Thursday, 02 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

O jornalista e a teoria do complô

O conflito Israel-Palestina, que já dura mais de seis décadas, fez mais uma vítima colateral. A vítima é o jornalista Charles Enderlin, correspondente do canal France 2 em Jerusalém, onde vive há quarenta anos. O jornalista não foi atingido por qualquer bala perdida, mas há dez anos luta com a serenidade dos justos para provar que é falsa a versão difundida por grupos de sionistas franceses e americanos de que uma de suas reportagens era uma mise-en-scène.

O caso, que ficou conhecido como o affaire Al-Dura, uniu a ultra-direita israelense, alguns jornalistas franceses, alguns intelectuais pró-israelenses e grande parte da comunidade judaica francesa, além do poderoso Conseil Représentatif des Institutions Juives de France (Crif).

Esses grupos, liderados por dois ou três personagens adeptos da teoria do complô, tentam há dez anos matar profissionalmente um dos maiores jornalistas franceses, autor de notáveis livros sobre o Oriente Médio e um dos mais equilibrados analistas do conflito que opõe israelenses e palestinos. Et pour cause.

Há poucos meses, Charles Enderlin disse ‘basta’ e resolveu tornar pública a história que muitos conheciam sem, contudo, saber de todos os detalhes. Cansado de ver seus filhos e sua família estigmatizados, ele escreveu um livro extraordinário chamado Un enfant est mort (Uma criança morreu), no qual, a partir do título, reafirma a veracidade da morte do menino palestino Mohamed Al-Dura, de 12 anos.

Nesse formidável depoimento pessoal, ele desmonta peça por peça o edifício de falsas verdades construídas pacientemente e divulgadas durante dez anos em diferentes mídias, sobretudo na França e nos Estados Unidos. Enderlin informa no livro que um de seus inquisidores é a Liga de Defesa Judaica, ‘organização criada nos Estados Unidos pelo rabino racista Meir Kahane e que é proibida em Israel’.

A batalha dos detratores

No dia 30 de setembro de 2000, num lugar chamado Netzarim, em Gaza, durante a segunda Intifada, Mohamed Al-Dura foi morto por tiros vindos dos soldados israelenses, enquanto seu pai, Jamal, tentava protegê-lo das balas. As cenas foram ao ar no jornal das 20h do canal France 2, narradas por Charles Enderlin, que estava na Cisjordânia cobrindo outros choques entre palestinos e soldados israelenses. Na véspera, os soldados israelenses tinham atirado em civis palestinos na Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém e os conflitos explodiram na Cisjordânia e em Gaza.

As imagens de Netzarim, em Gaza, foram feitas pelo cinegrafista que trabalha com Enderlin, Talal Abou Rahmeh. Ora, para os detratores de Enderlin, sendo Talal palestino, ele é logicamente um ‘agente da OLP’, suspeito de ter montado um filme para sujar a imagem do exército israelense. Mas, como Charles Enderlin frisa no livro, de texto elegante como seu autor, há anos Talal tem permissão de trabalhar em Israel e nos territórios palestinos e os serviços secretos israelenses nunca tiveram qualquer suspeita em relação a ele. Nem antes nem depois da reportagem em que se vê a morte de Mohamed.

Em torno do caso Al-Dura foram feitos documentários, reportagens e muitas entrevistas para provar que eram falsas as imagens da reportagem de Enderlin. A batalha dos detratores do jornalista – que acusam France 2 e Enderlin de terem divulgado uma montagem feita pelos palestinos – começou nas comunidades judaicas na França e nos Estados Unidos. ‘Como se fosse preciso limpar simbolicamente o exército israelense da suspeita de ter atirado e assassinado deliberadamente uma criança, como se fosse preciso conservar a imagem de pureza imortalizada por Claude Lanzmann no seu filme Tsahal‘, escreveu o jornalista Pierre Haski, que também foi correspondente em Israel, na revista online Rue 89.

A dificuldade de ser um ‘bom judeu’

Dois franceses, Philippe Karsenty e Luc Rosenzweig, sustentados pelo establishment pró-Israel na França, tentam provar há dez anos que a reportagem de Enderlin é uma montagem e que não somente o pai não morreu (o que é verdade), mas o filho também não morreu e vive ainda em Gaza. O menino foi enterrado em Gaza, as fotos do cadáver estão reproduzidas no livro, o pai foi tratado em um hospital da Jordânia e visitado pelo rei, mas os detratores sustentam que os ferimentos do pai de Mohamed são antigos, apesar dos relatórios de médicos que o trataram em Gaza e na Jordânia.

Por outro lado, o exército de Israel nunca levou a questão à Justiça, provavelmente por não ter mais dúvidas sobre a proveniência dos tiros que mataram o menino. Karsenty, no entanto, passou a percorrer os Estados Unidos fazendo conferências pagas nas universidades americanas sobre ‘a manipulação da mídia no affaire Al-Dura’. Há, ainda, quem tente provar que o menino morreu por balas palestinas.

Nunca, porém, os defensores dessas teorias apresentaram qualquer prova convincente. O governo israelense não retirou a carteira de jornalista de Charles Enderlin, como queriam alguns, mas também não tentou apurar a fundo a questão, limitando-se a deixar que a teoria do complô circule pelo mundo.

‘Para ser um `bom judeu´ é preciso aceitar a tese da reportagem encenada no caso Al-Dura?’, pergunta Enderlin no seu livro, ao comentar como é viver há dez anos sob suspeita de não ser um ‘bom judeu’. ‘Acho que as organizações judaicas cometem um enorme erro ao apoiarem essa campanha’, diz o jornalista.

História resumida

Mohamed Al-Dura tornou-se o símbolo da violência israelense contra os palestinos. Para alguns, sua morte, filmada ao vivo, parece uma realidade difícil demais para ser admitida, mesmo quando se sabe que na guerra de 2088-2009, em Gaza, o exército israelense matou várias dezenas de crianças como Mohamed. Mas essa morte era diferente. Ela se deu diante de uma câmera e chocou de tal forma que a foto de Mohamed estava no vídeo da execução do jornalista americano Daniel Pearl por grupos islâmicos no Paquistão um ano depois.

Quanto a Charles Enderlin, ele teve sempre o total apoio do canal France 2 nos tribunais (ele processou Karsenty por difamação). Em 2008, por iniciativa da revista Le Nouvel Observateur, uma petição em sua defesa recebeu dezenas de milhares de assinaturas.

Na internet, um vídeo chamado L’affaire Enderlin resume a história da reportagem que gerou o affaire Al-Dura. Nele, o jornalista Charles Enderlin conta os efeitos sobre sua vida pessoal da campanha contra ele, o que o levou a processar Philippe Karsenty. Nesse vídeo, pode-se avaliar a qualidade dos detratores de Charles Enderlin.

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Jornalista