Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os vampiros do solstício

Na véspera de atingir o ponto mais baixo no horizonte norte (solstício de inverno), a luz do sol penetra rasante e dourada pelos vidros da janela. Os jornais estão sobre a mesa do café da manhã com seus relatos tenebrosos, capazes de arruinar um dia inteiro, se você baixar a guarda.

O presidente do Congresso brasileiro, Renan Calheiros, ex-tropa de choque de Fernando Collor de Melo, é destaque tanto na Folha de S.Paulo quanto no Estado de S.Paulo. A Folha noticia que ‘pressão contra Renan aumenta no Congresso’. O Estadão é mais contundente: ‘Aliados abandonam Renan e cresce pressão por renúncia’.

Difícil não relacionar a situação a uma metáfora antiga que veio do mar: os ratos abandonam o navio quando se dão conta do naufrágio.

Os solstícios – tanto de inverno quanto de verão – estimularam inúmeras celebrações ao longo da história, entre elas o costume de se fazer fogueiras para cultuar o sol. Hábito pagão, acabou transferido para o cristianismo, presente nas comemorações do Natal e nas festas juninas. Neste segundo caso, as fogueiras antigas invocavam uma reanimação do sol, na noite mais longa do ano, ameaçando a continuidade da vida.

Manipulação de recursos públicos

Vivendo nas cidades, sem relação quase nenhuma com a natureza, a maior parte das pessoas não se dá conta do solstício. Ninguém mais rompe a terra com um arado e lança sementes nos sulcos, de olho no céu, observando o fluxo das estações. Trabalhamos, cada um, em sua especialização: um frentista enche tanques de combustíveis dezenas de vezes a cada dia. Um caixa de banco carimba papéis, recebe e entrega dinheiro a pessoas de quem nem sabe o nome. Um padeiro assa pães para desconhecidos e um entregador de jornais atravessa mesmo a madrugada mais longa do ano com sua carga de relatos de todas as partes do mundo.

A história de Renan é a mais importante e por isso está em destaque na primeira página.

Na Faixa de Gaza, o que já era dramático ficou ainda pior. Mas esse retângulo irregular do Mediterrâneo, ligado ao Egito e envolto por Israel, está longe demais para maiores preocupações.

Renan está em Brasília e as atitudes dele, mesmo as mais íntimas, como ir para a cama com alguém, repercutem no cotidiano de mais de 180 milhões de brasileiros. Renan, mostram evidências policiais, manipulou grosseiramente documentos que deveriam provar sua inocência numa história que, em última instância, envolve a manipulação de recursos públicos e assim afeta cada um de nós.

‘Fazer uma besteira’

Uma estagiária de Direito sai para o trabalho e alguém deve abrir o portão que separa o jardim da casa onde ela vive da rua por onde circulam desconhecidos: talvez o frentista, o caixa de banco, o padeiro ou o entregador de jornais, que já concluiu sua tarefa. No meio-fio uma desconhecida, cabelos grisalhos, em posição fetal, como se ainda não tivesse chegado ao mundo, chora com o rosto oculto entre dedos nodosos e trêmulos. Você pode fechar o portão, com a partida da estagiária de Direito, e fazer de conta que a mulher em posição fetal não é de sua conta. É só uma desconhecida.

Mas você pode não se comportar assim.

Então você se aproxima e pergunta se está tudo bem, ainda que a luz dourada do dia ilumine em sentido contrário.

– A senhora está com fome?

–Não estou com fome. Estou desesperada – é a resposta que sai por entre os dois trêmulos.

– O que aconteceu?

– Meus meninos estão sem ter o que comer. Vim pedir dinheiro emprestado a um conhecido, mas não pode ou não quis emprestar – lamenta-se. Dá vontade de fazer uma besteira. Só isso, uma besteira, e ficar livre de tudo – continua a mulher, na incômoda posição fetal.

‘Meus meninos foram assassinados’

Você pensa por dois segundos e pede a ela que espere um pouco.

Ao lado dos jornais, na sala inundada pela luz dourada, felizmente há pão, leite, queijo, café e frutas. O perfume do café recém-preparado se mantém, como a névoa que ainda não se dissipou. Seria um dos prazeres da vida na manhã luminosa, não fosse a mulher encolhida como um animal friorento no meio-fio. Você prepara uma xícara quente de café e leite misturados, ainda que pessoalmente deteste uma bebida como esta. Preenche um bom pedaço de pão com queijo e manteiga e oferece à desconhecida.

Não é um ato de caridade, como diria o papa em suas recomendações aos motoristas para se comportarem como gente. Você não está pagando pequenas prestações para um dia ter seu espaço garantido no céu. Não há a mínima ilusão quanto a isso. A verdade é que uma parte de você, uma parte da sua humanidade, está sentada à sua frente como num estranho jogo de espelhos e chora como uma criança envelhecida. A criança envelhecida recusa o café com leite. Diz que não pode tomar nem comer por problemas no estômago. Pede que o sanduíche seja embrulhado para os ‘meninos’.

– Quantos filhos a senhora tem? – você pergunta desconfiado, com receio estúpido de estar sendo enganado pela figura encolhida.

– Não tenho mais. Meus meninos foram mortos, assassinados. O que tenho agora são meus netos e eles estão com fome.

Os miseráveis são mais fragilizados

Você calcula por mais alguns segundos e então se decide por uma importância capaz de garantir um básico por pelo menos duas semanas. A mulher aceita embaraçada, sem conter o choro e você retorna para a mesa iluminada pelo sol. Recolhe os jornais e sobe rapidamente para se barbear, tomar o banho e iniciar o dia de trabalho que tem pela frente. Antes disso, por trás dos vidros, você observa a figura encolhida no meio-fio. Ela hesita, como se tivesse a opção de não se levantar, sair dali e voltar para a casa com alimento ao menos para as duas semanas seguintes.

Ao dobrar os jornais você revê a página onde aparece uma das fazendas de Renan, o presidente do Congresso, suspeito de negócios sujos e relação promíscua com lobistas num jogo perverso que acaba desabando sobre milhões de miseráveis. Pesa a cada um de nós, mas os miseráveis estão mais vergados sob o peso do mundo e por isso mesmo são os mais fragilizados. A mulher lá fora é a evidência clara desta situação.

A população precisa reagir

No banho, sob a chuva morna que anestesia seu corpo da realidade dura do mundo por alguns minutos, você rememora os relatos dos repórteres Expedito Filho e Catia Seabra, do Estadão e Folha, que levantam informações sobre o presidente do Congresso no interior de Alagoas, área de influência política do seu clã. Torce para que eles e outros repórteres mergulhem fundo no trabalho que fazem e auxiliem, com seus relatos, num xeque-mate ao coronel travestido de senador. Renan é uma criatura oficialmente extinta, que insiste em sobreviver. Um tiranossauro rex sem presas, depois do impacto do asteróide e a névoa que encobriu o sol.

Você rememora as leituras dos últimos dias e se sente vítima de um banquete de vampiros reunidos no Planalto Central. Surpreendentemente, passaram despercebidos às centúrias de Nostradamus. Como pode ser? Na impossibilidade de balas de prata e estacas de madeira para varar seus corações sem escrúpulos, você se dá conta de que a única solução é a luz dourada do sol. Expor os vampiros à luz, neste momento, parece ser a única solução.

Para isso a imprensa deve se mostrar à altura de suas obrigações. E a população, consciente de seus direitos de autodefesa. Você pode pensar que a população está exaurida de tanta sangria. Os abusos chegaram a tal ponto que a vampiragem nem disfarça mais suas brilhante presas pontiagudas. Agem com despudor completo. A população precisa reagir. Se não por iniciativas de consciência, ao menos por instinto de sobrevivência. Sem isso os vampiros se sentirão definitivamente legitimados.

Eles e seus comparsas das trevas.

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Jornalista