Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O strip-tease da folia cambial

Quando o discurso teórico bateu de frente com a prática, demonstrando a sua irrealidade, o jornalismo, especialmente o econômico, entrou em piração e começou a fazer o strip-tease ao ritmo do samba do crioulo doido no carnaval 2007.

É o que está acontecendo com a atual política cambial conduzida pelo Banco Central em meio à adaptação ao PAC e cuja cobertura tem sido feita com extrema saia justa pela mídia em geral. O que não se evidencia nas páginas dos jornais é o que está mais claro do que nunca: o BC não tem política cambial, conforme o discurso do câmbio flutuante, porque ele mesmo desmoralizou tal flutuação ao intervir no mercado de dinheiro nos últimos dias.

A mídia, diante da desmoralização completa da fantasia cambial abstrata que adornava pomposamente o câmbio flutuante – cujo brilho nas páginas e telas da mídia ainda o coloca no altar das eminências religiosas –, foi passada para trás pelo próprio Banco Central. Henrique Meirelles deixou o discurso para lá e pediu que a mídia fizesse o que deixara de fazer, ou seja, acreditar no câmbio flutuante. Em plena semana da folia, a fantasia poderá ser exibida em sua essência, em esplêndida nudez.

O neologismo econômico revelou-se necessário para cobrir a realidade com a falsa ideologia. A mídia caiu no engodo desde 1999, quando o câmbio flutuante foi abstratamente criado pelos economistas para adequar, forçadamente, a economia nacional aos parâmetros estabelecidos pelos credores, monitorados pelo FMI e supervisionados pelo governo norte-americano, que manda no FMI. Foi a forma que encontraram para administrar a quebradeira na periferia capitalista que a crise monetária da década de 1980 – juros altos nos Estados Unidos para combater a inflação – provocou.

Os jornais representaram uma perfeita farsa, acreditando, ingenuamente, na existência da flutuação cambial em um livre mercado. As sucessivas intervenções do Banco Central no mercado, nas últimas semanas – e ao longo de todo o ano passado – enterraram a fantasia. Ficou evidente a presença do governo na política monetária. Emergiu a economia política por sobre a política econômica. Os jornais não quiseram investigar em toda a amplitude essa mudança que vem no bojo do próprio PAC – essencialmente, uma demanda da sociedade expressa na reeleição de Lula.

Claramente, os jornais mergulharam na escuridão. Continuaram e ainda continuam pregando o câmbio flutuante, enquanto o Banco Central já deixou para trás o defunto. Na mídia, o câmbio flutuante corresponde a um cadáver insepulto. Não tiveram a esperteza de espantá-lo, como fez o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Caso contrário, já estaria de volta de onde veio, ao Banco de Boston, para cuidar dos interesses do capital financeiro que faturou, nos últimos oito anos, 1999-2007, mais de R$ 800 bilhões em juros, graças ao câmbio flutuante.

Meirelles salvou sua pele, por enquanto, mas deixou a mídia com o couro esturricando na brasa. A sustentação incrível do câmbio flutuante pela mídia, enquanto o dito cujo já deixou o plano material para migrar ao plano espiritual, compromete a honorabilidade da imprensa nacional. Tornou-se mais realista que o rei. Não concluiu que a intensificação dos leilões do Banco Central, para evitar a enchente de dólares em busca do lucro fácil na mais alta taxa de juro do mundo, condenou o câmbio flutuante. Por que a Veja não deu capa com esse assunto espetacular: o desaparecimento da mitologia? Ela e os outros jornais trataram o assunto de maneira banal para preservar a banalidade da flutuação cambial, apenas na aparência.

Esperteza de Meirelles

Se Meirelles não tivesse administrado o câmbio, contrariamente à pregação neoliberal que tem defendido nos últimos tempos, haveria completa desmoralização do PAC e inteira viabilização da oposição para as eleições municipais de 2008 e a presidencial de 2010.

O presidente do BC atuou politicamente e amansou a imprensa no sentido de fazê-la entender que a mexida na política cambial obedece apenas a critérios técnicos, continuando válida, portanto, a tese da flutuação cambial. A mídia abraçou a tese e esqueceu a realidade. Se o câmbio ficasse solto, como continua acreditando a grande mídia, que teima em manter em sobrevida o cadáver insepulto em decomposição, haveria desmoralização completa do governo de coalizão.

Entraria em colapso o comércio externo, emergiria especulação financeira e Lula teria que, correndo, dar um telefonema para W. Bush, como FHC deu para Clinton em 1999, pedindo socorro ao FMI. Evidenciaria que o distanciamento atual do governo relativamente ao FMI é apenas para inglês ver. Somente o FMI, por ordem da Casa Branca, evitaria a explosão de um governo que paga R$ 160 bilhões de juros ao ano e ainda insiste em falar em câmbio flutuante, ao mesmo tempo em que, por um lado, prioriza o pagamento de juros e por outro tenta fazer da Previdência o bode expiatório por apresentar déficit de R$ 42 bilhões.

Não se vê nem de longe reportagens dando conta dos perigos que a abundância de capital externo provoca no país, como acaba de demonstrar a desmoralização da fantasia cambial. O dinheiro, como qualquer outra mercadoria, sai do controle quando há excesso ou escassez. Em outros tempos, como logo após a crise monetária da década de 1980, houve escassez. Agora, ocorre o contrário. Há excesso de dinheiro em circulação global. Nesse contexto, a taxa de juro, naturalmente, é baixa. Absurdo, seria o contrário. Mas, o Brasil, do ponto de vista econômico, vive no reino do absurdo, graças à inestimável ajuda da mídia.

O capital especulativo adora o absurdo, enquanto lucrativo. Ora, se o juro é alto, o mais alto do mundo, no Brasil, e os Estados Unidos sinalizam uma política monetária estável com juro baixo, nada melhor do que faturar no paraíso do absurdo delicioso do juro alto brasileiro, onde a mídia centra a discussão na Previdência Social, cujo déficit não é apenas déficit mas, em grande parte, superávit social, que ajuda a sustentar a demanda agregada. O foco da mídia é o antifoco, que a condena à desmoralização.

A hora de pagar pecados

O BC, que a mídia encara como um deus invulnerável para não descontentar os credores, que são os maiores anunciantes do mercado midiático, errou feio e agora está pagando seus pecados. Já a mídia, que poderia se livrar de seus pecados antes mesmo do que o próprio BC dos dele – se tivesse fazendo, para valer, jornalismo –, insiste no erro, tratando cerimoniosamente o fantasma ambulante do câmbio flutuante. Tem medo até de espantá-lo, quanto mais de bani-lo.

Como o Banco Central é tratado como bibelô pela mídia, cuja maior fonte de informação são os economistas que trabalham para os próprios bancos privados, credores do governo, o BC é quem verdadeiramente consegue o milagre da flutuação relativamente às críticas, que, salvo honrosas exceções, inexistem. É quase uma amarração geral de cachorro com lingüiça. Trata-se de algo como no tempo da ditadura, quando o controle de preços era feito pelos representantes dos empresários no Conselho Interministerial dos Preços, o famigerado CIP.

Os economistas do mercado dizem uma coisa, argumentam em favor da flutuação cambial, – porque o FMI e os credores assim determinam –, enquanto a realidade, como as últimas intervenções do BC têm mostrado, é outra, completamente oposta. Não há o câmbio flutuante. Não sai essa notícia porque os jornais ouvem, preferencialmente, os porta-vozes do Banco Central e os economistas dos bancos privados, que atuam em forma de oligopólio, para sustentar a taxa de juro elevada em nome do combate à inflação.

Os repórteres e analistas praticam o jornalismo que os donos de jornais exigem, ou seja, o antijornalismo. Se tivessem que ouvir as duas partes da realidade, ou seja, o positivo e o negativo da abstração cambial flutuante – que caminham interativamente, dialeticamente, contraditoriamente, em processo de negação –, certamente não teriam espaço, ou os jornais, revistas, rádios e tevês estariam optando pelo verdadeiro jornalismo, mostrando como os fatos se desdobram, derrubando mitos, abstrações e falsas ideologias.

Há uma montagem de notícias feitas pelo próprio mercado em cuja armadilha a mídia caiu e nela se encontra prisioneira. O Banco Central manda fazer uma pesquisa no mercado, a famosa Pesquisa Focus. O mercado, que são os bancos que ganham em cima da dívida do governo, sinaliza taxas de juros sempre em patamar especulativo. O BC, então, sanciona, fixando os demais níveis gerais de ocupação na economia a partir do veredicto do mercado financeiro. Farsa total.

Contudo, esse deus mercado louvado, até à emergência do strip-tease cambial, tornou-se incapaz de sugerir solução adequada aos transtornos provocados pelo câmbio flutuante no momento da enchente monetária que ameaça a saúde do real. Como reclamar se tal situação favorece os credores? Simplesmente ficou demonstrado que o câmbio flutuante tem função: não a de combater a inflação, mas a de sustentar a especulação financeira.

Voz abalizada do craque

Nesse contexto, em que as vozes que dão manchete são as dos economistas que trabalham para os bancos, e não as que alertam para os perigos do jogo especulativo bancário, a mídia deixa de exercer a sua utilidade quando nega a sua própria razão de existir, dando voz aos dois lados da notícia.

Será mesmo verdade verdadeira que o câmbio flutuante existe depois das seguidas intervenções, como tenta fazer a grande imprensa nacional?

Em sensacional artigo, ‘Desmistificando a atual política monetária’, publicado no jornal Valor, 13/01, o economista Yoshiaki Nakano desnuda a situação. Trata-se do mesmo personagem que, durante a campanha eleitoral, a mídia taxou de aloprado por ter alertado para o perigo do câmbio flutuante e ter proposto o que agora o BC faz, ou seja, intervenção na quantidade da oferta de moeda na economia para evitar uma catástrofe econômica face à abundância monetária. Somente tal intervenção poderia compatibilizar satisfatoriamente desenvolvimento com o controle inflacionário correspondente à alma do PAC lulista.

Os petistas, que outrora defenderam essa tese, caíram, na ocasião, de pau em cima de Nakano. Aloprado! O editorial do Estado de S. Paulo, tão petista quanto os mais radicais petistas, foi atrás: aloprado! A mídia inteira, idem: aloprado! Delfim Netto, meses depois da declaração de Nakano, em artigo no jornal Valor, destacou que ele dissera a verdade na hora errada.

Por que aloprado? Os petistas, e toda a mídia, na rabeira, argumentaram que haveria corrida especulativa contra o real. Por isso, catastrofizaram: a inflação voltaria arretada, caso houvesse intervenção no câmbio. Que dirão agora, que a intervenção ocorreu e o dinheiro continua sobrevalorizado e a inflação segue cadente, bem como o próprio risco Brasil? A sociedade foi vítima de papo furado.

O picolé de chuchu, Geraldo Alckmim, inseguro, defenestrou o aloprado, com medo de perder pontos no Ibope ou no DataFolha. Estaria faturando politicamente agora se resolvesse sustentar a verdade do seu assessor. Nakano incorrera no mesmo erro de Malthus: falara a verdade.

A lição da história

Ao longo das famosas cartas que trocou com Ricardo durante cinqüenta anos, na primeira metade do século 18, Robert Malthus destacara que o capitalismo de mercado puro é incompatível com a eficiência que o próprio sistema capitalista desenvolve porque gera insuficiência crônica de demanda global, enquanto processa a sobreacumulação de capital, base fundamental da existência do sistema capitalista. A economia, conforme ele, seria uma ciência lúgubre, triste, infeliz. Para combater tal eficiência, movida pelo desenvolvimento científico e tecnológico, tornara-se necessária, disse, a ineficiência do Estado. Sua utilidade seria a de gerar consumo sem produzir oferta. Manteria, assim, o reinado da escassez e, conseqüentemente, sustentaria elevada a taxa de lucro relativamente à taxa de juro.

Foram, portanto, os gastos ineficientes do governo que deram a Keynes a idéia de, seguindo as trilhas de Malthus, determinar o que chamaria de eficiência marginal do capital, ou seja, o lucro, criado pelo gasto estatal na ineficiência, na economia de guerra, predominante ao longo do século 20 e responsável por determinar o fim do reinado inglês, vigente no século 19, e introduzir o reinado norte-americano no século 20, que se estende, por enquanto, ao 21.

Keynes montou toda a sua estratégia, como ensina Lauro Campos em A crise da ideologia keynesiana, em cima das observações de Malthus, elogiado, com certa inveja, pelo próprio Marx, pois vira antes que o autor de O Capital a função guerreira – gastadora – do governo como sustentação da demanda agregada para além da economia de mercado, condenada à morte pela sua própria eficiência, como ficaria comprovado no crash de 1929.

Reconhecer, como fez Malthus, que para combater a eficiência do capital faz-se necessária a ineficiência do Estado, é falar uma verdade incômoda. Keynes, com sua solução malthusiano-keynesiana, nascida para tirar o capitalismo da crise de 29, reverenciou Malthus, mas destacou que ‘precisamos mentir para nós mesmos, pelo menos por mais cem anos, sobre o que é útil e verdadeiro. Se deixa de ser útil, deixa de ser verdade’. É o que acontece com a mídia quando insiste em dar sobrevida ao câmbio flutuante. Ao sustentar o que se tornou inútil, condena-se à inutilidade.

A mídia detesta Nakano porque, na contramão dos economistas porta-vozes dos bancos, incomoda. Os livros-textos, explica, dizem uma coisa, mas a realidade diz outra. Os livros-textos ficam com a mídia, que os venera. No regime de metas inflacionárias, como pregam os livros-textos, adequados aos interesses dos bancos e do FMI, o Banco Central fixa a oferta de moeda nacional e o mercado estabelece o seu preço em moeda estrangeira, a taxa de câmbio. Teoria, abstração.

O BC aperfeiçoou a abstração: no regime de metas inflacionárias, diz Nakano, ao invés de controlar a oferta de dinheiro – os chamados agregados monetários –, ele fixa a taxa de câmbio para controlar a demanda agregada e, portanto, a inflação. Assim, conclui lucidamente, não tem controle sobre a taxa de câmbio. Resultado: a intervenção, no mercado, pelo BC, comprando ou vendendo moeda, é uma ação nada neoliberal, para evitar a escassez ou a abundância, e que se torna essencial quando necessária, como ficou comprovado nas últimas semanas.

‘Temos que esclarecer que o Brasil adota hoje, de forma plena, uma política de meta de inflação, associada a um regime de taxa de câmbio administrada’, sentenciou Nakano. Voz de craque.

A taxa de câmbio é a âncora do real, ou seja, da inflação, e não a taxa de juro, que o BC mantém alta, não para controlar a inflação, mas para garantir, na prática, os elevados lucros dos aplicadores nos papéis do governo. Falou demais, como diria Delfim.

No entanto, disse o que os petistas diziam quando estavam na oposição e dizem agora quando pressionam o presidente do BC, Henrique Meirelles, a mudar a política. Nenhum jornal ou revista destacou que a intervenção promovida por Meirelles, certamente sob pressão de Lula, foi uma jogada errada. Renderam-se à prática indispensável, mas não dispensaram o discurso, pois manter as aparências passou a ser o papel fundamental da mídia.

Caso contrário, teria que dar o braço a torcer para os presidentes latino-americanos que intervêm no câmbio em nome da saúde da economia, como são os casos de Nestor Kirschner, Michele Bachelet, Hugo Chávez e, agora, Lula. A autonomia do BC virou mero discurso. Também, não passa de mera abstração, que o mercado financeiro – e a mídia – gostariam que fosse verdade, mas não é. Nakano, para ficar com a coerência, se essa existisse entre os petistas, seria o candidato natural deles para a presidência do Banco Central.

Se fosse o caso – por que não? – de artigo de colaboradores de jornais dar manchete do próprio jornal, o artigo de Yoshiaki Nakano, ex-secretário da Fazenda do governador Mário Covas, mereceria as honras porque marcou época. Desmistificou o trivial variado que entorpeceu o jornalismo econômico ao longo da Nova República, subordinada ao Consenso de Washington.

O disfarce delfiniano

Na mesma edição em que Valor publica o artigo histórico de Nakano, que tira a mídia do seu próprio torpor neoliberal, Delfim Neto discute a autonomia do Banco Central, mas de forma cabulosa, como é da sua brilhante especialidade, na arte de vender argumentos definitivos para a mídia, que, reconheça-se, às vezes, os descarta, por inverossímeis, como o do déficit nominal zero, conceito fantasmagórico que teria a função de enganar a opinião pública. Seria acreditar em Papai Noel.

Delfim, no entanto, diz em seu artigo, em outras palavras, o mesmo que disse Nakano, mas o faz com jeito, dando a entender, por meio das estocadas, que gostaria de ter o cargo para si – onde agora atua Meirelles – de forma política, e não meramente econômica. Como político, no entanto, Delfim, um gênio do disfarce, busca não dizer abertamente a verdade que Nakano está dizendo com surpreendente autoridade política, e não apenas econômica. O ex-deputado e ex-czar da economia fala por entrelinhas, para não assustar os credores, mas joga um tempero nacionalista peemedebista em cima deles, ao ressaltar que é preciso combater a concentração – ou seja, o oligopólio bancário, expressão proibida no noticiário econômico.

A mídia foi furada por Nakano. Ele evidenciou o que ela tem procurado encobrir: que é possível alcançar o crescimento sem pressão inflacionária, mantendo o controle monetário em proporção razoável ao ajuste fiscal. O contrário é que se vai revelando impossível, que é a razão irracional do câmbio flutuante que a mídia abraçou e continua abraçando, enquanto vai realizando seu próprio funeral, dada a insuficiência de argumentos para sustentar a tese abstrata da flutuação cambial.

A radicalidade neoliberal dos editorialistas da grande mídia em defesa do câmbio flutuante, mesmo depois da sua morte por inanição, é de verdadeiro infantilismo econômico. Pelo que transpira da cobertura sobre as decisões de intervenção do BC para tentar evitar sobrevalorização excessiva do real – e seu conseqüente colapso –, os comentaristas e editorialistas, salvo honrosas exceções, tratam a intervenção como o seu oposto, uma não-intervenção. Saem fora do assunto, olimpicamente. Seguram na mão da teoria do câmbio flutuante dando adeus a sua credibilidade. Hilário.

A mídia compactua com as declarações do BC, e não com as ações do BC. Estas desmistificaram aquelas. Isso, porém, a mídia deve à sociedade, a qual continua enganando. Se a mídia, fora da realidade, continua acreditando no câmbio flutuante, por que o BC e o mercado deixariam de alimentar essa doce ilusão, para se verem livres da crítica?

A fuga da verdade

O artigo de Nakano, e também o de Carlos Lessa, igualmente, no Valor, quarta-feira, 14/01, colocam em debate o pensamento de expressiva parte da opinião pública que a grande mídia cuida de sufocar para que prevaleça o ponto de vista do capital financeiro sobre o do capital produtivo, que interessa ao empresário e ao trabalhador e cujo destino vai se estreitando e unificando, como arma para fugir da canga financeira.

Vergonhosamente, a imprensa abraçou o pensamento neoliberal vendido de Washington, passado pelos banqueiros e ministrado e vigiado pelo FMI, mesmo à distância. Esqueceu o pensamento nacional que se desenvolveu no período militar de defesa chinesa dos interesses nacionais. A estratégia dos militares era a mesma da China de hoje – câmbio desvalorizado, controle flexível da inflação e política tributária atrativa ao investidor –, a qual os editorialistas da grande imprensa reverenciam. No entanto, foi essa grande mídia que optou pelo pensamento neoliberal que agora o Banco Central cuida de remover ao interferir no mercado de câmbio. Ficou com a brocha na mão sem escada. Foi derrotada pela aparência, por abandonar a essência do jornalismo. Não apenas o câmbio flutuante faz o strip-tease cambial na avenida; a mídia também está completamente nua.

O fato que ela não quer debater com mais intensidade é o que levanta Lessa: ‘A expansão do gasto financeiro do setor público veta o investimento e premia a acumulação financeira.’ Tal prêmio, diz, sustenta a vida nababesca de pouco mais de vinte mil famílias bilionárias, que mamam na teta estatal enquanto pregam a privatização total, incorrendo em completo contrasenso explícito.

Os jornais não estão revelando em suas reportagens diárias a briga político-ideológica que o PAC desencadeou. Evidentemente, Henrique Meirelles, que deu uma derrapada ao apoiar redução tímida dos juros depois do lançamento oficial do PAC, percebeu que cairia fora do cargo se deixasse prevalecer o discurso abstrato das metas inflacionárias determinadas pela flutuação cambial.

Tal discurso confronta politicamente a sociedade à qual Lula procura responder por intermédio do PAC. Os jornais e revistas, em vez de fazerem jornalismo político da economia política, se aferram às tecnicalidades da política econômica em coberturas esquizofrênicas que cuidam de dar vida ao que está morto. Meirelles interveio no câmbio para evitar sua demissão por conta da desorganização que a predominância do abstrato sobre o concreto, que a mídia cuida de defender, promoveria.

O jogo da verdade

De momento, o que está em jogo no plano da cobertura jornalística é saber se os jornais, rádios e tevês se aferrarão à ideologia do câmbio flutuante, que não existe mais, ou debaterão os antagonismos que essa fantasia, agora desnudada, despertou na essência da sociedade, no momento em que todos são chamados à proposta de desenvolvimento econômico mais acelerado, como, politicamente, norteou o presidente da República.

Não se faz, entre os editorialistas, sequer o exercício mental de que talvez em clima de PAC satisfatório – determinado pelo antagonismo contraditório, dialético, e não pela falsa objetividade neutra, mecanicista, que representou o câmbio flutuante, – de que outras alternativas surjam, por exemplo, para combater o déficit da Previdência. Insistir na busca do equilíbrio neoliberal, o qual a mídia elegeu como verdade religiosa, quando tal teologia desmoronou-se na fantasia do câmbio flutuante, é optar pela esquizofrenia.

Chegou a hora de discutir abertamente o que onera mais a sociedade: as contas não-financeiras ou as contas financeiras do Estado brasileiro?

Enquanto o déficit anual da Previdência é de R$ 42 bilhões, constituindo-se a complexidade de toda uma superestrutura social, política e econômica, difícil de ser abordada, o déficit financeiro do governo sustenta o pagamento de R$ 160 bilhões por ano de juros ao sistema financeiro, que promove o bem-estar de meia dúzia de apaniguados, enquanto a totalidade da população brasileira fica exposta a todos os tipos de apagões, em razão da predominância dos interesses financeiros sobre os interesses da produção.

O gasto não-financeiro, em forma de déficit previdenciário, representa pouco mais que 25% do gasto financeiro do Estado com os serviços da dívida. Comparar, como destaca o filósofo japonês Tomio Kikuchi em Estratégia, é a base do aprendizado. A comparação, diz, leva à flexibilização que se sobrepõe às ideologias. O modelo neoliberal do câmbio flutuante é o retrato da inflexibilidade, que destrói as energias criativas da mídia, responsável pela formação alienada da sociedade relativamente aos assuntos econômicos.

Por que a mídia não analisa criticamente o claro oligopólio bancário que impõe a primazia do interesse do orçamento financeiro sobre o orçamento não-financeiro do Estado nacional?

Simples: atuando como oligopólio, a mídia não consegue – ou não pode, ou não tem moral, ou é impotente – abordar os demais tipos de oligopólio que dominam a economia, a começar pelo oligopólio bancário, que produz lucros em penca, como começam a evidenciar os lucros dos bancos no ano passado, superiores a 20% ao ano, enquanto o PIB cresce vergonhosos 2,8%. Seria cômico, se não fosse trágico, o predomínio do absurdo econômico que prevalece na bancocracia brasileira abençoada pela mídia.

Como o oligopólio midiático vai discutir os temas que visam combater os oligopólios econômicos, se a saúde financeira daquele imbrica na existência destes?

O debate sobre a democratização dos meios de comunicação crescerá, naturalmente, como algo necessário para dar combate ao oligopólio midiático, em nome do bem público, que é a instância na qual o Estado intervém, para preservar o interesse maior da sociedade: a sua liberdade, mesmo que sempre tardia.

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Repórter do Jornal da Comunidade, Brasília, DF