Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Por falar em abusos

Quem olha de fora, não entende muita coisa. Fica parecendo que a relação do governador acreano Binho Marques (PT) com a imprensa azedou nos últimos dias, por conta da publicação das acusações contra o assessor Francisco Pianko. O caso é realmente escabroso, mas típico na vida futriqueira da província. Um assessor do governo é acusado de abusar sexualmente de menores, acusação gravíssima que deve ser investigada em segredo, como manda a lei e por motivos óbvios. O caso chega ao conhecimento da imprensa e os repórteres se apressam em colocar o microfone na boca do promotor e também do acusado porque, afinal, deve-se ‘ouvir o outro lado’.

Mas há detalhes: a acusação foi feita por uma pessoa que tem, há vários anos, uma rixa política e pessoal com o acusado, apoiada por uma advogada que é figurinha carimbada, bem conhecida de outros carnavais. E foram elas mesmas que ‘vazaram’ o assunto para a imprensa. Que os repórteres jovens e inexperientes queiram transformar em notícia o que pode ser apenas baixaria, tudo bem; mas que editores e colunistas antigos e calejados embarquem nessa ubá rachada e passem a recomendar, solenes e pomposos, que o governador afaste o assessor a bem da moralidade, aí já passa da conta.

Afinal, em denúncias anteriores, envolvendo seus patrões ou aliados políticos, esses mesmo jornalistas sacavam do bolso velhos chavões como ‘todos são inocentes até que se prove o contrário’. Sempre foram acostumados a publicar os desmentidos sem terem publicado as acusações. E em casos envolvendo seus colegas de profissão, mesmo que tivessem sido presos em flagrante, num motel, usando drogas em companhia de crianças, jamais publicaram uma linha para não ‘promover um linchamento moral’.

Ao que parece, foi com esses jornalistas que o governador perdeu a paciência. A eles se referiu, num discurso em solenidade pública, dizendo que estão ‘vendendo uma moralidade que não sei de onde tiram, em suas vidas’.

Foguetório e tiroteio

Coisa muito boa no Acre é que não há necessidade de citar nomes, cada um já pega sua carapuça. Um acha que o governador estava ‘nervosinho’, outro que foi ‘destemperado’ e todos temem a volta da censura, ó coitados, eles que tanto sofreram com a ditadura e já comeram o caviar que o diabo amassou em governos passados. Atitude mais esperta é daqueles que não passam recibo, simplesmente esvaziam o assunto e tocam o barco adiante. Esses arranca-rabos são passageiros, tem que acontecer de vez em quando, no fim do mês o governo repassa a grana, os jornais publicam o release da assessoria e tudo volta às boas. Não é sempre assim?

Seria, se assim fosse. Mas desta vez há sutis diferenças. Vou tentar ser explícito, sem ser pornográfico. Começo pelo fato, um tanto incomum no Acre, do governador ter feito suas declarações no discurso de lançamento de uma grande obra, a tal quarta ponte de Rio Branco, na presença dos barões da política e da economia. Binho lembrou que as grandes obras no passado foram oportunidades para a corrupção: ‘Hoje tem muita gente ganhando dinheiro no Acre, mas honestamente’.

Devemos dar dois descontos, uma para o governador garantir a honestidade de seu próprio governo e outro para o velho humor socialista que considera ‘ganhar dinheiro honestamente’ uma impossibilidade teórica. Fora isto, o recado é bem claro: todos estão contentes e satisfeitos, então controlem a ganância, mantenham o clima de acordo político e não deixem que os secretários, técnicos e assessores sejam jogados às feras porque são eles que se esforçam para que todos tenham lucro. (Pianko não é o único a ser processado, há vários secretários e assessores suportando calados acusações que deveriam ser dirigidas a outros.) Em resumo, o governo trabalha para vocês mas não o tratem como um empregado pois, afinal, não é o governo que depende de vocês -vocês é que dependem do governo.

Binho referiu-se aos ‘aliados’, relembrou o ‘projeto’ que começou a ser construído em 1990, com a primeira campanha de Jorge Viana e repetiu o mantra ‘não vamos nos dispersar’ para esconjurar um tempo em que no Acre dominava a lei de ‘cada um por si’. Com quem estava falando e qual era o recado? Com os chefes políticos que já começam o foguetório e o tiroteio eleitoral, disputando posições nos bastidores ou à luz dos holofotes mas com o governo garantindo a munição. Todo mundo quer inaugurar ponte, entregar casa, abrir escola, distribuir remédio.

Projeto preservado

O governador não faz falta na solenidade, mas viro bicho se não me convidarem. O técnico elaborou e negociou o projeto, aplicou o dinheiro e contratou a obra, preparou a festa e contratou os músicos mas, no final, esqueceu de botar o meu nome no folder, um absurdo! Meu nome, minha família, minha empresa, meu partido, minha igreja, meu município… todo mundo é dono de um pedaço mas acha pequeno.

Como a imprensa entra nisso? Ora, a imprensa é um playground pago pelo governo, onde todos se divertem e cada um tem o seu brinquedo. Em cada jornal ou emissora, há jornalistas a serviço dos chefes políticos. Quem são os seus donos? Como diz o fado, ‘não sei, não sabe ninguém’ além dos próprios, é claro. Daí o governo faz algo importante -tem que escrever e filmar porque nenhum jornalista aparece- e a matéria sai num cantinho escondido enquanto as manchetes são dedicadas às viagens dos figurões que, aliás, ficam também com as colunas sociais e notinhas políticas e até esportivas. O povo tem a página policial.

A insatisfação, portanto, não é de hoje e nem apenas com ‘a imprensa’. Para explicar, vou ser duas vezes indiscreto. Primeiro, revelando um comentário que saiu da boca do Binho para a orelha de seu secretário Aníbal Diniz: ‘Não me incomodo com os jornalistas sem moral, mas com os que financiam a moral dos jornalistas’. Tomaram?

Pode-se responder dizendo que o governo é o principal financiador, mas isso deixa que eu faço cometendo a segunda indiscrição: Binho Marques quis mudar a relação entre governo e imprensa que já vigorava desde sempre. Mas se conteve para não provocar nenhum ‘racha’. Não quis fazer uma ruptura e tornar-se também mais um cacique político. Resolveu assumir a decisão coletiva em nome da tal governabilidade que é, no final das contas, apenas a eleitorabilidade.

Será que seu desabafo representa uma mudança? Fiquem tranqüilos, meninos. Binho é da escola da professora Marina, que joga para o time e agüenta calada desaforos em nome da preservação de um projeto do qual, aos trancos e barrancos, alguns sonhos vem sendo realizados. Mas não abusem.

Esse é, afinal, o recado que serve para todos, inclusive pra mim, que vou parar por aqui porque já falei demais e acho que já estou abusando.

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Assessor especial do governador do Acre