Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O difícil caminho da informação no Pará

O panorama midiático no Pará não é dos mais animadores. As Organizações Rômulo Maiorana, proprietárias da TV Liberal, do jornal O Liberal e de emissoras de rádio, parecem não perceber o que, segundo o jornalista Lúcio Flávio Pinto, são sintomas de declínio. A estação de televisão, afiliada da Rede Globo, está seriamente ameaçada pela Record local, diz Lúcio Flávio. O Liberal já foi ultrapassado pelo Diário do Pará, de Jáder Barbalho. Ou seja: a informação no Pará não goza de um ambiente desembaraçado. Isso anima Lúcio Flávio a manter o seu Jornal Pessoal, quinzenário vendido em bancas que vai fazer 24 anos de existência.


Recentemente, o Jornal Pessoal reportou uma audiência a que compareceram diretores das Organizações Rômulo Maiorana, em processo por fraude contra a Sudam (ver as notas ‘Juiz pressiona jornalista paraense‘ e ‘Juiz revê censura a jornalista‘). O juiz federal Antônio Carlos Almeida Campelo reagiu de forma draconiana. Proibiu o jornalista de abordar o assunto, sob pena de ser preso em flagrante, responsabilizado criminalmente e pagar uma multa exorbitante. Segundo Lúcio Flávio, o juiz deixou um rastro de erros. ‘Foi a censura mais grave e mais incompetente já feita à imprensa pela Justiça’, diz nesta entrevista ao Observatório da Imprensa. Dois dias depois, o juiz recuou. Mas Lúcio Flávio não está convencido de que isso seja o bastante. Considera que o juiz deve se declarar impedido, no caso, ou ser declarado impedido.


Eis a entrevista. Ao fim do texto, leia resumo da matéria de abertura do Jornal Pessoal que foi às bancas em Belém no dia 3 de março.


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Dirigentes das Organizações Rômulo Maiorana foram acusados de fraude. Não esperavam que o caso tivesse repercussão?


Lúcio Flávio Pinto – O Ronaldo Maiorana foi à terceira audiência; às duas primeiras eles não compareceram. E parecia que o juiz ia ‘botar pra quebrar’ em cima deles, porque no despacho, marcando com cinco meses de antecedência a audiência do dia 1º de fevereiro, ele escreveu que eles deveriam comparecer, porque estavam protelando a instrução com as ausências. Só que o Rômulo Maiorana Júnior, que é o principal executivo, estava em Miami e permaneceu lá. Pela terceira vez seguida, não compareceu à audiência. Quando acontece isso – caracterizada, no mínimo, a negligência do réu –, o juiz manda buscar com força policial. Não sei se ele fez isso; aparentemente, não. Quando se noticiou isso, parecia que ele ia tomar uma atitude drástica.


Deferências inesperadas


O senhor disse que o juiz Antônio Carlos Almeida Campelo ficou irritado. Por quê?


L.F.P. – O que irritou o juiz é que eu descrevi a audiência e disse que ele começou perguntando se poderia tratar o Ronaldo Maiorana como ‘doutor’; que não fez nenhuma das perguntas que deveria fazer sobre o processo – só o Ministério Público, que é o autor da ação, fez –; e que, depois, ainda foi levar [Ronaldo Maiorana] até a porta, o que é discrepante com o comportamento dele. Ele é uma pessoa dura, até ríspida nas audiências. E o Ronaldo Maiorana, que é o um dos donos da firma que fraudou o incentivo fiscal, confessou que eles realmente fraudavam. Mas disse que já tinha devolvido o dinheiro. É um recurso que os advogados chamam de arrependimento eficaz. Só que o arrependimento eficaz não elide o crime, então ele passou a ser réu confesso. Foi uma má orientação do advogado. Ou o advogado não orientou. Sei que ele confessou e não tem mais saída. Vai depender agora da atitude do Ministério Público. Essa matéria irritou muito por causa disso: as circunstâncias em que foi feita a audiência; o fato de que eu mostrei que o Rômulo Maiorana Júnior não compareceu pela terceira vez seguida e que o juiz não adotou providência – deveria ter adotado.


O juiz ficou com pena dos indiciados?


L.F.P. − Ele tomou partido, porque essa iniciativa foi de ofício. Ele não recebeu nenhum pedido das partes; tomou iniciativa própria. Um dos bordões do Direito é que juiz não tem iniciativa; quem tem iniciativa são as partes. Juiz cumpre o que as partes pedem, ou não cumpre, conforme a decisão. Mas esse aí se sentiu pessoalmente atingido. Só que, pelo procedimento legal, se ele se sentisse ofendido, tinha que seguir o seguinte caminho: me interpelava judicialmente para eu confirmar o que eu disse, ou então entrava com uma ação direta contra mim. Mas não da forma como ele fez. Nos autos ninguém sabia quando ele decretou o segredo de justiça, porque ele não informa [soube-se depois que foi em 2 de fevereiro, dia da audiência]. Ele resolveu de uma forma raivosa, porque diz que, se eu não cumprir, eu vou preso; vou ser submetido a um processo criminal; e tenho multa de R$ 200 mil. Só o valor dessa multa indica o ânimo dele. Ele achou que quando eu recebesse isso ia me intimidar, desistir, porque é um juiz federal. Ele pensou errado. Disseram para ele que ele não sabia com quem estava lidando.


‘Juiz perdeu a condição de árbitro’


O senhor pretende obter na Justiça a troca do juiz?


L.F.P. – Ele mostrou ânimo e a falta de isenção. Eu espero que o Ministério Público argua a suspeição dele. Ele não pode mais funcionar no processo, porque demonstrou o que tecnicamente se chama de interesse pessoal pela causa. O juiz não pode ter isso, porque ele perde a condição de árbitro, de julgador. E mandou imediatamente para o secretário; para o secretário preparar o ofício; e no dia seguinte o oficial de justiça me entregou, o que é uma coisa rápida na Justiça. Em um processo ordinário, em vinte e quatro horas eu sou intimado? Isso tudo denota o ânimo. E a multa de duzentos mil reais, que é exorbitante. Pelo fato de ele dizer ‘preso em flagrante’, poderia aparecer aqui um policial federal e me algemar. Que flagrante? Se eu desconhecia e não havia nenhum registro público do sigilo… E ainda que houvesse, eu poderia contestar. Mas aí é matéria doutrinária, jurisprudencial. Mas não tem o aviso do sigilo, então eu sou de boa-fé, porque eles não têm nenhum registro. Isso tudo mostra que ele se colocou ao lado do réu. Ainda mais pelo fato de que o réu teve acesso fraudulento a dinheiro público. Porque o dinheiro do incentivo fiscal é o dinheiro da renúncia fiscal da União. Daí o interesse público na informação.


Um jornal que nunca aceitou anúncios


Conte um pouco sobre o Jornal Pessoal. Como o senhor o faz? Como distribui?


L.F.P. – O Jornal Pessoal vai fazer 24 anos em setembro. Ele é quinzenal. São 2.000 exemplares no tamanho ofício. Não tem fotos. Não tem cores. Circula nas bancas e em algumas livrarias.


Só em Belém?


L.F.P. – Vai só para algumas pessoas, como cortesia, fora de Belém, porque ele não aceita anúncio e nunca teve anúncio. Foi uma decisão editorial, para não condicionar nada, não ficar sujeito até, às vezes, a chantagem sentimental. Ele nunca teve anúncio. É um jornal pobre. Mas repercute, tem credibilidade. Nesses 23 anos, o jornal só fez mexer com casa de abelha e nunca foi desmentido.


E o senhor consegue viver disso ou tem que ter outras atividades?


L.F.P. – Não. Tenho outras atividades: faço freelances, palestras. Mas me impôs restrições de orçamento: eu não tenho mais carro, ando de ônibus. Não tenho outro bem patrimonial além dos que eu tinha antes de começar o Jornal Pessoal. É uma vida bem regrada, para poder sobreviver.


O senhor consegue distribuir os 2.000 exemplares ou tem encalhe?


L.F.P. – Vão 1.600 para as bancas. O encalhe dele é o recorde: tem encalhe médio de 10% ou 12%. Para você ter uma ideia, o encalhe da Veja aqui é 40%. Em banca, ele é o jornal que mais vende; mais do que os outros todos. Quer dizer: o meio principal de veiculação dos outros todos é por assinatura, que é o melhor meio. Para ter assinaturas, precisa ter capital para organizar o serviço e [o Jornal Pessoal] não tem.


Então ele vende mais que O Liberal nas bancas?


L.F.P. – Nas bancas, vende.


E quanto custa o exemplar?


L.F.P. – Três reais.


Isso não tem nada a ver com internet, nem com meios modernos?


L.F.P. – Não. Tem um site que vai acumulando os jornais, mas está com sete números de atraso. Para mim o site é só mesmo para aqueles que estão fora [de Belém]. Se eu mantivesse o site atualizado sem nenhuma fonte de renda, evidente que ia acabar com o jornal. E eu considero que a forma impressa dele é mais importante. Mas artigos dele são reproduzidos em muitos lugares, inclusive o Observatório reproduz.


Rábula com especialização penal e cível


A argumentação jurídica a respeito da decisão do juiz indica um bom conhecimento. O senhor tem formação jurídica ou é aconselhado por advogados?


L.F.P. – É que quando eu fui processado pela primeira vez, em 1992, por eles mesmos, os Maiorana, eu procurei advogados. Fui bater em oito escritórios de advocacia e ninguém quis me defender, porque têm medo deles. Aí peguei um amigo meu, que é procurador do estado, e ele disse: ‘Não tenho escritório. Eu vou fazer, mas tu tens que fazer a pesquisa e frequentar o Fórum. Vamos fazer juntos’. Eu passei a frequentar o Fórum, estudar, ler, preparar as peças junto com ele. Meu conhecimento vem desses 19 anos. Trinta e três processos cíveis e penais. Eu sou um dos raros rábulas que tem especialização penal e cível…


E esses empresários continuam imbatíveis, lépidos e fagueiros?


L.F.P. – É. Eles acham que estão. Só que o império deles hoje só tem essa força porque é filiado à Rede Globo. A televisão deles é filiada à Globo, por isso lidera. Mas é o único segmento do mercado de comunicação que eles lideram, e, mesmo assim, já seriamente ameaçado pela Record aqui. Porque aqui é a maior fonte de audiência e de receita da Record fora da sede. Isso mostra que eles não estão sendo muito competentes, mesmo tendo um produto como a TV Globo. No jornal eles já não são mais líderes; ficaram para trás.


Qual é o jornal líder?


L.F.P. – É o jornal do Jader Barbalho, o Diário do Pará.


Não são alternativas muito estimulantes, a Record e Jáder Barbalho…


L.F.P. – Aqui é terrível. Por isso é que eu sou perseguido. E é por isso que eu mantenho o jornal. Porque determinadas coisas só saem no Jornal Pessoal. Não tem jeito. Para você ter uma ideia, às vezes eu dou o assunto para algum repórter dos jornais diários e eles não querem saber, porque sabem que é problema. Quando eu publiquei essa matéria, eu sabia que o juiz, pelas características dele, pela forma como foi feita, ia reagir. Mas eu nunca imaginei que ele fosse reagir de uma forma tão incompetente, porque ele deixou um rastro de erros. Foi a censura mais grave e mais incompetente já feita à imprensa pela Justiça.[Transcrição de Tatiane Klein]


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Resumo da abertura do ‘Dossiê Censura’ do Jornal Pessoal, edição da segunda quinzena de fevereiro de 2011


Processado 33 vezes


‘ […] Para quem já foi processado 33 vezes, ter um oficial de justiça à sua porta deixou de ser novidade, conquanto continue a ser um constrangimento social (presume-se que o intimado é sempre culpado). Mas no dia 23, ao abrir a porta para receber mais um oficial de justiça, desta vez havia uma novidade: ele era o primeiro emissário da justiça federal que me intimava de uma decisão. Também pela primeira vez, eu não era parte no feito nem estava sendo convocado para depor.


Simplesmente o juiz da 4ª Vara Federal Criminal do Pará, Antônio Carlos Almeida Campelo, estava me comunicando que decretara ‘o sigilo do procedimento’ numa ação que tramitava sob sua responsabilidade. Ele determinara ao secretário da vara para me oficiar ‘com a informação de que o processo corre sob sigilo e qualquer notícia publicada a esse respeito ensejará a prisão em flagrante, responsabilidade criminal por quebra de sigilo de processo e multa que estipulo, desde já, em R$ 200,00 (duzentos mil reais)’.’


Não foi espancado, ‘apenas agredido’


‘[…]19 processos, 14 dos quais da responsabilidade de Romulo Jr. e Ronaldo Maiorana, todos estes propostos depois que o mais jovem dos sete filhos de Romulo Maiorana me agrediu, em janeiro de 2005.


A cronologia das ações e seu conteúdo, algumas vezes beirando o deboche (sou acusado de causar dano moral e praticar injúria, calúnia e difamação por ter dito que fui espancado por Ronaldo, quando ‘apenas’ fui ‘agredido’, o que, para ele, constitui diferença essencial), revela que os donos do maior conglomerado de comunicação do norte do país consideram a justiça como a extensão do seu poder. E vários membros do poder judiciário têm agido de maneira a confirmar essa presunção odiosa.’


Crime de colarinho branco


‘Onde a notícia sobre o processo atinge a intimidade dos réus? Diz respeito apenas à sua face objetiva e pública, de empresários. Eles cometeram delito previsto na lei penal, que não admite sigilo: o crime de ‘colarinho branco’. O interesse social exige o contrário: que os fatos sejam de conhecimento público para que não se repitam. O patrimônio público precisa ser defendido. A lei tem que ser respeitada. E o sigilo, entendem os tribunais cada vez mais, se restringe aos serventuários públicos.’


Guerra de duas famílias


‘Talvez a campanha contra Jader Barbalho não estivesse tão incrementada se ele seguisse o único rumo que os Maioranas admitem dentro do seu império (que é assim que consideram o Estado do Pará): a submissão, ou pelo menos a adesão. Jader cometeu seus crimes e terá que pagar por eles, caso provados, o que se espera que ocorra em tempo hábil. Mas não foi apenas isso (nem principalmente isso) que o tornou inimigo número um do grupo Liberal: é porque decidiu concorrer com os Maioranas e ser um polo de poder autônomo, independente deles.’


‘[…] Nunca a guerra entre as duas famílias que dividem o controle das comunicações e do poder no Pará foi tão radical e violenta. Digladiando-se diariamente sem qualquer medida de valor, eles não percebem que o campo de batalha já não é exatamente o mesmo. A sociedade está cansada desses extremos, dos atos de força, do achincalhe, do desrespeito aos direitos fundamentais. E do discurso que só se sustenta no ataque e é falacioso quando na defesa.


Ao violar um deles, a liberdade de informação e de expressão, o juiz federal Antonio Carlos Almeida Campelo entrou nesse tiroteio. E entrou de forma tão parcial e unilateral quanto os principais protagonistas. O que ele provocou foi um dos atos mais crus e grosseiros de censura à imprensa que a justiça, exercida por integrantes que abusam de seus direitos, já endossou, assumindo papel que não lhe cabe. O de enfraquecer – ao invés de fortalecer – a democracia no Brasil.’


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