Sunday, 05 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

O jornal que o governador não lê

Uma das primeiras recomendações que recebi ao pisar na redação da Gazeta do Povo, o maior jornal paranaense, como recém-chegado de São Paulo e ex-repórter do Grupo Estado de S.Paulo, foi no mínimo surpreendente. ‘Cuidado paulista, o governador daqui é acostumado a bater em jornalista.’ Achei aquilo estranho e engraçado, me soou até como uma maneira de inibir meu ímpeto de ‘forasteiro’, como alguns colegas também me denominavam.


Na verdade não levei aquilo a sério, mas ouvia a figura singela do então diretor de redação, Arnaldo Cruz, falecido recentemente, sempre pedindo para se ter cuidado nas reportagens que tratassem do governo estadual. Advogado de formação, de olhos muito azuis, cabelos e barba precocemente grisalhos, ele lia pessoalmente cada texto, num silêncio absoluto, sempre com expressão preocupada. Chamava o repórter, o editor, e tecia seus comentários.


Nos meus 10 anos de Estadão escrevi para diversas editorias, mas nunca tinha visto nada igual. Não conseguia imaginar o Aloízio Maranhão, um dos melhores profissionais com quem já trabalhei, num ritual como esse ou mesmo o Pedro Cafardo, então editor-chefe do jornalão dos Mesquista. Quando se tinha uma ‘bomba’, mandava para o editor de Política, Rui Xavier, dar uma olhada e fazer seus comentários sempre bem-humorados sobre o enfoque do material. Mas o que eu então passei a presenciar em Curitiba era algo que mereceu atenção, porque inusual.


Claro que há diferenças imensas entre a imprensa do eixo Rio-São Paulo e a dos outros estados. Não que seja melhor ou pior, mas a própria cultura jornalística desenvolvida na região determina, por vezes, comportamentos diferenciados. As relações entre repórter e fonte tomam contornos peculiares.


Com o tempo no Paraná, passei a cobrir alguns assuntos mais ‘domésticos’, além de desenvolver reportagens em jornalismo científico. E foi numa destas pautas ‘caseiras’ que conheci o governador e pude notar que as preocupações e cuidados do Arnaldo Cruz eram, no mínimo, pertinentes.


Tirania enrustida


Roberto Requião é um homem de porte físico avantajado, de gestos largos e temperamento explosivo, e um tanto agressivo e intimidador. Algo bem diferente, por exemplo, do humor oscilante do ex-governador Mário Covas. Quem o conheceu e cobriu sua agenda, no dia-a-dia ou em suas andanças, sabia que ele adorava uma briga, mas com o tempo ia se mostrando atencioso, divertido e até generoso. Então, era melhor não comparar o governador paranaense com algo e alguém do que já havia conhecido.


Na questão envolvendo o governo paranaense e os embarques de soja transgênica, assunto que ganhou repercussão nacional, vi a Gazeta do Povo tratar o tema com muita seriedade e participei redigindo a parte científica da cobertura. A retidão do jornal foi exemplar: imparcial e buscando fontes qualificadas no Paraná e fora do estado.


A busca pela isenção era obsessiva. Não era possível identificar medo ou receio na opção do jornal, mas sim a decisão de informar e dar espaço para as diversas correntes opinativas. O que levou a Folha de S.Paulo a cobrar em editorial uma posição da Gazeta sobre o comportamento do governador Requião.


Neste dia, fui chamado pelo Arnaldo Cruz, visivelmente incomodado, para opinar sobre o assunto. Afinal, o jornal era paulista, como eu. E minha resposta foi fruto da percepção estrangeira. ‘A Folha só está pedindo para vocês se definirem: ou se posicionam como grande imprensa ou se mantém como um jornal provinciano’.


A Gazeta do Povo, neste momento, já não faturava 1 centavo de publicidade do governo estadual, e em 2004 sofria ataques permanentes do governador, que usava um horário na TV pública para criar um arremedo de programa de auditório, no qual os espectadores eram seus próprios subalternos. Ali, para aquela platéia ensaiada, invariavelmente a imprensa paranaense era alvo de duríssimas críticas.


Um retrato triste do estado que nas últimas décadas se tornou em referencial para o Brasil e agora sequer consegue disfarçar o anacronismo político de suas autoridades. Uma tirania enrustida e escondida sob a máscara da democracia. E do outro lado, uma imprensa acuada e desunida, como o meeiro a enfrentar o coronel latifundiário.


Derrotando fantasmas


Estive em entrevistas com o governador paranaense e presenciei atitudes de um ridículo tristemente risível. Como no dia em que o vice-presidente da República, José Alencar, estava em Curitiba, num evento para empresários, e Requião apareceu de jaqueta de couro e franjas nas mangas, com um búfalo estampado nas costas, calça jeans e mocassim. E constrangeu os presentes ao quebrar o protocolo sentando-se à mesa antes de todos, e servindo-se das garrafas d’água dispostas para os convidados.


Uma postura muito longe do que se espera da autoridade máxima do governo da importância do Paraná, embora próxima demais de um marketing pessoal de quinta categoria. Cheguei a escrever um box para a reportagem principal sobre o comportamento um tanto excêntrico do governador, mas o jornal preferiu não publicá-lo para evitar qualquer tipo de provocação.


A fúria do chefe Cherokee em terras guaranis era algo tão propalado pelos jornalistas locais que beirava o folclore. Essa raiva se manifestava em forma de impropérios mas pode alcançar o estágio dos sopapos. O exercício da liberdade de imprensa era, então, algo para debates sociológicos ou aulas em cursos de jornalismo, pois quando não era reprimida pela ameaça explícita, era pela censura econômica.


Deixei a imprensa paranaense depois de um ano na Gazeta do Povo. Hoje, em solo paulista, acompanho o trabalho dos Gazeta do Povo e Estado do Paraná. Com a morte do Arnaldo Cruz, dono de uma saúde frágil, a direção da Gazeta passou para Nelson Souza Filho, um dos mais gabaritados profissionais que conheci no Paraná – jornalista diplomado, barachel em Direito, dono de vasta cultura e um verdadeiro diplomata.


O jornal mudou nas mãos do Nelson e isto é um fato. A postura esquiva da Gazeta do Povo, num malabarismo permanente para se desviar dos golpes desferidos por Roberto Requião, acabou. O novo diretor da Redação partiu para resolver a questão sem apelar para ofensas ou recursos escusos. Mas com todo o rigor necessário. A Gazeta enfrentou algo maior que o governador, pois encarou e venceu os seus próprios fantasmas. E agora almeja se tornar um jornal de prestígio nacional. Boa notícia para a imprensa.

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Jornalista, pós-graduado em jornalismo científico; atuou na Gazeta do Povo em 2003 e 2004