Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

‘Não’ ao desarmamento, ‘sim’ ao facciosismo

A matéria de capa da Veja (nº 1925, 5/10/2005, págs.78-86), sob o título geral ‘7 razões para votar não’, é um clássico do jornalismo panfletário, capaz de convencer alguns indecisos por algum tempo e confundir outros para sempre.


Para começar: a matéria é prepotente e precipitada. Deliberadamente facciosa, sequer tenta uma isenção formal. Neste início da temporada de debates sobre o referendo das armas, com ainda três edições antes do 23 de outubro, ao invés de ensaiar uma progressiva troca de idéias capaz de suscitar o contraditório e algum esclarecimento antes de se acionar a urna, a revista berra para o leitor – ‘Cala boca, você não sabe nada’.


Nas edições seguintes será obrigada a subir de tom, esgoelar-se, pisotear a razão, apelar para emoções ainda mais fortes. Em algum momento desta cruzada o leitor perceberá que foi ludibriado, não lhe deram tempo para pensar nem lhe ofereceram alternativas para exercer o seu discernimento.


É evidente que a questão preparada pelo TSE foi mal escolhida e mal formulada. Também é evidente que a omissão do governo em matéria de segurança – como em outras questões cruciais dominadas por palavras de ordem ‘politicamente corretas’ – só favorece o ‘não’ ao desarmamento.


Com a exceção do prefeito paulista José Serra e desde segunda-feira (3/10) da governadora fluminense Rosinha Mateus, ambos favoráveis ao ‘sim’, nenhuma autoridade dispôs-se a discutir a questão com as respectivas comunidades.


O poder público retraiu-se, o Estado lava as mãos, esquecido de que na verdade ele é que está sendo julgado. Entregou a discussão às duas frentes parlamentares, multipartidárias (que, por isso, não conseguem formular uma estratégia argumentativa comum) e às ONGs dos dois campos.


Sob o pretexto de não influir, o governo eclipsou-se. Abriu mão de ser governo. Aos adeptos do ‘sim’ oferece a perspectiva de um milagre, aos militantes do ‘não’ presenteia com a certeza de que ao cidadão só resta a opção de defender-se sozinho.


Papel mediador


O vácuo não é só do governo, também é dos partidos. Nenhum deles conseguiu a unanimidade, todos divididos – o que explica as frentes multipartidárias. O vácuo está sendo preenchido inicialmente por um bonapartismo do tipo Veja, em seguida o será pelo cesarismo de algum demagogo tipo Severino escondido num partido-arapuca.


Veja abdicou da sua capacidade de persuadir. Não confia nela ou não confia no leitor. Prefere o rolo compressor da argumentação curta, frenética e fartamente ilustrada. Aquele recurso das páginas 78-79 é pura propaganda, nenhum parentesco com jornalismo. Ao lado de um ‘inocente’ revolver calibre 38 o título proclama: ‘O referendo pode proibir a venda desta arma…’; e conclui, na página frontal: ‘…mas nada pode fazer para tirar este arsenal das mãos dos bandidos’ – e mostra 32 granadas e sacos de munição de grosso calibre.


A comprovação do facciosismo de Veja foi dada na primeira rodada do horário do TSE, na segunda-feira, quando a matéria de capa publicada dias antes foi exibida pelo partido do ‘não’ como argumento definitivo em favor de suas teses. Parecia jogada ensaiada.


Ao contrário da mídia eletrônica controlada pela Justiça Eleitoral, a mídia impressa — a imprensa — é desregulamentada, livre. Imprensa livre não significa imprensa entregue à licenciosidade. O Jornal Nacional de segunda-feira (3/10) e O Globo do dia seguinte mostraram como se argumenta com competência, como é possível oferecer ao público elementos para a formação de juízos sem impor-lhe conclusões. Ao mostrar que 61% das armas apreendidas no Rio nos últimos seis anos passaram por pessoas sem antecedentes criminais, oferece-se ao eleitor do referendo um elemento para ajudá-lo a tomar decisões. É, em última análise, um argumento favorável ao “sim”, mas é, antes de tudo, um estímulo à reflexão.


Referendos e plebiscitos em países com partidos inconsistentes – e desde que ministrados em doses apropriadas – podem aumentar o grau de participação popular e agilizar a tomada de decisões. Sem uma imprensa lúcida, responsável, capacitada para o seu papel mediador, tanto o ‘sim’ como o ‘não’ podem tornar-se exercícios fúteis, espécie de ‘cara ou coroa’ para decidir o destino de uma nação.