Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Olho na mídia, o único Conselho

Com o desfecho inevitável, pode-se desde já adiantar que o Conselho Federal de Jornalismo prestou um formidável serviço à imprensa. Mesmo condenado à morte na gaveta, o projeto e seus mentores acionaram involuntariamente o mais importante debate sobre a imprensa das últimas décadas. A democracia brasileira, penhorada, agradece.


O lento e inexorável engavetamento, ao contrário do que possa parecer, é extremamente eficaz. Quanto mais tempo o fantasma do CFJ perambular pelos corredores do Legislativo, mais forte será a convicção de que a poção mágica para curar os males da nossa mídia não passa pela criação de uma autarquia síndico-governista no velho estilo pelego.


Em matéria de democracia não existem poções mágicas, varinhas de condão ou medidas sumárias. Valem apenas os tratamentos continuados, persistentes. Sobretudo convergentes. Em vez de corrigir grandes e pequenas mazelas, o CFJ criará da noite para o dia um enorme e irreparável pântano no qual afundarão não apenas a mídia e os mediadores mas também a República, órfã de uma mediação autônoma.


São incontáveis os efeitos salutares da Celeuma CFJ; alguns levarão tempo para aparecer, outros manifestaram-se imediatamente. O mais visível: a primeira expressão pública contra o projeto não partiu das empresas de jornalismo, mas dos jornalistas. Basta compulsar a reação dos jornais no fim de semana 7-8 de agosto.


Quem botou a boca no trombone foram os jornalistas independentes – os editoriais dos jornais vieram depois. E como independência entenda-se um espectro ideológico que se estende da centro-direita, passa pela centro-esquerda e alcança a esquerda tradicional.


Este é um dado que não pode ser desprezado: a mídia brasileira conta com um invejável pelotão de profissionais maduros, competentes nas suas especialidades, capazes de engalfinhar-se em questões partidárias ou até pessoais mas aptos a articular-se numa renhida resistência a qualquer tentativa de reviver o autoritarismo.


Formados nos Anos Dourados, vítimas da ditadura, agora unem-se através da consciência de que existem inúmeras opções para o País do Futuro, e nenhuma pode ser antidemocrática. A sedução totalitária foi eliminada. Pode ser encontrada em bolsões e grotões fundamentalistas mas não está na imprensa. E isto por obra de jornalistas, os donos de jornais chegaram depois. Já houve momentos em nossa história recente que o processo foi inverso.


A questão do trololó


O que nos leva ao 5º Congresso da Associação Nacional de Jornais (ANJ). Os 25 anos de fundação da entidade e as justas menções gratulatórias não podem servir para enterrar os episódios que provocaram o seu nascimento. Foi um parto induzido. O vetor que provocou a criação de uma entidade patronal de jornalismo foi a greve proclamada pelos jornalistas profissionais de São Paulo e logo apoiada pelos cariocas.


A desastrosa parede – quem assim a classificou foi o próprio presidente Lula ao lembrar-se do seu passado como líder sindical – ocorreu em maio de 1979. A ANJ foi fundada logo em seguida, em agosto daquele ano. Não deu para disfarçar, foi uma clara reação em cadeia, causa e efeito. Pá-pum.


Os então-chamados ‘radicais’ (hoje seriam xiitas) queriam um confronto e descobriram, dias depois, que o confronto serviu apenas para mostrar que é possível fazer jornais sem jornalistas (quando a internet sequer existia).


A doidice daqueles dirigentes sindicais – alguns deles posteriormente premiados com sinecuras na ANJ – levou o patronato a vencer rivalidades e antipatias para finalmente fundar uma entidade corporativa capaz de reunir as maiores editoras de jornais e revistas (a ANER, que hoje congrega editoras de revistas, veio depois).


Não chega a ser desastroso, ao contrário, é indispensável para a democracia que a sociedade conheça a opinião dos empresários de jornal, de modo a compará-la com a outra emitida direta ou indiretamente através das suas páginas.


O que a ANJ teve de danoso foi aquele conjunto monolítico de decisões, tipo rolo compressor, que acabou por marcar decisivamente a ‘abertura’ política. Ao invés de uma aposta na qualidade e nos valores jornalísticos vigentes mesmo durante o regime militar, foi declarada uma ‘limpa’ nas redações.


O ‘lixo da história’ (para usar a expressão de um dos jovens empresários que conseguiram montar a ANJ) – isto é, os profissionais mais experientes e justamente aqueles que resistiram à insana greve – foram paulatinamente afastados. A democracia que se avizinhava não precisava deles, acreditavam os barões. O ‘rejuvenescimento das redações’ veio junto com o endeusamento ao marketing.


Um quarto de século depois, aquela juventude dourada aí está – encanecida, desiludida, desempregada ou terceirizada, amargando a ressaca da bolha marqueteira da qual foi instrumento e vítima.


Desapareceu naquele momento o incipiente debate sobre a mídia iniciado em meados dos anos 1970, e não apenas por determinação dos generais, mas por capricho e conforto do patronato. Ou de parte importante dele. A cortina de silêncio impediu que se discutisse a greve ou a criação da ANJ. O endividamento das grandes empresas, que começara pouco antes, passou em brancas nuvens. E hoje, quando a ANJ comemora os seus 25 anos, ninguém estranha o Oitavo Mandamento do seu decálogo de objetivos:


Construir sinergias, integração entre as áreas comercial, de circulação e editorial para a conquista de novos anunciantes.


É este o sonho dos empresários de comunicação? E quando no Décimo Mandamento determina-se que os jornais devem ‘formar o leitor de amanhã’, o modelo é o Folhateen, o Globinho, Estadinho e outros trololós infanto-juvenis? Da festa da ANJ só apareceram as lantejoulas. A entidade mereceria uma discussão em profundidade sobre o futuro da palavra escrita nas mãos de gente que não tem o menor apreço pela palavra escrita.


A questão do ombudsman


É por causa deste silêncio em torno do essencial que devemos saudar a ruidosa Celeuma do CFJ. Graças à intensidade de um debate que transbordou dos meios especializados e alcançou a sociedade criou-se a noção de que os problemas da nossa mídia jamais serão resolvidos por uma autarquia policialesca, mas poderão, sim, ser equacionados no momento em que a questão da concentração dos meios de comunicação e da propriedade cruzada começar a ser seriamente encarada pelo Congresso e pelo governo federal (poder concedente de licenças para rádio e TV).


Estamos aprendendo a observar a imprensa, e isto coloca o Brasil na vanguarda da democratização da mídia.


A apresentação de Oswaldo Martins como ombudsman da TV Cultura – numa série de anúncios para a edição do Roda Viva, na segunda-feira (20/9) – significou uma consolidação do processo de retirar dos meios de comunicação o status de tabu. Mídia e mediadores, jornais e jornalistas finalmente sujeitam-se ao picadeiro crítico. Perderam o privilégio de estar acima de qualquer suspeita. São falíveis.


Ao inaugurar com uma rede pública de TV o sistema de ouvidorias televisivas, passaremos a descortinar a distância que separa as redes comerciais das redes públicas. A televisão, quem diria, vai aprender a ouvir e a falar. E por intermédio de um ator, até agora desconhecido: o telespectador. Sem censuras, controles, conselhos [veja abaixo remissão para entrevista com Osvaldo Martins, nesta edição do OI].


A questão da representação


Todos os debates são bem-vindos. Da aparentemente malograda tentativa de controlar o exercício do jornalismo por meio de uma corporação sindical reacendeu-se o debate sobre a legitimidade da Federação Nacional de Jornalistas para falar em nome dos profissionais de imprensa. Levantaram-se questões fundamentais adormecidas pela inércia ou sufocadas pela prepotência dos sindicaleiros profissionais e que, no fundo, estão na origem dos equívocos gerados pela idéia do CFJ.


A mais importante dessas questões é o conflito decorrente da existência, nos quadros dos sindicatos de jornalistas, de duas categorias diferenciadas: a dos profissionais que trabalham nos veículos jornalísticos e a dos profissionais que trabalham em empresas não-jornalísticas. São raros os países onde existe a perigosa concomitância – o Brasil é um deles. Este é um ineditismo não muito confortável e nada auspicioso.


Este Observatório vem tratando da perigosa duplicidade há anos, inclusive quando foi noticiada a audiência concedida pelo presidente Lula à Fenaj para a apresentação do projeto original do CFJ (mais tarde copidescado pela Casa Civil) [remissões abaixo].


Quem deu a necessária dimensão à contradição nuclear dentro da Fenaj foi o jornalista Eugênio Bucci, presidente da Radiobrás, empresa pública de mídia ligada à Secretaria de Comunicação e Gestão Estratégica da Presidência da República, na sua intervenção durante o Congresso da ANJ [remissão abaixo].


Eugênio Bucci é favor do CFJ mas também a favor da separação sindical. Esta é uma ressalva essencial e definitiva, porque antes de entrar no mérito do projeto do CFJ ela questiona a validade da entidade que o gerou e nele deixou marcas indeléveis. Bucci tem sido enfático: impossível conciliar num único código deontológico os interesses de profissionais que trabalham em empresas jornalísticas (públicas ou privadas) e os interesses de profissionais que trabalham para empresas não-jornalísticas.


O interesse público nem sempre coincide com os interesses particulares de entidades comerciais, industriais ou prestadoras de serviço. Mais do que isso: em situações-limite (como esta criada pelo CFJ) esses interesses são claramente antagônicos.


Um sindicato ou uma federação de sindicatos de jornalistas não podem dividir suas agendas. Não podem, sobretudo, dividir sua fidelidade. Seus compromissos são com os compromissos dos jornalistas. Por mais afinados que estejam ou não com os projetos do governo, a Fenaj ou o Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal não poderiam assistir tão passivamente à exoneração da jornalista Vera Rotta dos quadros da Secretaria de Comunicação, por ter manipulado declarações do ministro Gilberto Gil no boletim eletrônico Em Questão.


A redatora juntou dois pronunciamentos feitos em dias e contextos diferentes, mas não inventou coisa alguma. E admitiu o erro. Mas como uma das declarações do ministro da Cultura foi forte demais – no tocante ao ‘fascismo dos conglomerados de mídia’ –, a grande imprensa armou um bruto escarcéu e o governo, já escaldado, preferiu colocar uma pedra sobre o assunto. Bode expiatório clássico. Por isso, enterrado em silêncio.


Por que não se discute o caso publicamente? Quantos são os veículos privados que, em casos semelhantes de adulteração de informações, admitem o erro e anunciam a punição imposta aos responsáveis? Não é necessário um Conselho de Jornalismo, regional ou federal, para discutir o ocorrido. Um bom sindicato seria o suficiente.


Ou, na sua ausência, a genuína disposição de manter o olho aberto e o espírito atento. Observar é a melhor forma de intervir.