua resposta em vão, logo após ter vencido na questão dos subsídios ilegais dos EUA na OMC.

Como a mídia transforma esse incidente diplomático-estratégico-midiático em algo de ‘liberdade de expressão’?

Como debater isso sem rever o mito americano da superioridade de sua democracia – da liberdade absoluta da imprensa, longe da censura corporativa, da correção governamental, longe da corrupção institucional das corporações que controlam a política pelas doações – por exemplo –, enquanto todas as democracias latinas são corruptas e incompetentes?

Ofensa à liberdade

Os estrangeiros talvez tenham a tendência de colocar isso nos termos da comédia: puxa, como as democracias das bananas levam a sério a opinião dos outros! Como o Brasil tem sentimento de inferioridade e lida mal com orgulho ferido! Como o Brasil tem uma cultura da aparência! Para eles uma fala do jornalista Carlos Dorneles, autor do livro-obrigatório ‘Deus é inocente, a imprensa, não’:

‘Eu acho que todos os episódios da guerra do Iraque e do Afeganistão são exemplos da falta de inocência da imprensa. Quem tinha poder usou a imprensa para mostrar um conflito que envolvia aqueles que defendiam uma pretensa civilização superior contra uma civilização bárbara, com uma religião esquisita de pessoas que não têm amor à vida. Essa foi a visão difundida pela imprensa, que é absolutamente errada, equivocada e preconceituosa. E que ‘cola’. As pessoas começam a aceitar isso de alguma maneira. É a visão do vencedor apenas. Eu não acho que a imprensa foi criada para isso.’

Não significa que um furo – uma foto de iraquiano humilhado – possa ser totalmente ignorado; significa que haverá manchetes como a do Washington Post: ‘O preço da Liberdade’, na invasão do Iraque. Como obviamente os países ricos entendem de economia, o livre mercado – das mega-corporações – é o melhor para os povos e os esquerdistas que debatem com o FMI e a OMC são infantis, é fácil mostrar que erram politicamente porque são alcoólatras. Quando aquele que sofre a arrogância reclama, torna-se cômico.

Quando um poder global – como o NYT – fala de um poder local é preciso entender que as palavras são as mesmas, mas têm efeitos e contextos diferentes em cada local: uma prisão nos Estados Unidos é algo diferente, um jornal, uma ofensa. Aplicar os chavões como ‘liberdade’ no contexto de imperialismo, econômico, cultural e da informação é uma ofensa à liberdade.

Estado de ditadura seletiva

Provavelmente não terá efeito nenhum sobre os EUA se uma empresa brasileira disser que o risco-país deles é alto. Como afirmou o jurista Dalmo Dallari à Agência Brasil: ‘Houve o propósito de uma retaliação diplomática (…); se o presidente Lula estivesse inteiramente subordinado às diretrizes políticas e econômicas dos Estados Unidos certamente o New York Times não publicaria isso’.

Cabe à ABI e à ACIE (Associação dos Correspondentes de Imprensa Estrangeira) iniciar um debate sobre a amplitude política da notícia, a responsabilidade na avaliação de fontes, relações entre informação e poder e o sentido da ‘despreconceitualização’ para a ‘correspondência’ estrangeira. O máximo da despolitizacão, a tal reportagem dos fatos, oculta o máximo do politizado, o encobrimento de alguns fatos.

Se o ato ‘levanta sérias dúvidas quanto ao tão falado comprometimento do país com a liberdade de expressão e de imprensa’ o próprio artigo levanta sérias dúvidas sobre a diplomacia e a pressão da tinta. O que está por traz do fato sobre o jornalista americano não é a liberdade de imprensa, mas o poder da imprensa de dizer qualquer coisa muito alto e para muita gente num contexto de pouca liberdade de expressão (a pobreza cala), sem fundamento, e independentemente da repercussão, do contexto político e do impacto social; e, no caso atual do Brasil, no contexto de mídia absoluta desacostumada à democracia, esquerda oportunista e direita que acha ilegítimo perder eleição.

No contexto de um mundo cada vez mais pobre, de uma mídia cada vez mais concentrada, de um debate cada vez mais sério sobre os rumos do governo global, onde já nem parece mais maniqueísta a oposição entre ideologia das corporações pelo monopólio global versus movimentos sociais de ampliação da democracia plural. Rumamos rapidamente para um estado de ditadura seletiva, onde todas as fontes que vêm do governo americano são seguras, todos os dados apresentados por The Economist são corretos e tudo que ameaça o poder é melhor esperar sete meses…

Objetivo quase óbvio

Os senhores deveriam estar horrorizados com o uso de frases como ‘a predileção do presidente por bebidas fortes está afetando sua performance no cargo’. Teria sido usada de má fé, levando em conta o preconceito histórico que os americanos parecem ter com o alcoolismo? Isso logo uma semana depois de Zoellick [Robert B. Zoellick, representante de Comércio dos Estados Unidos – USTR] dizer que o governo Lula ‘não foi eleito com a plataforma a mais propícia para o livre comércio (…). Dessa forma, eles têm que gerenciar a política disso’.

O uso de fontes duvidosas que falam de ‘nosso presidente alcoólatra’ é uma ofensa diplomática a um país que saiu da ordem reinante do império globalizado? Muitas vezes, em contexto de guerra e nos atuais debates, que alguns definem como entre a ideologia corporativa-elitista e a ideologia altermundista-democrática, alguma coisa que é boa é usada para justificar um abuso aos direitos humanos; estaria a ‘liberdade de expressão’ sendo usada para encobrir uma liberdade desmedida de jornalistas irresponsáveis que têm uso político e ideológico?

A fonte, entre outras bobagens, é Leonel Brizola, um concorrente político, uma figura que já perdeu sua força política, vive de glórias do passado e faz alianças oportunistas… Evidentemente, ou houve malícia ou desinformação imperdoável. ‘Nos últimos meses, o governo esquerdista de Lula foi atingido por uma crise após a outra, de um escândalo de corrupção ao fracasso de importantes programas sociais. O presidente freqüentemente ficou fora da visão pública e deixou seus assessores cuidarem das dificuldades.’

Os correspondentes têm informações precisas sobre o Brasil ou vêm aqui para nos ensinar uma suposta postura democrática? Este é um jornal de alcance internacional, que é para boa parte do mundo uma fonte segura e confiável, e não um livreto de crônicas descabidas. Parece a mim e a boa parte dos brasileiros que houve um objetivo quase óbvio de minar a credibilidade do governo, e concordo com Michael Berg (que teve o filho decapitado no Iraque e culpou o governo, já que Berg foi detido pelos americanos por duas semanas sem nenhuma acusação e sem poder entrar em contato com ninguém). Ele disse: ‘Eu não acho que este governo tenha um compromisso com a democracia.’

Uso político da imprensa

Além disso, se algum maluco latino usasse seus neurônios simplistas e desinformados (já que o que emana do artigo é o tom velho de superioridade sobre a república das bananas, que condena o problema cultural pelo avanço da pobreza, e não as estratégias da OMC e do FMI) poderia achar que não é um bom momento para a mídia americana querer ensinar uma suposta liberdade de imprensa, logo num país que vive concentração de renda e informação brutal, e se torna rapidamente uma democracia em que o povo não precisa votar, as eleições são coordenadas por corporações e a educação pública naufraga, levando as pessoas a deixar a política para os outros. E cujo ‘presidente’ – não-sei-se-eleito – diz, na frente de soldados nus para os quais oficiais apontam cigarros: ‘Você (Rumsfeld) liderou nossa nação com coragem na guerra contra o terror. Você está fazendo um excelente trabalho’.

Depois que foi invadido o Iraque sem nenhuma prova de sua ligação com a al-Qaida fica colocada em foco a posição da imprensa em desmoralizar países que têm políticas nacionalistas e saem do eixo-imperial da privatização da vida e, ao contrário, corroborar o apoio americano a invasões antidemocráticas por motivos geopolíticos; seria a mídia um monte de ‘cãezinhos amestrados’, como coloca Greg Palast, que simplesmente não conseguiu mostrar suas reportagens sobre a Flórida no seu país antes de mostrá-las na Inglaterra?

Estaremos entrando num cenário em que sempre que um jornalista usa o direito de expressão de modo político para impedir o diálogo verdadeiro é liberdade de expressão? E sempre que o público reage à corporação megapresente é censura?

O que se debate aqui é o uso político da imprensa. Podem os jornalistas ridicularizar um país inteiro, justamente no momento em que este se opõe aos planos de Bush na Alca?

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Mestre em Filosofia