Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O Recado de Nuno Ramos

Nuno Ramos, artista de múltiplas linguagens, produziu recentemente o seu primeiro trabalho criado para a internet: um vídeo editado a partir da apresentação do Jornal Nacional nos dias 16 de março e 31 de agosto de 2016. As datas não são aleatórias, referem-se, respectivamente, ao noticiário do dia em que vazou a conversa de Dilma Rousseff com Lula quando ele poderia ocupar a casa civil no governo e a aprovação do impeachment da Presidente no Senado.

A edição recorta detalhes em vídeo da apresentação de William Bonner e Renata Vasconcelos, mas a principal intervenção está no áudio. O artista pinçou sílabas das falas da dupla de âncoras de modo a compor a letra de “Lígia”, clássica canção de Tom Jobim lançada em 1974, com a voz afinada no canto de João Gilberto, um dos intérpretes da canção. Uma outra estratégia curiosa da obra de arte veiculada no site é o fato dela só ser divulgada no horário do telejornal de maior audiência na TV Brasileira, às 20:30 horas, uma espécie de anti-streaming e apontando para alguma ironia de concorrer diretamente com o noticiário.

A obra se funda no descompasso entre som e imagem: as sílabas recompondo a canção e mimetizando a dicção de João Gilberto falam de um país que já não há, com referências aos territórios vizinhos ao Jardim Botânico onde estão William Bonner e Renata Vasconcelos em contraste com a tensão expressiva dos apresentadores. Há, pelo menos, duas derivas possíveis. Uma busca as linhas da canção popular brasileira que encontra na bossa-nova o signo da sofisticação, a outra os dilemas enfrentados pela imprensa ao narrar o fluxo de acontecimentos políticos desde de 2016.

Ao transformar o plano do conteúdo, o vídeo realça o plano da expressão dos apresentadores. Há pouco mais de um ano, Nuno Ramos escreveu um diário enquanto organizava uma exposição no centro cultural do Banco do Brasil em Belo Horizonte. O texto foi publicado na revista piauí (edição de julho de 2016) e narra as impressões do artista no convívio social nos dias que antecederam o impeachment de Dilma. O tema do Jornal Nacional aparece, antecipando algo do que estava por vir.

“A verdade é que me defendo do horror (o avesso da tal “paixão pelo possível”) projetando dramaturgia. Tenho esse sentimento, em especial, quando vejo o Jornal Nacional, cujos locutores lembram bonecos com uma mola entre o corpo e a cabeça, que parece sempre grande demais, como num teatro de marionetes (quando ficam de pé, e hoje sempre ficam de pé, parecem achatados no chão). Adoro erros de dicção, gafes, câmeras que entram errado, repórteres paralisados em algum planeta que só a falha tecnológica alcança. Isso não me parece cômico, mas uma espécie de revelação – como aquele barulho da bailarina ao cair sobre o tablado depois de um lindo salto, a que João Cabral alude numa entrevista, como se revelasse a verdade da dança (. . .) Quando Moro divulgou as gravações entre Lula e Dilma, além de tantas outras, o JN tornou-se um prato cheio. Liam ao vivo o pãozinho quente das transcrições que tinham acabado de chegar (as gravações entre Lula e Dilma foram liberadas naquela mesma tarde), mostrando excessiva intimidade, dada a pressa, com a matéria que tinham nas mãos e não no teleprompter (a história do vazamento é tão interessante quanto a do próprio impeachment, mas duvido que seja escrita). Sem perceber transformaram-se, ao longo da transmissão, em atores e não locutores num ato falha memorável. Transpondo a fronteira entre narrar e atuar, já não liam- interpretavam, entoavam, faziam mesmo certa mímica facial, sem aquela distância, falsa ou não, que sempre encenavam, e que a mancha branca na cabeleireira de Bonner, à Susan Sontag, parece avalizar. As dificuldades de timing, pequenas falhas de áudio, entradas em câmara errada acentuavam isso. Haviam perdido a segurança de sua tribuna e aquele platinado parecia parte integrante da ação que pretendiam narrar de longe. Sem que percebessem, era a passagem da imprensa, e da Globo em especial, a um front bem mais explícito, ativo e parcial, que estava sendo encenada (a Veja, de tão planfetária, não precisa encenar nada).”

A narrativa de Nuno na revista piauí e a obra disponibilizada na internet um ano depois indicam o processo de construção criativa do artista. O próprio Nuno Ramos em entrevista recente ao Correio Braziliense explica suas motivações: “Acho que eu queria um pouco uma melancolia grande que vem dessa fusão de dois tempos. Tem o agora de uma espécie de voz múltipla que a Globo tem, que está em toda parte, cantando uma canção lírica onde alguém vai narrando a cidade: havia um lugar de onde olhar (o país) que a gente perdeu e que a imprensa também perdeu. Acho que a imprensa é parte constitutiva dessa crise, ela precisa aprender a se pensar também”.

A escolha de “Lígia”, uma bossa-nova tardia composta nos anos 1970, permanece como uma espécie de enigma. Podemos encontrar uma pista nos estudos da semiótica da canção de Luiz Tatit, para quem o gesto estético da bossa-nova promoveu uma triagem incorporada ao nosso cancioneiro. “Toda vez que um cancionista — roqueiro, pagodeiro, tecno, sertanejo, vanguardista, etc — sente necessidade de fazer um recuo estratégico para recuperar as linhas de força essenciais de sua produção, o principal horizonte que tem à disposição é a bossa-nova.”

O recuo à bossa-nova solar de Tom Jobim num tempo sombrio é também a pista para a imprensa reencontrar seu lugar.E a despeito de toda sorte de tecnologias disponíveis e necessárias, a chave da ordem do olhar pode estar no passado.

O filósofo italiano Giorgio Agamben define o contemporâneo como aquele dissociado do seu tempo: “Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e, é, portanto, nesse sentido, inatual, mas exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo.” O sentido do trabalho de Nuno Cobra é também um recuo estratégico para recuperar as linhas de força de nossa capacidade narrativa.

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Pedro Varoni é jornalista e editor do Observatório da Imprensa.